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Ser de esquerda é não aceitar as injustiças, sejam elas quais forem, como um fato natural. É não calar diante da violação dos Direitos Humanos, em qualquer país e em qualquer momento. É questionar determinadas leis – porque a Justiça, muitas vezes, não anda de mãos dadas com o Direito; e entre um e outro, o homem de esquerda escolhe a justiça.
É ser guiado por uma permanente capacidade de se estarrecer e, com ela e por causa dela, não se acomodar, não se vender, não se deixar manipular ou seduzir pelo poder. É escolher o caminho mais justo, mesmo que seja cansativo demais, arriscado demais, distante demais. O homem de esquerda acredita que a vida pode e deve ser melhor e é isso, no fundo, que o move. Porque o homem de esquerda sabe que não é culpa do destino ou da vontade divina que um bilhão de pessoas, segundo dados da ONU, passe fome no mundo.
É caminhar junto aos marginalizados; é repartir aquilo que se tem e até mesmo aquilo que falta, sem sacrifício e sem estardalhaço. À direita, cabe a tarefa de dar o que sobra, em forma de esmola e de assistencialismo, com barulho e holofotes. Ser de esquerda é reconhecer no outro sua própria humanidade, principalmente quando o outro for completamente diferente. Os homens e mulheres de esquerda sabem que o destino de uma pessoa não deveria ser determinado por causa da raça, do gênero ou da religião.
Ser de esquerda é não se deixar seduzir pelo consumismo; é entender, como ensinou Milton Santos, que a felicidade está ancorada nos bens infinitos. É mergulhar, com alegria e inteireza, na luta por um mundo melhor e neste mergulho não se deixar contaminar pela arrogância, pelo rancor ou pela vaidade. É manter a coerência entre a palavra e a ação. É alimentar as dúvidas, para não cair no poço escuro das respostas fáceis, das certezas cômodas e caducas. Porém, o homem de esquerda não faz da dúvida o álibi para a indiferença. Ele nunca é indiferente. Ser de esquerda é saber que este “mundo melhor e possível” não se fará de punhos cerrados nem com gritos de guerra, mas será construído no dia-a-dia, nas pequenas e grandes obras e que, muitas vezes, é preciso comprar batalhas longas e desgastantes. Ser de esquerda é, na batalha, não usar os métodos do inimigo.
Fernando Evangelista

segunda-feira, janeiro 16, 2012

O terror higienista




Wálter Maierovitch
São Paulo insiste na repressão e usa o crack como desculpa para segregar pobres. Foto: Agência Brasil
O fenômeno representado pelas drogas ilícitas é complexo. Desde o fracasso do proibicionismo, convencionado na sede nova-iorquina das Nações Unidas em 1961, vários países, preocupados com os direitos humanos e com a possibilidade de colocar a segurança pública na rota da civilidade, buscaram políticas próprias a fim de:
(1) contrastar a oferta pelo combate à economia das organizações criminais, (2) reduzir danos e riscos causados pelo consumo, (3) tratar sem crueldade os dependentes químicos, (4) eliminar os confinamentos territoriais, a exemplo das cracolândias, e (5) promover a reinserção social. A dimensão desse fenômeno foi mostrada na sexta-feira 6 pelos pesquisadores da University of New South Wales, na Austrália. Em um mundo com 7 bilhões de habitantes, uma pessoa em cada 20 consome habitualmente alguma droga proibida pela ONU. Temos um mínimo de 149 milhões de usuários e um máximo de 271 milhões. Por ano, as drogas ilícitas matam 250 mil pessoas.
A maconha é a droga proibida mais usada no mundo, consumida entre 125 milhões e 203 milhões de habitantes. A propósito de escolhas políticas, a Holanda admitiu, em 1968, para cortar o vínculo entre o traficante e o usuário, a venda de maconha em coffee shops. No primeiro dia de 2012, e com a volta dos conservadores ao poder, proibiu-se a venda ao turista estrangeiro. Segundo os economistas, haverá perda anual de 10 bilhões de euros, afetando o produto interno bruto holandês.
Na Suíça, não deram certo os espaços abertos para livre consumo. Dado o grande número de extracomunitários, que fizeram dos parques residências permanentes, com aumento de roubos, furtos e violência física, ocorreu uma correção de rota: desde 1995 o país fornece aos usuários drogas em locais fechados, com assistência médica.
Sobre extinção de áreas de confinamento, em Frankfurt foram implantadas as narcossalas em 1994, ou melhor, salas secretas para uso com apoio sociossanitário. Conforme apontei neste espaço em artigo intitulado “Cracolândia, a hora das narcossalas”, houve em Frankfurt e em outras oito cidades alemãs recuperações, reduções de uso e volta ao trabalho e às famílias. O sucesso levou, na Alemanha, as federações da Indústria e do Comércio a investirem 1 milhão de euros no projeto de narcossalas.
A política exitosa de Frankfurt foi copiada na Espanha. Nas grandes cidades dos EUA, aumentou o número de postos de saúde que ofertam metadona, droga substitutiva, para dependentes de heroína controlarem as crises de abstinência. Sobre as narcossalas, a Nobel de Medicina Françoise Barre Sinoussi luta pela implantação, em Paris, do modelo de Frankfurt.
As narcossalas foram fundamentais para o resgate social dos dependentes, antes empurrados para áreas urbanas degradadas, depois transformadas em confinamentos. Na capital paulista, a região central da Luz foi, por duas vezes, território de confinamento de prostitutas, ou seja, área onde os governos fizeram vista grossa para a exploração e o desfrutamento sexual de seres humanos.
Nos anos 1950, as prostitutas foram obrigadas a migrar da Luz para o bairro do Bom Retiro. Passados alguns anos, a prostituição e o rufianismo voltaram à Luz, em um confinamento chamado de Boca do Lixo. Nos anos 90, a Boca do Lixo cedeu lugar à Cracolândia. Um quadrilátero onde habitam ao menos 400 dependentes químicos e, diariamente, 1.664 usuários compram crack de pessoas a serviço de uma rede de abastecimento que as polícias estaduais nunca incomodaram.
Na Itália, conforme atestado pela ONU, a comunidade terapêutica denominada San Patrignano (Rimini), que acolhe 1,6 mil jovens, consegue recuperar 7 entre 10 que passam voluntariamente (não se aceita internação compulsória) pelos seus programas. San Patrignano é um centro de acolhimento sem discriminações ideológica, social e religiosa. É gratuito e não são aceitas verbas governamentais. Como empresa produtiva, banca as despesas.
Para acabar com uma Cracolândia, e sem um único posto de apoio médico-assistencial no local, a dupla Alckmin-Kassab, governador e prefeito, partiram para ações policialescas. Mais uma vez, assistiu-se à Polícia Militar atuando violentamente, sem conseguir expulsar os visíveis e expostos vendedores de crack.
A dupla busca a tortura físico-psicológica. Inventaram um novo tipo de pau de arara. Procuram, com o fim da oferta, provocar um quadro torturante e dramático de abstinência nos dependentes químicos. E, pelo sofrimento e desespero, os dependentes, na visão de Alckmin e Kassab, iriam buscar tratamento oficial. Esse torturante plano só é integrado no rótulo. A meta é “limpar o território” com ações militarizadas e empurrar para a periferia distante os “indesejados”.
Pano rápido. Nesse cenário desumano, que já dura mais de uma semana, percebe-se o sepulcral silêncio do ex-presidente Fernando Henrique Cardoso, que buscou no tema das drogas um palanque para se mostrar vivo politicamente. O silêncio de FHC é a prova provada da atuação farsante, própria de oportunistas.
*Gilsonsampaio

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