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Ser de esquerda é não aceitar as injustiças, sejam elas quais forem, como um fato natural. É não calar diante da violação dos Direitos Humanos, em qualquer país e em qualquer momento. É questionar determinadas leis – porque a Justiça, muitas vezes, não anda de mãos dadas com o Direito; e entre um e outro, o homem de esquerda escolhe a justiça.
É ser guiado por uma permanente capacidade de se estarrecer e, com ela e por causa dela, não se acomodar, não se vender, não se deixar manipular ou seduzir pelo poder. É escolher o caminho mais justo, mesmo que seja cansativo demais, arriscado demais, distante demais. O homem de esquerda acredita que a vida pode e deve ser melhor e é isso, no fundo, que o move. Porque o homem de esquerda sabe que não é culpa do destino ou da vontade divina que um bilhão de pessoas, segundo dados da ONU, passe fome no mundo.
É caminhar junto aos marginalizados; é repartir aquilo que se tem e até mesmo aquilo que falta, sem sacrifício e sem estardalhaço. À direita, cabe a tarefa de dar o que sobra, em forma de esmola e de assistencialismo, com barulho e holofotes. Ser de esquerda é reconhecer no outro sua própria humanidade, principalmente quando o outro for completamente diferente. Os homens e mulheres de esquerda sabem que o destino de uma pessoa não deveria ser determinado por causa da raça, do gênero ou da religião.
Ser de esquerda é não se deixar seduzir pelo consumismo; é entender, como ensinou Milton Santos, que a felicidade está ancorada nos bens infinitos. É mergulhar, com alegria e inteireza, na luta por um mundo melhor e neste mergulho não se deixar contaminar pela arrogância, pelo rancor ou pela vaidade. É manter a coerência entre a palavra e a ação. É alimentar as dúvidas, para não cair no poço escuro das respostas fáceis, das certezas cômodas e caducas. Porém, o homem de esquerda não faz da dúvida o álibi para a indiferença. Ele nunca é indiferente. Ser de esquerda é saber que este “mundo melhor e possível” não se fará de punhos cerrados nem com gritos de guerra, mas será construído no dia-a-dia, nas pequenas e grandes obras e que, muitas vezes, é preciso comprar batalhas longas e desgastantes. Ser de esquerda é, na batalha, não usar os métodos do inimigo.
Fernando Evangelista

sexta-feira, janeiro 13, 2012

EUA: Urinando sobre as nossas cabeças 

 

Por Saul Leblon, no sítio Carta Maior:

A sensibilidade contemporânea foi em grande parte anestesiada pela naturalização midiática da violência social e política. Imagens e relatos burocratizados descarnam corpos e estatísticas de sua história e humanidade. Intencional ou não, o mecanismo dissolve a fronteira que separa a vítima do algoz. Mesmo o sangue, assim derramado, não deixa espaço para suas causas seminais. Às vezes um ruído cênico sacode a monotonia.



Risos sobre cadáveres, por exemplo. Soldados urinando sobre corpos sem vida. Vozes celebrando a 'chuva dourada' em corpos cinzas. Foi o que fez um vídeo postado no YouTube, nesta 4ª feira, em que mariners brancos, jovens, alegres aliviam suas bexigas e a humanidade que lhes resta sobre talibãs mortos a seus pés (http://www.liveleak.com). Um carrinho de pedreiro ao lado dos corpos, despejados com alguma simetria, e a sincronia real ou simulada das bexigas, sugere que a exibição teve o dedo de um cenógrafo cuidadoso.

O virtuosismo amador ganhará seu minuto de glória para sucumbir em seguida no fluxo que já tragou outras cenas de horror. As fotografia vazadas de Abu Ghraib em 2004 e 2006, por exemplo; as fotos reveladas pela Der Spiegel, em março de 2011, em que soldados igualmente jovens, posam sorridentes segurando cabeças de afegães abatidos como se fossem troféus de caça; ou ainda a esquecida humilhação de prisioneiros em uniforme cenoura, encapuzadas e enjaulados de joelhos na base militar dos EUA, em Guantánamo, sem direito a julgamento, sem comprovação de crime, sem prazo para sair do limbo jurídico.

O buraco negro da monotonia ensandecida poderia ser sacudido se o conformismo midiático desse à perversão a sua contrapartida racional. Humanos são feitos de razão e circunstâncias. As circunstâncias desse desfrute de impunidade tem sua origem institucional no arbítrio de um poder que reafirma sistematicamente seu direito imperial de decretar o estado de exceção a um planeta reduzido à condição de fronteira estendida de seus interesses. Foi o que reiterou o simpático Barack Obama na nebulosa dispersão do último dia de 2011.

Horas antes de embarcar de férias ao seu Havaí natal, o democrata eleito com a promessa de fechar Guantánamo, revalidou o Ato de Autorização de Defesa Nacional. Na essência, o mesmo sancionado por Bush, há dez anos, que 'legaliza' a existência do campo de concentração e proíbe o ingresso de seus prisioneiros ao território americano, impedindo-os de desfrutar do direito a habeas corpus, do veto a prisão sem evidencia formal de crime e outros marcos de legalidade que distinguem uma democracia de um estado de exceção.

Dias depois, em cinco de janeiro, o mesmo Obama anunciaria cortes no orçamento da defesa compensados, como advertiu, pela ênfase em operações secretas. Leia-se: atos de sabotagem, guerra cibernética e ataques fulminantes a alvos específicos. A julgar pelos assassinatos em série que já mataram quatro cientistas ligados ao programa nuclear iraniano, vetado pelo Império, a nova doutrina tem eficácia comprovada.

O alívio aterrador de bexigas militares sobre cadáveres talibãs ampara-se em precedente institucional à altura: o jorro contínuo de cinismo institucional despejado pela grande bexiga do norte nas nossas cabeças.

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