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Ser de esquerda é não aceitar as injustiças, sejam elas quais forem, como um fato natural. É não calar diante da violação dos Direitos Humanos, em qualquer país e em qualquer momento. É questionar determinadas leis – porque a Justiça, muitas vezes, não anda de mãos dadas com o Direito; e entre um e outro, o homem de esquerda escolhe a justiça.
É ser guiado por uma permanente capacidade de se estarrecer e, com ela e por causa dela, não se acomodar, não se vender, não se deixar manipular ou seduzir pelo poder. É escolher o caminho mais justo, mesmo que seja cansativo demais, arriscado demais, distante demais. O homem de esquerda acredita que a vida pode e deve ser melhor e é isso, no fundo, que o move. Porque o homem de esquerda sabe que não é culpa do destino ou da vontade divina que um bilhão de pessoas, segundo dados da ONU, passe fome no mundo.
É caminhar junto aos marginalizados; é repartir aquilo que se tem e até mesmo aquilo que falta, sem sacrifício e sem estardalhaço. À direita, cabe a tarefa de dar o que sobra, em forma de esmola e de assistencialismo, com barulho e holofotes. Ser de esquerda é reconhecer no outro sua própria humanidade, principalmente quando o outro for completamente diferente. Os homens e mulheres de esquerda sabem que o destino de uma pessoa não deveria ser determinado por causa da raça, do gênero ou da religião.
Ser de esquerda é não se deixar seduzir pelo consumismo; é entender, como ensinou Milton Santos, que a felicidade está ancorada nos bens infinitos. É mergulhar, com alegria e inteireza, na luta por um mundo melhor e neste mergulho não se deixar contaminar pela arrogância, pelo rancor ou pela vaidade. É manter a coerência entre a palavra e a ação. É alimentar as dúvidas, para não cair no poço escuro das respostas fáceis, das certezas cômodas e caducas. Porém, o homem de esquerda não faz da dúvida o álibi para a indiferença. Ele nunca é indiferente. Ser de esquerda é saber que este “mundo melhor e possível” não se fará de punhos cerrados nem com gritos de guerra, mas será construído no dia-a-dia, nas pequenas e grandes obras e que, muitas vezes, é preciso comprar batalhas longas e desgastantes. Ser de esquerda é, na batalha, não usar os métodos do inimigo.
Fernando Evangelista

sábado, janeiro 21, 2012

Clarice Lispector, A Escritora da Alma

O escritor norte-americano Benjamin Moser escreveu a biografia de Clarice Lispector nos Estados Unidos a partir de sua paixão pela autora e também pela necessidade de torná-la ainda mais conhecida no exterior. Foram cinco anos ininterruptos de pesquisas sobre a vida e a obra dessa escritora, na tentativa de resgatar detalhes preciosos sobre a enigmática Clarice. Why this world? não se trata de mais uma biografia sobre essa escritora, mas é um estudo completo que resgata muitas particularidades das suas origens judaicas, do seu universo literário e de sua vida pessoal, que chega às mãos do leitor como uma surpresa reveladora de grandes descobertas. Em todas as páginas do livro, há os rastros de Benjamin Moser percorrendo as trilhas de Clarice Lispector. É inevitável não perceber que, com essa biografia, Moser está proporcionando aos leitores norte-americanos a oportunidade de conhecerem uma das escritoras mais importantes da literatura latino-americana. Why this world foi traduzida e publicada no Brasil, sob o título de Clarice,. Essa foi mais uma surpreendente e interessante novidade para os brasileiros sobre a escritora, cuja obra é inesgotável. O jovem escritor Benjamin Moser com ousadia e propriedade cria para o mundo um importante relato biográfico sobre a autora. Sem sensacionalismo, descreve de maneira muito descontraída, como se fosse um parente ou alguém bem próximo à Clarice, os fatos significativos da vida e da obra que compõem o instigante mundo de Clarice Lispector.

Entrevista com o autor:
É mais comum vermos biógrafos pesquisando e escrevendo sobre autores de seu próprio país. Por que você, um norte-americano, optou por escrever uma biografia de uma escritora brasileira?
Eu acho que é mais interessante escrever sobre artistas de outros países, de servir como uma ponte entre diferentes culturas, se dispomos das possibilidades (linguísticas, por exemplo) de fazê-lo. Mas finalmente o que me interessa em Clarice não era a nacionalidade dela - era a genialidade dela.
O poeta Carlos Drummond de Andrade escreveu: "Mais tarde, um dia... saberemos amar Clarice." O que leva o leitor Benjamin Moser a amar Clarice Lispector?
Bom, é outra pergunta sem resposta. O que leva você a amar o seu marido, a sua filha? Pode dizer que é a beleza dos olhos ou o timbre da voz ou não sei que mais, mas o amor não se explica. O bonito é que o meu amor pela Clarice é compartilhado por cada vez mais gente, que entendem o porquê sem explicações.

