Claramente a favor do aborto
Não há Estado que tenha o direito de legislar sobre o uso que uma mulher faz do próprio corpo
Vladimir Safatle, CartaCapital
*esquerdopata
Vladimir Safatle, CartaCapital
Há algum tempo, a política brasileira tem sido periodicamente
chantageada pela questão do aborto. Tal chantagem demonstra a força de
certos grupos religiosos na determinação do ordenamento jurídico
brasileiro, o que evidencia como a separação entre Igreja e Estado está
longe de ser uma realidade efetiva entre nós. Uma das expressões mais
claras dessa força encontra-se no fato de mesmo os defensores do aborto
não terem coragem de dizer isso com todas as letras.
Sempre somos obrigados a ouvir afirmações envergonhadas do tipo: “Eu,
pessoalmente, sou contra, afinal, como alguém pode ser a favor do
aborto? Mas esta é uma questão de saúde pública, devemos analisá-la de
maneira desapaixonada…”
Talvez tenha chegado o momento de dizermos: somos sim absolutamente a
favor do aborto. Há aqui uma razão fundamental: não há Estado que tenha o
direito de legislar sobre o uso que uma mulher deve fazer de seu
próprio corpo. É estranho ver algumas peculiaridades brasileiras. Por
exemplo, o Brasil deve ser um dos poucos países onde os autoproclamados
liberais e defensores da liberdade do indivíduo acham normal que o
Estado se arrogue o direito de intervir em questões vinculadas à maneira
como uma mulher dispõe de seu próprio corpo.
Há duas décadas, a artista norte-americana Barbara Kruger concebera um
cartaz onde se via um rosto feminino e a frase: “Seu corpo é um campo de
batalha”. Não poderia haver frase mais justa a respeito da maneira com
que o poder na contemporaneidade se mostra em sua verdadeira natureza
quando aparece como modo de administração dos corpos e de regulação da
vida. Esta é a função mais elementar do poder: fazer com que sua
presença seja percebida sempre que o indivíduo olhar o próprio corpo.
Nesse sentido, não deixa de ser irônico notar como alguns setores do
cristianismo, como o catolicismo e algumas seitas pentecostais, parecem
muito mais preocupados com o corpo de seus fiéis que com sua alma. Daí a
maneira como transformaram, a despeito de outros segmentos do
cristianismo, problemas como o aborto, a sexualidade e o casamento
homossexual em verdadeiros objetos de cruzadas. Talvez seria
interessante lembrar: mesmo entre os cristão tais ideias são
controversas. Os anglicanos não veem o aborto como um pecado e mesmo
entre os luteranos, embora se digam contrários, ninguém pensaria em
excomungar uma fiel por ela ter decido fazer um aborto.
É claro que se pode sempre contra-argumentar dizendo que problemas como o
aborto não podem ser vistos exclusivamente como uma questão ligada à
autonomia a que tenho direito quando uso meu corpo. Pois haveria outra
vida a ser reconhecida enquanto tal. Esse ponto está entre os mais
inacreditáveis obscurantismos.
Uma vida em potencial não pode, em hipótese alguma, ser equiparada
juridicamente a uma vida em ato. Um embrião do tamanho de um grão de
feijão, sem autonomia alguma, parasita das funções vitais do corpo que o
hospeda e sem a menor atividade cerebral não pode ser equiparado a um
indivíduo dotado de autonomia das suas funções vitais e atividade
cerebral. Não estamos diante do mesmo fenômeno. A maneira com que certos
grupos políticos e religiosos se utilizam do conceito de “vida” para
unificar os dois fenômenos (dizendo que estamos diante da mesma “vida
humana”) é apenas uma armadilha ideo-lógica. A vida humana não é um
conceito biológico, mas um conceito político no qual encontramos a
sedimentação de valores e normas que nossa vida social compreende como
fundamentais. Se dizemos que alguém desprovido de atividade cerebral
está clinicamente morto, mesmo se ele conservar grande parte de suas
funções vitais ainda em atividade graças a aparelhos médicos, é porque
autonomia e autocontrole são valores fundamentais para nossa concepção
de vida humana.
Assim, quando certos setores querem transformar o debate sobre o aborto
em uma luta entre os defensores incondicionais da vida e os adeptos de
alguma obscura cultura da morte, vemos a mais primária tentativa de
transformar a vida em um conceito ideológico. Isso se admitirmos que
será necessariamente ideológico um discurso que quer nos fazer acreditar
que “as coisas falam por si mesmas”, que nossa definição de vida é algo
assentado nas leis cristalinas da natureza, que ela não é uma
construção baseada em valores sociais reificados.
Levando isso em conta, temos de saudar o fato de alguns arautos do
conservadorismo pretenderem colocar tal questão na pauta do debate
político brasileiro e esperar que existam algumas pessoas dispostas a
compreender a importância do que está em jogo. Desativar as molas do
poder passa pela capacidade de colocá-lo a uma distância segura de
nossos corpos.
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