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Ser de esquerda é não aceitar as injustiças, sejam elas quais forem, como um fato natural. É não calar diante da violação dos Direitos Humanos, em qualquer país e em qualquer momento. É questionar determinadas leis – porque a Justiça, muitas vezes, não anda de mãos dadas com o Direito; e entre um e outro, o homem de esquerda escolhe a justiça.
É ser guiado por uma permanente capacidade de se estarrecer e, com ela e por causa dela, não se acomodar, não se vender, não se deixar manipular ou seduzir pelo poder. É escolher o caminho mais justo, mesmo que seja cansativo demais, arriscado demais, distante demais. O homem de esquerda acredita que a vida pode e deve ser melhor e é isso, no fundo, que o move. Porque o homem de esquerda sabe que não é culpa do destino ou da vontade divina que um bilhão de pessoas, segundo dados da ONU, passe fome no mundo.
É caminhar junto aos marginalizados; é repartir aquilo que se tem e até mesmo aquilo que falta, sem sacrifício e sem estardalhaço. À direita, cabe a tarefa de dar o que sobra, em forma de esmola e de assistencialismo, com barulho e holofotes. Ser de esquerda é reconhecer no outro sua própria humanidade, principalmente quando o outro for completamente diferente. Os homens e mulheres de esquerda sabem que o destino de uma pessoa não deveria ser determinado por causa da raça, do gênero ou da religião.
Ser de esquerda é não se deixar seduzir pelo consumismo; é entender, como ensinou Milton Santos, que a felicidade está ancorada nos bens infinitos. É mergulhar, com alegria e inteireza, na luta por um mundo melhor e neste mergulho não se deixar contaminar pela arrogância, pelo rancor ou pela vaidade. É manter a coerência entre a palavra e a ação. É alimentar as dúvidas, para não cair no poço escuro das respostas fáceis, das certezas cômodas e caducas. Porém, o homem de esquerda não faz da dúvida o álibi para a indiferença. Ele nunca é indiferente. Ser de esquerda é saber que este “mundo melhor e possível” não se fará de punhos cerrados nem com gritos de guerra, mas será construído no dia-a-dia, nas pequenas e grandes obras e que, muitas vezes, é preciso comprar batalhas longas e desgastantes. Ser de esquerda é, na batalha, não usar os métodos do inimigo.
Fernando Evangelista

quarta-feira, janeiro 14, 2015

Concentração de renda e achatamento salarial (1964-1985)


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Quando ouvimos falar em Ditadura Militar no Brasil, a primeira associação que geralmente nos ocorre diz respeito à repressão política: as perseguições, o fechamento de entidades sindicais, estudantis e populares, a cassação de direitos políticos, a censura, o exílio, torturas, mortes, etc. Mas, além de toda essa barbárie, além de todas essas atrocidades que compõem este lúgubre quadro de horror, houve ainda um outro tipo de violência, também brutal, porém mais sutil, que vitimou milhões de brasileiros: foram os crimes econômicos da Ditadura, os quais, por sua vez, repercutiram drasticamente em áreas essenciais como saúde e educação. Num momento da conjuntura em que setores radicais da extrema-direita tentam insuflar camadas politicamente mais atrasadas com seu discurso de ódio e anunciam aos quatro ventos, sem a menor modéstia, decoro ou pudor, suas pretensões ditatoriais, faz-se necessário resgatar este aspecto de nossa história e relembrar que a Ditadura vitimou não apenas aqueles que se engajaram diretamente na luta para derrubá-la, mas também toda a classe trabalhadora brasileira.
Concentração de renda e achatamento salarial
Durante o período da Ditadura Militar (1964-1985), houve um substancial aumento da concentração de renda no Brasil, alargando o abismo entre ricos e pobres e agravando as desigualdades sociais. Essa concentração se deu, principalmente, às custas do achatamento dos salários dos trabalhadores das camadas mais baixas, aumentando os salários de uma pequena “elite” consumidora de supérfluos para sustentar, assim, o falso “milagre econômico” brasileiro.
