Cuba é uma miséria só
Ex-menina de rua de SP estuda Medicina em Cuba
Graças a alguns “papa-hóstias”, como costumo chamar meus amigos da igreja, fiquei sabendo da história dela durante um agradável almoço na Feijoada da Lana, na Vila Madalena, a melhor da cidade. Repórter vive disso: tem que andar por aí, conversar com todo mundo para descobrir as novidades, ficar sabendo de personagens cuja vida vale a pena ser contada.
É este o caso da jovem Gisele Antunes Rodrigues, de 23 anos, ex-menina de rua de São Paulo, nascida em Ribeirão Pires, que deu a volta por cima e hoje está no terceiro ano de Medicina. Detalhe: ela estuda no Instituto Superior de Ciências Médicas de La Habana, em Cuba, onde estão matriculados outros 275 brasileiros.
Gisele veio passar as férias no Brasil e, na próxima semana, volta a Cuba. Como ela foi parar lá? Ninguém melhor do que a própria Gisele, que escreve muito bem, para nos contar como é a vida lá e como foi esta sua incrível travessia das ruas de São Paulo até cursar uma faculdade de Medicina em outro país.
A meu pedido, Gisele enviou seu depoimento nesta sexta-feira e eu pedi autorização para poder reproduzí-lo aqui no Balaio. Tenho certeza de que esta comovente história com final feliz pode servir de estímulo e inspiração a outros jovens que vivem em dificuldades.
Para: Ricardo Kotscho
Olá!!!
Autorizo o senhor a publicar essa história. Caso deseje, pode corrigir os erros. Mas, por favor, sem sensacionalismo. Tente seguir mais o menos o texto abaixo. Desculpa por escrever isso, mas eu já tive problemas.
Gosto do seu blog, vou tentar acessar nele em Cuba.
Abraços
Gisele Antunes
***
Só mais uma brasileira
Saí de casa com 9 anos de idade porque minha mãe espancava eu e meu irmão. Não tínhamos comida, o básico para sobreviver. Meu pai nunca foi presente. É um alcoólatra que só vi duas vezes na vida. Minha mãe é uma mulher honesta, mas que não conseguia educar seus filhos. Já foi constatado que ela tem problemas mentais.
Ela trabalhava como cigana na Praça da República. Quando eu fugi de casa segui esse caminho, e encontrei uma grande quantidade de meninos e meninas de rua. Apresentei-me a um deles, este me ensinou como chegar em um albergue para jovens, e a partir desse momento passei a ser menina de rua. Só comparecia nessa instituição para comer, tomar banho e ter um pouco de infância (brincar). No meu quinto dia na rua, comecei a cheirar cola e depois maconha.
Alguns educadores preocupados com a minha situação tentavam me orientar, mas de nada valia. Foi quando me apresentaram a uma religiosa, a irmã Ana Maria, que me encaminhou para um abrigo, o Sol e Vida. Passei uns três anos lá e deixei de usar dogras. Esta instituição não era financiada pelo governo. Quando foi fechada, me encaminharam a outros abrigos da prefeitura, entre eles o Instituto Dom Bosco, do Bom Retiro. E assim foi, até os 17 anos.
Para alguém que usa droga, não era fácil seguir regras. Foi por muita persistência e um ótimo trabalho de vários educadores que eu consegui deixar a drogas, sair da desnutrição e recuperar a saúde após anemia grave.
Na infância, era rebelde, não queria aceitar a minha situação. Apenas queria ter uma família. Mas havia algo que eu valorizava _ a escola e os cursos que eu fazia na adolescência. Aos 14 anos de idade, comecei a jogar futebol, tive a minha primeira remuneração. Aos 16 anos, entrei em uma empresa, a Ericsson, que capacitava jovens dos abrigos para o mercado de trabalho. Essa empresa financiou meu curso de auxiliar de enfermagem e o inicio do técnico. O último não foi possível concluir.
Explico: existe uma lei nas instituições públicas segunda a qual o jovem a partir dos 17 anos e 11 meses não é mais sustentado pelo governo, tem que se manter sozinho. Como eu não tinha contato com a minha família, quando se aproximou a data de completar essa idade, entrei em desespero.
A sorte foi que a entidade, o Instituto Dom Bosco Bom Retiro, criou um projeto denominado Aquece Horizonte. Este projeto é uma república para jovens que, ao sair do abrigo, podem ficar lá até os 21 anos. Os coordenadores e patrocinadores acompanham o desenvolvimento do jovem neste período de amadurecimento.
