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Ser de esquerda é não aceitar as injustiças, sejam elas quais forem, como um fato natural. É não calar diante da violação dos Direitos Humanos, em qualquer país e em qualquer momento. É questionar determinadas leis – porque a Justiça, muitas vezes, não anda de mãos dadas com o Direito; e entre um e outro, o homem de esquerda escolhe a justiça.
É ser guiado por uma permanente capacidade de se estarrecer e, com ela e por causa dela, não se acomodar, não se vender, não se deixar manipular ou seduzir pelo poder. É escolher o caminho mais justo, mesmo que seja cansativo demais, arriscado demais, distante demais. O homem de esquerda acredita que a vida pode e deve ser melhor e é isso, no fundo, que o move. Porque o homem de esquerda sabe que não é culpa do destino ou da vontade divina que um bilhão de pessoas, segundo dados da ONU, passe fome no mundo.
É caminhar junto aos marginalizados; é repartir aquilo que se tem e até mesmo aquilo que falta, sem sacrifício e sem estardalhaço. À direita, cabe a tarefa de dar o que sobra, em forma de esmola e de assistencialismo, com barulho e holofotes. Ser de esquerda é reconhecer no outro sua própria humanidade, principalmente quando o outro for completamente diferente. Os homens e mulheres de esquerda sabem que o destino de uma pessoa não deveria ser determinado por causa da raça, do gênero ou da religião.
Ser de esquerda é não se deixar seduzir pelo consumismo; é entender, como ensinou Milton Santos, que a felicidade está ancorada nos bens infinitos. É mergulhar, com alegria e inteireza, na luta por um mundo melhor e neste mergulho não se deixar contaminar pela arrogância, pelo rancor ou pela vaidade. É manter a coerência entre a palavra e a ação. É alimentar as dúvidas, para não cair no poço escuro das respostas fáceis, das certezas cômodas e caducas. Porém, o homem de esquerda não faz da dúvida o álibi para a indiferença. Ele nunca é indiferente. Ser de esquerda é saber que este “mundo melhor e possível” não se fará de punhos cerrados nem com gritos de guerra, mas será construído no dia-a-dia, nas pequenas e grandes obras e que, muitas vezes, é preciso comprar batalhas longas e desgastantes. Ser de esquerda é, na batalha, não usar os métodos do inimigo.
Fernando Evangelista

segunda-feira, janeiro 16, 2012

Cravos para Rosa Luxemburgo e Karl Liebknecht



Milhares de pessoas participaram em Berlim na homenagem a Rosa Luxemburgo e Karl Liebknecht, assassinados 15 dias depois de terem fundado o Partido Comunista da Alemanha (KPD), faz este domingo 93 anos. As comemorações incluiram um comício "contra o poder dos bancos", com a ativista chilena Camila Vallejo e dirigentes da esquerda alemã.
Memorial dos Socialistas no cemitério Friedrichsfelde, em Berlim.
Memorial dos Socialistas no cemitério Friedrichsfelde, em Berlim. Foto PPCC Antifa/Flickr

Na parte da manhã teve lugar a cerimónia tradicional da deposição de cravos vermelhos no memorial aos dois dirigentes revolucionários alemães, com a presença de figuras do Die Linke como os presidentes Gesine Lötzsch e Klaus Ernst, Gregor Gysi e Oskar Lafontaine.
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A manifestação que se seguiu contou com a presença de milhares de pessoas que fizeram ouvir o protesto contra o capitalismo, o governo de Angela Merkel e o poder dos bancos. Este foi também o tema forte do comício da tarde, a que aos dirigentes da esquerda alemã e do Partido da Esquerda Europeia (PEE) se juntou Camila Vallejo, a dirigente estudantil chilena que tem protagonizado a maior mobilização social do país nos últimos anos. O deputado bloquista Luís Fazenda esteve presente nesta jornada de homenagem e de luta da esquerda na Alemanha, a convite do PEE.


Texto de Renato Soeiro, publicado na passagem dos 90 anos do assassinato de Rosa Luxemburgo e Karl Liebknecht.
É uma evocação de grande significado para a esquerda alemã que, naquele dia fatídico perderia, de uma forma violenta, os seus dois principais dirigentes revolucionários. Desde então, ano após ano, a população de Berlim vai neste dia ao cemitério de Friedrichsfelde mostrar que não esqueceu nem os mortos, nem os responsáveis.

Estes 90 anos de romagens atravessaram todos os difíceis anos 20, o regime nazi, a guerra, a República Democrática Alemã, a reunificação do país, a União Europeia.


