Páginas

Ser de esquerda é não aceitar as injustiças, sejam elas quais forem, como um fato natural. É não calar diante da violação dos Direitos Humanos, em qualquer país e em qualquer momento. É questionar determinadas leis – porque a Justiça, muitas vezes, não anda de mãos dadas com o Direito; e entre um e outro, o homem de esquerda escolhe a justiça.
É ser guiado por uma permanente capacidade de se estarrecer e, com ela e por causa dela, não se acomodar, não se vender, não se deixar manipular ou seduzir pelo poder. É escolher o caminho mais justo, mesmo que seja cansativo demais, arriscado demais, distante demais. O homem de esquerda acredita que a vida pode e deve ser melhor e é isso, no fundo, que o move. Porque o homem de esquerda sabe que não é culpa do destino ou da vontade divina que um bilhão de pessoas, segundo dados da ONU, passe fome no mundo.
É caminhar junto aos marginalizados; é repartir aquilo que se tem e até mesmo aquilo que falta, sem sacrifício e sem estardalhaço. À direita, cabe a tarefa de dar o que sobra, em forma de esmola e de assistencialismo, com barulho e holofotes. Ser de esquerda é reconhecer no outro sua própria humanidade, principalmente quando o outro for completamente diferente. Os homens e mulheres de esquerda sabem que o destino de uma pessoa não deveria ser determinado por causa da raça, do gênero ou da religião.
Ser de esquerda é não se deixar seduzir pelo consumismo; é entender, como ensinou Milton Santos, que a felicidade está ancorada nos bens infinitos. É mergulhar, com alegria e inteireza, na luta por um mundo melhor e neste mergulho não se deixar contaminar pela arrogância, pelo rancor ou pela vaidade. É manter a coerência entre a palavra e a ação. É alimentar as dúvidas, para não cair no poço escuro das respostas fáceis, das certezas cômodas e caducas. Porém, o homem de esquerda não faz da dúvida o álibi para a indiferença. Ele nunca é indiferente. Ser de esquerda é saber que este “mundo melhor e possível” não se fará de punhos cerrados nem com gritos de guerra, mas será construído no dia-a-dia, nas pequenas e grandes obras e que, muitas vezes, é preciso comprar batalhas longas e desgastantes. Ser de esquerda é, na batalha, não usar os métodos do inimigo.
Fernando Evangelista

sábado, agosto 15, 2015

Porte de drogas para consumo pessoal: qual a quantidade?



Porte de drogas para consumo pessoal: qual a quantidade?