Na biografia de Clarice Lispector escrita por você, há fatos da vida da escritora que foram abordados sem meio-termo. Por exemplo, no capítulo O "pogrom básico", em que você faz referência ao estupro da mãe de Clarice, cuja família judia sofreu constante pressão e ameaça na Ucrânia. Como foi a apuração desses episódios? E que marcas você acha que a família Lispector guardou da experiência de ter vivido numa época tão perigosa para os judeus na Europa?
Não há nada no livro que investiguei mais do que essa questão da mãe, devido à importância que teve na vida e na obra da Clarice. Algumas fontes são citadas no livro, outras não - várias pessoas queriam falar anonimamente para não ter problemas com a família (o que de fato aconteceu com certos parentes). É uma coisa que dói muito ainda hoje, e essa era exatamente a ideia das pessoas que cometeram esses crimes: de deixar marcas permanentes nas vítimas, não só nelas, mas nos maridos, nos pais, nos filhos. Era infelizmente longe de ser incomum naquela região naquela época.
O livro dá um enfoque especial às raízes judaicas de Clarice. Você, tendo também ascendência judia, como associa as suas origens à sua literatura? E como você acha que esse fator influenciava a literatura da Clarice?
Acho fundamental. Não só porque o fato de serem judeus é a razão porque a avó da Clarice foi assassinada, a mãe estuprada, a família inteira reduzida à miséria e exilada, mas porque essas experiências históricas formaram a visão do mundo da Clarice como o fizeram com tantos outros judeus. Quando ela pergunta "porque este mundo?" não é uma pergunta abstrata. A pergunta significa: como é possível vivermos num mundo em que coisas tão cruéis acontecem, um mundo em que somos condenados à morte.
No capítulo "Deus agita as águas", você descreve aspectos importantes da vida de Lúcio Cardoso, escritor e amigo de Clarice, que causou grande impacto na escritora. Qual sua análise da relação entre Lúcio e Clarice?
Fiquei surpreso em ver que vários críticos escreveram que o fato de ele ser homossexual foi um desastre tão dramático para ela: um chegou até a dizer que a decepção amorosa que ela sofreu foi o que a inspirou a tornar-se escritora. O fato é que muita gente sofre decepções amorosas na adolescência sem que isso acabe com suas vidas. O Lúcio era um grande escritor, um grande amigo que a inspirou com sua determinação de viver como ele próprio quis.
Muitos brasileiros dizem que Clarice Lispector é mais lida na França do que nos Estados Unidos. Na sua opinião, isso é verdade?
Essa opinião é impossível de eliminar da cabeça de muita gente. Não sei de onde veio. Conheço a França muito, passo boa parte do ano lá, e é mais ou menos a mesma coisa como em todos os países estrangeiros, além da Argentina: tem um grupo que a conhece, na maioria acadêmicos ou pessoas com algum vínculo com o Brasil ou a América Latina, e fora disso é pouquíssimo conhecida. Estou torcendo para mudar isso na França, quando meu livro sair lá em novembro, e também em Portugal, onde sairá em setembro.
Como Why this world foi recebido nos Estados Unidos?
Foi incrível, muito além de minhas expectativas. Quem quiser ver as resenhas pode dar uma olhada no meu site, www.benmoser.com. A coisa mais engraçada foi que uma loja de moda, J. Crew, batizou um sapato desta estação com o nome de Clarice!
E no Brasil? Como foi a recepção dessa biografia aqui traduzida como Clarice, ?
Bom, também poderiam dar uma olhada no meu site para ver a enorme quantidade de matérias que saíram, e que ainda continuam a sair, na imprensa brasileira. Nos Estados Unidos e na Inglaterra, como será na França, o jeito era de fazer as pessoas "descobrirem" a Clarice. No Brasil foi todo o contrário, as pessoas já a conheciam, e foi para mim um grande prazer visitar o Brasil e falar com pessoas que, como eu, se sentem próximos dela. Agora não vejo a hora de voltar ao Brasil para a FLIP, em agosto, e depois para a FLIPORTO, em Pernambuco, em novembro.
Como a literatura de Clarice influenciou sua vida pessoal e profissional?
Primeiro foi pessoalmente, porque como tantos outros fiquei sob o impacto de Clarice, desde A hora da estrela, que li num curso de português aos 19 anos. Sempre queria usar os meus conhecimentos do mundo editorial e jornalistico para "lançar" Clarice além do mundo acadêmico, e o resultado foi a biografia Why this world, que trouxe muita atenção a Clarice fora do Brasil, e que depois fez parte de uma "onda" de interesse em Clarice no Brasil. É difícil para um escritor falar de uma separação entre "pessoal" e "profissional", mas acho que consegui usar minha paixão pessoal por ela para fazer uma coisa profissional que ajudasse a divulgar Clarice internacionalmente.
Depois de Clarice, o que mudou em seu olhar de leitor a respeito da literatura?
Não sei. Na verdade, leio Clarice desde a adolescência e tenho a cabeça inteiramente feita por ela. Como levo tantos anos em companhia dela, é difícil imaginar a minha vida sem ela. Mas como escritor posso dizer que o modelo de seriedade e de liberdade que ela oferece é uma coisa absolutamente espantosa. Não estamos quase nunca ao nível dela, mas mesmo assim ela me inspira muito.
Você acredita que a literatura de Clarice dialoga com a cultura americana? Como?
Não especificamente. Ela dialoga com o ser humano, quer seja no Brasil, nos Estados Unidos, na Alemanha, na China ... não importa onde. Por isso que podemos falar dela em todos os paises, porque a grande arte não se limita às fronteiras políticas. Tem muitos escritores em todos os países que só interessam a estes países especificamente, mas não é o caso dela.
Textos e imagens extraídos da Revista Conhecimento Prático - Literatura, Edição-32, da Editora Escala Educacional.
 

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