Assumiu primeiro a forma de ato de revolta e protesto, depois de ação quase clandestina, após a Segunda Guerra a forma de ato oficial com pompa de Estado, nos anos 90 de afirmação contra a indiferença e o esquecimento. Mas, havendo ou não convocatória e organização oficial ou partidária, dezenas de milhares de berlinenses rumam, naquelas frias manhãs de janeiro, ao cemitério para deixar uma flor.
Não uma flor qualquer: tem de ser um cravo vermelho. Uma flor com história política na Alemanha. Quando os manifestantes do 1° de maio foram proibidos de transportar bandeiras vermelhas e quando a polícia lhes arrancava mesmo da banda do casaco uma tira vermelha que simbolizava a bandeira interdita, transportar na mão uma flor foi a solução criativa e resistente para que maio continuasse vermelho. O cravo, flor do maio dos trabalhadores alemães, foi o símbolo espontaneamente escolhido pelos que em 1920 vieram comemorar, pela primeira vez, o aniversário do assassinato.
Os últimos dias
Estes eram tempos de grande tensão na Alemanha. No início da guerra, em 1914, Rosa Luxemburg e Karl Liebknecht, então proeminentes figuras do Partido Social Democrata (SPD), estão entre os mais determinados opositores à guerra que começa e à decisão parlamentar de votar o orçamento necessário para o esforço de guerra, que a maioria do SPD considerava um imperativo nacional. Uma cisão dá então origem à liga Spartakus, que organiza aqueles que não só se opõem ao esforço de guerra, como trabalham para que a guerra se transforme numa revolução socialista. Na sequência desta atividade política, Rosa e Karl serão presos em 1916. Em novembro de 1918, uma revolução destitui o Kaiser e devolve-lhes a liberdade. Estávamos no dia 8. No dia seguinte, Liebknecht, de uma varanda da residência fortificada do Kaiser, proclama a República Socialista Livre (Freie Sozialistische Republik). Nessa mesma noite, o SPD declara, a partir do Reichstag, a República de Weimar.
Juntos e em liberdade, Luxemburg e Libknecht reorganizam a liga Spartakus, fundam o jornal Bandeira Vermelha e, no dia 14 de dezembro, publicam o novo programa revolucionário da liga. Entre os dias 29 e 31, mesmo no fim do ano de 1918, realizam um congresso, conjuntamente com mais duas organizações, uma de socialistas independentes e outra de comunistas internacionalistas. As três fundem-se nesse congresso e, no dia 1 de janeiro de 1919, anunciam que nasceu o novo Partido Comunista da Alemanha (KPD).
O novo ano começa com mais levantamentos revolucionários em Berlim. O novo Chanceler, Friedrich Ebert, do SPD, dá ordens ao Freikorps, uma força de elite de tendência ultraconservadora, para esmagar a revolta. No dia 15, os militares do Freikorps prendem Rosa Luxemburg e Karl Libknechet, entre outros revolucionários. Às 20:45, um carro chega ao hotel Eden, sede do Freikorps, com Rosa sob prisão. 10 minutos depois chega outro carro transportando Libknecht. O capitão Pabst interroga-os sumariamente e ordena que sejam eliminados. Rosa, recebe uma coronhada, é arrastada para um carro e é abatida com um tiro na cabeça. O seu corpo é levado e às 22:30 o carro regressa e os seus ocupantes informam que o cadáver foi lançado ao rio Spree. Só viria a ser encontrado meses mais tarde, no dia 1 de junho.
O outro carro, que levou Libknecht, regressa pelas 23:00 com a missão cumprida de uma forma algo diferente. O preso foi levado vivo, foi maltratado e assassinado nos jardins junto ao Zoo de Berlim. O corpo foi entregue na morgue, sem qualquer identificação.

O oficial de baixa patente que executou a ordem de disparar sobre Rosa, Otto Runge, recebeu papéis falsos e dinheiro para desaparecer. Mas viria mais tarde a ser levado a julgamento. Pediram-lhe que confessasse o duplo homicídio, mas dizendo que tinha sido um ato de iniciativa individual devido a problemas de insanidade mental. Foi condenado a 25 meses de prisão, mas poucos meses depois já estava em liberdade. O regime nazi viria mesmo a atribuir-lhe uma recompensa pelo seu ato.


Os oficiais superiores que deram as ordens e organizaram a operação nunca foram julgados. Um deles, o capitão Pabst, que interrogou Rosa e Karl e terá dado a ordem de execução, numa entrevista dada em 1962 à revista "Der Spiegel", reiterou que tinham sido o ministro da defesa e o próprio chanceler Friedrich Ebert, ambos do SPD, que tinham dado a aprovação para as suas ações.
Ironia da história. Hoje a grande fundação ligada ao partido alemão da esquerda, Die Linke, é a Fundação Rosa Luxemburg. E a grande fundação dos sociais-democratas, ligada ao SPD, é a Fundação Friedrich Ebert. A política alemã não se compreende sem ter sempre o livro de história na mão.
A Alemanha é verdadeiramente o país onde tenho sentido, como em nenhum outro, a presença constante do último século, com todo o seu peso e todo o seu dramatismo. Mas talvez só a sua história contenha todo aquele denso emaranhado de emoções e dramas que consegue impelir, ano após ano, tantos milhares de pessoas a percorrerem longos caminhos de neve para depositarem um cravo vermelho numas pedras com uns nomes gravados. Rosa Luxemburg e Karl Liebknecht - Die Toten mahnen Uns.


Ouça aqui a conferência do pensador marxista brasileiro radicado em França Michael Löwy sobre Rosa Luxemburgo, integrada no ciclo "Pensar os Pensadores do Socialismo", organizado pela CULTRA.
*Cappacete

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