Gerivaldo Neiva *

É possível que o STF conclua ainda este ano o julgamento do mérito do RE 635659, convertido em Repercussão Geral pelo plenário, que tem como Relator o Ministro Gilmar Mendes, e reconheça a inconstitucionalidade do artigo 28, da lei nº 11.343/06, a lei de drogas.[1] Como todos sabem, o artigo 28 é uma construção esdrúxula, pois define como crime, ferindo o direito à intimidade e vida privada, o ato de alguém se drogar com substâncias proibidas por Portaria da Anvisa, ferindo os princípios da legalidade e separação dos poderes, e não estabelece pena privativa de liberdade por violação dessa conduta, mas penas restritivas de direitos.
Dispõe o artigo 28: Quem adquirir, guardar, tiver em depósito, transportar ou trouxer consigo, para consumo pessoal, drogas sem autorização ou em desacordo com determinação legal ou regulamentar será submetido às seguintes penas: I - advertência sobre os efeitos das drogas; II - prestação de serviços à comunidade; III - medida educativa de comparecimento a programa ou cursoeducativo. Mais adiante, o § 1º deste mesmo artigo estabelece que às mesmas medidas submete-se quem, para seu consumo pessoal, semeia, cultiva ou colhe plantas destinadas à preparação de pequena quantidade de substância ou produto capaz de causar dependência física ou psíquica.
Para completar este quadro de incoerência, o § 2º do mesmo artigo 28 estabelece critérios imprecisos e subjetivos para que o Juiz defina se a droga se destinava ao consumo pessoal: “Para determinar se a droga destinava-se a consumo pessoal, o juiz atenderá à natureza e à quantidade da substância apreendida, ao local e às condições em que se desenvolveu a ação, às circunstâncias sociais e pessoais, bem como à conduta e aos antecedentes do agente”.
Bom, em vista de uma possível decisão favorável do STF, o exercício proposto é pensar um day after com relação à situação judicial dos usuários com relação ao porte de pequena quantidade e plantio para consumo pessoal, bem como o que acontecerá com os critérios do § 2º. Assim, por exemplo, sendo bem otimista, vamos considerar que o STF julgue favorável exatamente o que se pede no RE, ou seja, o artigo 28 é inconstitucional e pronto. Como será a aplicação concreta da descriminalização? Quais os critérios a seguir?
Ora, o efeito da decisão sobre a inconstitucionalidade, sem dúvidas, seria a descriminalização do uso de drogas. Em consequência, também estaria descriminalizado o porte de quantidade de drogas suficiente para uso pessoal e o plantio de pequena quantidade para a mesma finalidade. Não vejo grandes dificuldades nesta interpretação, pois se não há crime em consumir drogas, logo também não haverá crime em portar drogas para este consumo ou cultivar drogas com esta mesma finalidade.
O grande problema que persistirá, pelo menos até que se assente a poeira jurisprudencial, na falta de uma legislação específica, será definir a quantidade de drogas a ser aceita como sendo para uso pessoal. Antes, importa saber se a declaração de inconstitucionalidade do artigo 28 implicará na derrogação do § 2º, ou seja, no único critério legal existente para definir se a droga se destina ao consumo pessoal.
Tentando responder: e o que se pede no RE? A peça inicial foi subscrita pelo Defensor Público de São Paulo Leandro de Castro Gomes e pelo estagiário Marcelo de Araújo Generoso, e o pedido é objetivo e claro com relação à inconstitucionalidade do artigo 28 e não faz qualquer referência aos seus parágrafos e parágrafos e incisos.
 Vejamos:
Posto isso, pugna o recorrente pelo conhecimento e provimento deste recurso extraordinário, o que implicará no reconhecimento da violação do direito à intimidade e vida privada pela decisão impugnada, com a declaração de inconstitucionalidade do art. 28 da Lei 11.343/06, com a consequente reforma do acórdão que manteve o teor da sentença condenatória, sendo o recorrente absolvido nos termos do art. 386, III do CPP, por atipicidade da conduta.
Ora, se o STF declarar a inconstitucionalidade apenas do 28, a interpretação sistemática da nova situação conduzirá para o mesmo efeito em relação ao porte e plantio para consumo, mas não vejo como o STF também declarar a inconstitucionalidade do § 2º, visto que isto não foi pedido e é o único critério legal então em vigor para definir o consumo pessoal no ordenamento brasileiro.
Em conclusão, como o STF não poderá fixar outro critério, a exemplo da quantidade em gramas, teremos a declaração de inconstitucionalidade do artigo 28, mas a continuidade da vigência dos critérios existentes que orientam o juiz na definição do que seria consumo pessoal, ou seja, “a natureza e a quantidade da substância apreendida, ao local e às condições em que se desenvolveu a ação, às circunstâncias sociais e pessoais, bem como à conduta e aos antecedentes do agente”.
A única saída, a meu ver, seria a via legislativa que alterasse o § 2º para estabelecer, como já feito por diversos países, o critério objetivo da quantidade de drogas que definiria a necessidade do usuário. Evidente que precisamos conhecer as experiências internacionais, mas temos uma grande tarefa na definição de um critério que se adapte à realidade brasileira e aos usuários, que obrigatoriamente precisam ser consultados. [2]
Bom, esta saída legislativa implica que o Congresso Nacional tivesse a disposição de discutir e votar a matéria. O que não me parece que tenha neste momento. Sendo assim, a decisão do STF vai declarar a inconstitucionalidade do artigo 28 e disso não tenho dúvidas, mas os Juízes e Tribunais devem seguir o espírito da decisão do STF para também descriminalizar o porte e cultivo para uso pessoal, ouvindo sempre os usuários para definir se a droga se destinava ao consumo pessoal e deixando o ônus da prova de que a droga se destinava ao tráfico para órgão acusador. Não existe outra saída: se o acusado afirma que vai fumar 20 pedras de crack ou que comprou um quilo de maconha para manter em estoque, caberá ao órgão acusador – o representante do Ministério Público - provar o contrário.
Fora disso, a prevalecer a imprecisão e o subjetivismo do § 2º, o senso comum teórico dos juristas e a opinião de suas sogras, esposas e companheiras, a cor da pele do usuário, a condição social e o local da apreensão continuarão definindo o que seja usuário e o que seja traficante, fortalecendo a criminosa política de guerra às drogas. Isto, convenhamos senhores e senhoras juristas, não é o Direito e não é o que a Constituição da República espera do sistema de justiça criminal desse país. Ao contrário, quando se trata de drogas e uso problemático, os sistemas de justiça de outros países, incluindo os EUA, caminham para a legalização da produção e consumo das drogas e cuidado e redução de danos com relação aos usuários problemáticos. Este é o caminho.

* Juiz de Direito (BA), membro da Associação Juízes para a Democracia (AJD) e Porta Voz no Brasil do movimento Law Enforcement Against Prohibition (Leap-Brasil).

Nenhum comentário:

Postar um comentário