Páginas

Ser de esquerda é não aceitar as injustiças, sejam elas quais forem, como um fato natural. É não calar diante da violação dos Direitos Humanos, em qualquer país e em qualquer momento. É questionar determinadas leis – porque a Justiça, muitas vezes, não anda de mãos dadas com o Direito; e entre um e outro, o homem de esquerda escolhe a justiça.
É ser guiado por uma permanente capacidade de se estarrecer e, com ela e por causa dela, não se acomodar, não se vender, não se deixar manipular ou seduzir pelo poder. É escolher o caminho mais justo, mesmo que seja cansativo demais, arriscado demais, distante demais. O homem de esquerda acredita que a vida pode e deve ser melhor e é isso, no fundo, que o move. Porque o homem de esquerda sabe que não é culpa do destino ou da vontade divina que um bilhão de pessoas, segundo dados da ONU, passe fome no mundo.
É caminhar junto aos marginalizados; é repartir aquilo que se tem e até mesmo aquilo que falta, sem sacrifício e sem estardalhaço. À direita, cabe a tarefa de dar o que sobra, em forma de esmola e de assistencialismo, com barulho e holofotes. Ser de esquerda é reconhecer no outro sua própria humanidade, principalmente quando o outro for completamente diferente. Os homens e mulheres de esquerda sabem que o destino de uma pessoa não deveria ser determinado por causa da raça, do gênero ou da religião.
Ser de esquerda é não se deixar seduzir pelo consumismo; é entender, como ensinou Milton Santos, que a felicidade está ancorada nos bens infinitos. É mergulhar, com alegria e inteireza, na luta por um mundo melhor e neste mergulho não se deixar contaminar pela arrogância, pelo rancor ou pela vaidade. É manter a coerência entre a palavra e a ação. É alimentar as dúvidas, para não cair no poço escuro das respostas fáceis, das certezas cômodas e caducas. Porém, o homem de esquerda não faz da dúvida o álibi para a indiferença. Ele nunca é indiferente. Ser de esquerda é saber que este “mundo melhor e possível” não se fará de punhos cerrados nem com gritos de guerra, mas será construído no dia-a-dia, nas pequenas e grandes obras e que, muitas vezes, é preciso comprar batalhas longas e desgastantes. Ser de esquerda é, na batalha, não usar os métodos do inimigo.
Fernando Evangelista

segunda-feira, dezembro 22, 2014

Abertura de Perus foi o sentido da minha vida, diz Luiza Erundina

Mais de vinte anos se passaram e Erundina recorda como enfrentou a identificação dos desaparecidos enterrados clandestinamente na vala
 
 
Jornal GGN - "Pelo menos o governo municipal não vai abrir mão dos resultados, desses encaminhamentos, temos que levá-los às últimas consequências, dure o tempo que durar, custe o tempo que custar. Isso que é importante, isso que nos dá vontade e certeza dos resultados desse esforço", disse Luiza Erundina, há 24 anos, quando era prefeita de São Paulo e decidiu enfrentar resistência, tabus da ditadura, e levar a cabo a identificação das ossadas de Perus.
 
Agora, a deputada federal assiste a essas imagens, com seriedade e o mesmo fôlego de 1990. Naquele ano, 1.049 sacos com ossos de mortos durante o regime militar foram encontrados na vala clandestina, localizada no cemitério Dom Bosco, na zona norte da cidade. Conhecendo as dificuldades que teria pela frente, defez-se da poltrona que o cargo executivo sustenta, separou botas de plástico - para o terreno irregular e dias de chuva - e liderou a responsabilidade, não apenas com ordens, mas com as próprias mãos. 
 
"Eu fui muitas vezes ao cemitério, porque a gente temia que a polícia baixasse por lá, clandestinamente, ou os interessados de apagar a verdade sobre aqueles crimes, sumindo com aquelas ossadas. Eu tive que ficar vigilante, eu, pessoalmente, além da minha equipe, da equipe policial", contou, em entrevista exclusiva ao Jornal GGN.
 