As regras mais básicas da república são: trabalhar, estudar e querer vencer na vida. No segundo ano de república, eu desejava entrar na universidade, mas sabia que não tinha condições de pagar a faculdade de enfermagem ou conseguir passar na universidade pública.
Optei então por fazer a faculdade de pedagogia. É uma área que me encanta, e a única que podia pagar. No primeiro semestre da faculdade de pedagogia, um educador do abrigo, o Ivandro, me chamou pra uma conversa e me informou sobre um processo seletivo para estudar medicina em Cuba. Fiquei contente e aceitei participar da seleção.
Passei pelo processo seletivo no consulado cubano e estou desde 2007 em Cuba. Dou inicio ao terceiro ano de medicina no dia 06 de setembro de 2010. São 7 anos no país, sendo 6 de medicina e um de pré-médico.
Ir a Cuba foi minha maior conquista. Além de aprender sobre a medicina, aprendo sobre a vida, a importância dos valores. Antes de ir, sempre lia reportagens negativas sobre o país, mas quando cheguei lá, não foi isso que vi. Em Cuba, todos têm direito a educação, saúde, cultura, lazer e o básico pra sobreviver.
Li em muitas revistas que o Fidel Castro é um ditador, e descobri em Cuba, que ele é amado e idolatrado pelos cubanos. Escrevem que Cuba é o país da miséria. Mas de que tipo de miséria eles falam? Interpreto como miséria o que passei na infância. Em casa, não tinha água encanada, luz, comida.
Recordo que tinha dias em que eu, meu irmão e minha mãe não conseguíamos nos levantar da cama devido a fraqueza por falta de alimento. Tomávamos água doce pra esquecer a fome. Então, quando abro uma revista publicada no Brasil e nela está escrito que Cuba é um país miserável, eu me pergunto: se em Cuba, onde todos têm os direitos a saúde, educação, moradia, lazer e alimento, como podemos denominar o Brasil?
Temos um país com riqueza imensa, que conquistou o 8º lugar no ranking dos países mais ricos, mas sua riqueza se concentra nas mãos de poucos, com uns 60 % da população vivendo em uma miséria verdadeira, pior que a miséria da minha infância.
Cuba sofre um embargo econômico imposto pelos estados Unidos por ser um país socialista e é criticado por outros governos. No entanto, consegue dar bolsa para mais de 15 mil estrangeiros de vários países, se destaca na área da saúde (gratuita), educação (colegial, médio, técnico e superior gratuito para todos) e esporte (2º lugar no quadro de medalhas, na historia dos Jogos Panamericanos), é livre de analfabetismo.
A cada mil nascidos vivos morrem menos de 4. Vivenciando tudo isso, eu queria também que o Brasil fosse miserável como Cuba, como é escrito em varias revistas. Acho que o brasileiro estaria melhor e não seria tão comum encontrar tantos jovens sem educação, matando, roubando e se drogando nas ruas.
Vou passar mais quatro anos em Cuba e não quero deixar o curso por nada. Desejo concluir a faculdade e ajudar esse povo carente que sonha com melhoras na área da saúde, quero ajudar outros jovens a realizar os seus sonhos , como me ajudaram. Também pretendo apoiar meu irmão, que deseja estudar direito.
Tenho meu irmão como exemplo de superação. Saiu de casa com 13 anos de idade, mas não foi para uma instituição governamental. Morou em um cômodo que seu patrão lhe ofereceu. Enquanto eu estudava e fazia cursos, ele estava trabalhando para ter o pão de cada dia. Hoje, ele é um homem com 25 anos de idade, casado e tem uma filha linda, e mesmo assim encontra tempo pra me apoiar e me dar conselhos.
Foi muito bom visitar o Brasil. Depois de longos 13 anos tive um tipo de comunicação com a minha mãe. Isso pra mim é uma vitoria. Quero estar próxima dela quando voltar.
Conto um pouco da minha história, mas sei que muitos brasileiros ultrapassaram barreiras piores, até realizarem seus sonhos. Peço ao povo brasileiro que continue lutando. É período de eleições, peço também que todos votem com consciência, escolha a pessoa adequada pra administrar o nosso país tão injusto.
Gisele Antunes Rodrigues
Ser culto é o único modo de ser livre (José Martí)
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