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Ser de esquerda é não aceitar as injustiças, sejam elas quais forem, como um fato natural. É não calar diante da violação dos Direitos Humanos, em qualquer país e em qualquer momento. É questionar determinadas leis – porque a Justiça, muitas vezes, não anda de mãos dadas com o Direito; e entre um e outro, o homem de esquerda escolhe a justiça.
É ser guiado por uma permanente capacidade de se estarrecer e, com ela e por causa dela, não se acomodar, não se vender, não se deixar manipular ou seduzir pelo poder. É escolher o caminho mais justo, mesmo que seja cansativo demais, arriscado demais, distante demais. O homem de esquerda acredita que a vida pode e deve ser melhor e é isso, no fundo, que o move. Porque o homem de esquerda sabe que não é culpa do destino ou da vontade divina que um bilhão de pessoas, segundo dados da ONU, passe fome no mundo.
É caminhar junto aos marginalizados; é repartir aquilo que se tem e até mesmo aquilo que falta, sem sacrifício e sem estardalhaço. À direita, cabe a tarefa de dar o que sobra, em forma de esmola e de assistencialismo, com barulho e holofotes. Ser de esquerda é reconhecer no outro sua própria humanidade, principalmente quando o outro for completamente diferente. Os homens e mulheres de esquerda sabem que o destino de uma pessoa não deveria ser determinado por causa da raça, do gênero ou da religião.
Ser de esquerda é não se deixar seduzir pelo consumismo; é entender, como ensinou Milton Santos, que a felicidade está ancorada nos bens infinitos. É mergulhar, com alegria e inteireza, na luta por um mundo melhor e neste mergulho não se deixar contaminar pela arrogância, pelo rancor ou pela vaidade. É manter a coerência entre a palavra e a ação. É alimentar as dúvidas, para não cair no poço escuro das respostas fáceis, das certezas cômodas e caducas. Porém, o homem de esquerda não faz da dúvida o álibi para a indiferença. Ele nunca é indiferente. Ser de esquerda é saber que este “mundo melhor e possível” não se fará de punhos cerrados nem com gritos de guerra, mas será construído no dia-a-dia, nas pequenas e grandes obras e que, muitas vezes, é preciso comprar batalhas longas e desgastantes. Ser de esquerda é, na batalha, não usar os métodos do inimigo.
Fernando Evangelista

terça-feira, março 06, 2012

O fim da Europa

 

 

VLADIMIR SAFATLE 

"Husserl dizia que os povos, mesmo em sua hostilidade, se agrupam em tipos que têm um 'lar' territorial e um parentesco familiar, tal como os povos da Índia; mas só a Europa, malgrado a rivalidade de suas nações, proporia a si mesma e aos outros povos uma 'incitação a se europeizar cada vez mais', de modo que é a humanidade inteira que se aparenta a si neste Ocidente."
Essa afirmação de Gilles Deleuze e Félix Guattari, em "O Que É a Filosofia?", sintetiza bem como "Europa" foi, durante muito tempo, não a descrição de um espaço geográfico, mas o nome de um movimento de trans-formação sociocultural de escala global.
Se Deleuze e Guattari podem lembrar Edmund Husserl e afirmar que só a Europa proporia a outros povos uma incitação a se europeizar cada vez mais, foi porque ela representou mais do que um impulso colonial. Pois a incitação nunca tem como força a simples coerção.
Na verdade, "Europa" representou aquilo que um de seus primeiros heróis, Ulisses, encarnou -a saber, a capacidade de perder-se e a certeza de ser acolhido mesmo lá onde não encontramos mais nossa imagem.
"Europa" foi, durante certo tempo, o nome de um impulso para fora de si. Por isso, os bons europeus serão sempre Nietzsche, Freud, Spinoza, Paul Celan, Sartre, Mallarmé, Debussy e tantos outros: aqueles que suspeitam de si e de sua própria língua.
Mas essa Europa perdeu força. Ela se debate contra o seu fim. Em um momento no qual a União Europeia rifou seu futuro ao se mostrar, não como uma força propulsora de transformações econômicas, mas como um mero instrumento de defesa do sistema financeiro, a Europa vê o motor do capitalismo deslocar-se, mais uma vez, para fora de suas fronteiras. Primeiro, os Estados Unidos, depois o Japão e, agora, a China.
Como se não bastasse, as antigas rivalidades retornam. Gregos lembram das dívidas de guerra de alemães, finlandeses culpam os europeus do sul pela crise, belgas demonstram que não é necessário imigrantes para fazer circular o ódio social.
É nesse contexto de crise e degradação que ouvimos brados de defesa da "civilização europeia" vindos, normalmente, daqueles que confundem "civilização" com hábitos alimentares e dialetos camponeses.
Essa é uma triste prova de que a "civilização europeia" aparece quando a "Europa" deixa de representar ideias renovadoras e capazes de incitar outros povos.
Talvez isso nos lembre como precisamos procurar, como dizia Deleuze, por uma nova terra e por um povo que não existe ainda.

*esquerdopata

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