 
Com a grande divulgação e repercussão da descoberta, que provocou uma espécie de proteção e legitimidade para aquela tarefa, Erundina fechou parceria com o Estado de São Paulo para obter a estrutura de uma Universidade que guiasse o trabalho de perícia. Desde o primeiro momento, também preocupou-se em manter o máximo de acompanhamento possível de familiares e conhecidos dos mortos pela ditadura. E contou com os esforços do Ministério Público para responsabilizar publicamente o governo, pela ação da polícia de enterrar aqueles desaparecidos como indigentes. 
 
"Fizemos um convênio com o Estado, para poder usar os recursos científicos da Unicamp, e eles fizeram isso de forma muito competente e generosa. Eu agradeço a Deus de ter conseguido fazer isso [a parceria] antes do final do governo, porque senão tinham conseguido impedir que a verdade viesse à luz e os cadáveres devolvidos a seus familiares, como fizeram depois que eu sai da prefeitura", afirmou.
 
De fato, a negligência e o descaso com aqueles resquícios ósseos iniciaram com a saída de Luiza Erundina da prefeitura da cidade. Os avanços do médico legista da Unicamp, Fortunato Badan Palhares, com a identificação por sua equipe de seis desaparecidos políticos - Dênis Casemiro (1946-1971), Sônia Maria Lopes de Morais Angel (1946-1973), Antônio Carlos Bicalho Lana (1949-1973), Frederico Mayr (1948-1972), Helber José Gomes Goulart (1944-1973) e Emanuel Bezerra dos Santos (1943-1973) - ocorreu nos dois primeiros anos de pesquisa da Universidade.
 
A partir de então, uma sucessão de erros de Badan Palhares, denúncias de falta de cuidado no manejamento dos materiais, a falta de profissionais brasileiros capacitados para a específica medicina forense e a ausência de vontade política foram alguns fatores que paralisaram as descobertas.
 
Sob pressão dos familiares com o silêncio das investigações, as ossadas transitaram em diversas unidades de perícia: além da Unicamp, UFMG, Instituto Médico Legal da USP e Polícia Científica tentaram descobrir quem eram os corpos. Nesse meio tempo, foram armazenadas em locais impróprios, inclusive voltando a um cemitério, do Araçá, onde os ossos permaneceram em um columbário, sujeitos a fungos que prejudicam a preservação do material genético.
 
 
"Romperam [a prefeitura pós 1992] o convênio com o governo do Estado, a Unicamp perdeu as condições de continuar o trabalho, e por isso as ossadas ficaram sendo levadas para lá e para cá, se deteriorando, perdendo muito da qualidade do material para garantir condições favoráveis às análises. Foi graças ao empenho dos familiares, à dedicação, continuamos a militância, independente de eu estar ou não no mandato", explicou Erundina.
 
 
A ex-prefeita e atual deputada lembra que, mesmo após mais de vinte anos, o trabalho não foi concluído. Considera a paralisação das perícias uma consequência "de um governo de direita", ao se referir aos anos de gestão de Paulo Maluf (1993-1997). Mas recorda com orgulho a busca pelas respostas de Perus, no seu mandato. 
 
"Se eu não tivesse feito nada como prefeita de São Paulo, teria valido para tomar essa iniciativa, ter coragem de enfrentar as consequências, as ameaças, a possibilidade de fracasso, poderia não ter dado certo. E, no entanto, a partir da abertura dessa vala, novos arquivos foram se abrindo, inclusive em outros estados. Eu me sinto gratificada ao povo de São Paulo, de ter me dado um mandato, e agradeço a Deus a oportunidade de ter tido esse poder, e colocá-lo a serviço de uma causa, que tem sido para mim o sentido da minha vida."
 
Entrevista concedida a Patricia Faermann e Pedro Garbellini
Imagem e edição: Pedro Garbellini
Leia as outras reportagens da série “Ossadas de Perus, a difícil transição”.
*CGN
*Geraldo Célio Dantas Poderoso

Nenhum comentário:

Postar um comentário