Alguns dados ilustram isso muito bem. Em 1960, isto é, quatro anos antes do golpe militar, os 20% mais pobres no Brasil detinham 3,9% da renda nacional. Em 1970, este percentual caiu para 3,4% e, em 1980, para 2,8%. Fazendo um outro recorte, considerando agora os 50% mais pobres, estes detinham, em 1960, 17,4% da renda nacional. Sua participação na riqueza nacional caiu para 14,9%, em 1970, e para 12,6%, em 1980. Ao mesmo tempo, os 10% mais ricos subiram de 39,5%, em 1960, para 46,7%, em 1970, e para 50,9%, em 1980. Os 5% mais ricos viram suas fortunas aumentar de 28,3%, em 1960, para 34,1%, em 1970, até chegar aos 37,9%, em 1980. E, por fim, os 1% muito ricos saltaram de 11,9%, em 1960, para 14,7%, em 1970, até os 16,9%, em 1980.
Pesquisas do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) mostram que, em plena época do “milagre econômico”, 12,5% dos trabalhadores ganhavam até meio salário mínimo; 20,8% recebiam até um salário mínimo; 31,1% até dois salários mínimos; 23,6% entre dois e cinco salários mínimos; 7,25% entre cinco e dez salários mínimos; 3,2% entre dez e vinte salários mínimos; e 1,6% recebiam mais que vinte salários mínimos. Ou seja, enquanto o suposto “milagre econômico” estava a todo vapor, 64,4% da população recebia, no máximo, dois salários mínimos.
O falso “milagre econômico”, é importante ressaltar, apresentou um aumento da produção industrial que não refletiu um aumento real da economia. Isto é, o que se chamou “milagre econômico” foi um fenômeno que, segundo alguns analistas, favoreceu cerca de apenas 7,2% dos assalariados, camada que ganhava até dez salários mínimos. Segundo o historiador Júlio José Chiavenato, autor de O golpe de 64 e a ditadura militar, o tal “milagre” só foi possível porque “o empobrecimento do povo não significou necessariamente uma estagnação econômica na soma da renda nacional: ela apenas foi desproporcionalmente distribuída”. Assim, nunca houve “prosperidade” para a classe trabalhadora durante o tal “milagre econômico”, mas miséria, muita miséria para a ampla maioria do povo brasileiro.
Desnacionalização da economia
A hipocrisia do discurso “nacionalista” dos militares é desmascarada da maneira mais gritante quando analisada a relação e a subserviência destes com o capital estrangeiro. A Ditadura, ao privilegiar os investimentos externos, comprometeu o futuro do país a médio e longo prazo. A Constituição promulgada em 1967, em seu Artigo 161, literalmente “entregava” o subsolo brasileiro à exploração das empresas estrangeiras interessadas nos minérios estratégicos.
E um dos principais desdobramentos dessa subserviência, com consequências catastróficas para as décadas seguintes, foi o aumento exorbitante da dívida externa. Em apenas 15 anos, os militares elevaram a dívida externa brasileira em 15 vezes. Passou de 3 bilhões de dólares para 45 bilhões, um recorde mundial. O governo Geisel, geralmente considerado “austero” – talvez uma inspiração para um tal “choque de gestão” contemporâneo – elevou a dívida externa, que era de 9,8 bilhões de dólares, em 1974, para 35,1 bilhões, em 1978. E isso tinha uma razão de ser: não desacelerar a economia, considerando que, se reduzisse os empréstimos externos, comprometeria a produção que dava fabulosos lucros às multinacionais.
E por falar em multinacionais, estas não encontravam nenhuma barreira para explorar os trabalhadores e os recursos brasileiros e remeter fantásticos lucros para suas matrizes no exterior. A fabricante de cigarros Souza Cruz, por exemplo, de 1966 a 1976, investiu 2,5 milhões de dólares no Brasil e remeteu ao exterior, sob a forma de lucros, vultuosos 82,3 milhões. A Firestone, por sua vez, investiu tímidos 4,1 milhões, conforme dados de uma CPI da Câmara dos Deputados, realizada em 1976, e remeteu ao exterior a gorda fatia de 50,2 milhões de dólares.
Para garantir a satisfação de seus patrões, a Ditadura se encarregava de sufocar os trabalhadores brasileiros com seus baixos salários, concedia ampla liberdade de remessa de lucros ao exterior e generosos incentivos fiscais. Vale destacar que uma das primeiras medidas da Ditadura Militar foi revogar a Lei de Remessa de Lucros, aprovada em 1962 e promulgada em janeiro de 1964, no fim do governo de João Goulart.
Até mesmo empresários brasileiros, insuspeitos de qualquer “subversão”, também denunciavam a desnacionalização da economia brasileira imposta pelos militares. Dados mostram que, em 1977, após 13 anos de governo militar, 72% da indústria de aparelhos elétricos era dominada pelos estrangeiros, ocorrendo o mesmo com 99% do setor de fumo, 69% dos materiais de transporte, 60% da mecânica e 100% das máquinas para escritório. Como se não bastasse, 52% do comércio externo brasileiro estava nas mãos das multinacionais.
A miséria brasileira
A entidade internacional World Population apurou que, em 1979, morriam 52 crianças por hora no Brasil. A desnutrição foi responsável, neste mesmo ano, por 52,4% dos óbitos entre crianças de até cinco anos de idade. O IBGE registrou, em 1981, que 70% da população não comia o necessário, e reconhecia de forma oficial a existência de 71 milhões de subnutridos no Brasil. Tudo isso em pleno período de “milagre econômico”.
Em uma entrevista ao jornal O Globo, de 28 de junho de 1987, o pediatra Yvon Rodrigues, da Academia Nacional de Medicina, dava conta que uma pesquisa realizada pelo próprio governo militar, mas não publicada devido a seus resultados aterradores, descobriu que no Brasil “havia famílias que comiam ratos, crianças que disputavam fezes…”.
Ou seja, enquanto o “milagre econômico” registrava um aumento no PIB de 11,4%, em 1973, 13 milhões de crianças e 28 milhões de adultos passavam fome no Brasil. Este ano também registrou a maior baixa salarial da história do Brasil, escancarando a contradição entre crescimento econômico e crescimento da miséria.
Saúde
Em 1979, um documento do Banco Mundial apontou que a saúde do brasileiro piorava a cada ano. No Nordeste, 30% dos menores de 18 anos se alimentavam com 400 calorias diárias, enquanto a cota mínima seria de 3 mil, e que cerca de 80% dos nortistas e nordestinos tinham uma expectativa de vida 14 anos abaixo daquela das elites sociais.
Segundo dados do IBGE, entre 1960 e 1968, a mortalidade infantil subiu de 62,9 para 83,8 (por mil habitantes) em São Paulo. Em Belo Horizonte, de 1960 a 1972, o índice pulou de 74,2 para 105,3.
Mesmo diante desse quadro, os investimentos da Ditadura Militar na área da saúde diminuíram com o passar dos anos. Em 1966, o Ministério da Saúde recebia 4,29% do orçamento federal; essa porcentagem foi caindo progressivamente, até atingir o percentual de 0,99% do orçamento, em 1974.
Ditadura nunca mais!
Estes poucos dados já são suficientes para revelar a essência do que foi a Ditadura Militar no plano econômico: um governo títere, subserviente aos interesses estrangeiros e que, longe de criar uma “base” para industrializar o Brasil, desnacionalizou a economia e submeteu o povo a condições de vida desumanas. É claro que, sob um regime democrático, o povo teria reagido abertamente a tais condições de vida através de seus sindicatos, greves e manifestações. Não é difícil compreender, portanto, por qual razão a burguesia precisou se aliar aos militares e instaurar uma ditadura no Brasil: só assim poderia garantir a superexploração dos trabalhadores brasileiros e a realização de fabulosos lucros.
Ressalta-se também, nesta perspectiva econômica, que a luta de todos aqueles que tombaram em combate não era uma reação apenas à falta de liberdade política, mas também uma busca pela emancipação do povo brasileiro de tais condições de vida humilhantes, desumanas e degradantes. Como o fantasma do rei que no Hamlet, de Shakespeare, não podia descansar enquanto sua morte não fosse vingada, podemos ouvir o insistente clamor por justiça das milhares de crianças mortas por fome e desnutrição pelos crimes econômicos do regime. Não há paz sem justiça.
Glauber Ataide, diretor do Sindados MG
*AVerdade

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