O fim da Europa
VLADIMIR SAFATLE
"Husserl dizia que os povos, mesmo em sua hostilidade, se agrupam em
tipos que têm um 'lar' territorial e um parentesco familiar, tal como os
povos da Índia; mas só a Europa, malgrado a rivalidade de suas nações,
proporia a si mesma e aos outros povos uma 'incitação a se europeizar
cada vez mais', de modo que é a humanidade inteira que se aparenta a si
neste Ocidente."
Essa afirmação de Gilles Deleuze e Félix Guattari, em "O Que É a
Filosofia?", sintetiza bem como "Europa" foi, durante muito tempo, não a
descrição de um espaço geográfico, mas o nome de um movimento de
trans-formação sociocultural de escala global.
Se Deleuze e Guattari podem lembrar Edmund Husserl e afirmar que só a
Europa proporia a outros povos uma incitação a se europeizar cada vez
mais, foi porque ela representou mais do que um impulso colonial. Pois a
incitação nunca tem como força a simples coerção.
Na verdade, "Europa" representou aquilo que um de seus primeiros heróis,
Ulisses, encarnou -a saber, a capacidade de perder-se e a certeza de
ser acolhido mesmo lá onde não encontramos mais nossa imagem.
"Europa" foi, durante certo tempo, o nome de um impulso para fora de si.
Por isso, os bons europeus serão sempre Nietzsche, Freud, Spinoza, Paul
Celan, Sartre, Mallarmé, Debussy e tantos outros: aqueles que suspeitam
de si e de sua própria língua.
Mas essa Europa perdeu força. Ela se debate contra o seu fim. Em um
momento no qual a União Europeia rifou seu futuro ao se mostrar, não
como uma força propulsora de transformações econômicas, mas como um mero
instrumento de defesa do sistema financeiro, a Europa vê o motor do
capitalismo deslocar-se, mais uma vez, para fora de suas fronteiras.
Primeiro, os Estados Unidos, depois o Japão e, agora, a China.
Como se não bastasse, as antigas rivalidades retornam. Gregos lembram
das dívidas de guerra de alemães, finlandeses culpam os europeus do sul
pela crise, belgas demonstram que não é necessário imigrantes para fazer
circular o ódio social.
É nesse contexto de crise e degradação que ouvimos brados de defesa da
"civilização europeia" vindos, normalmente, daqueles que confundem
"civilização" com hábitos alimentares e dialetos camponeses.
Essa é uma triste prova de que a "civilização europeia" aparece quando a
"Europa" deixa de representar ideias renovadoras e capazes de incitar
outros povos.
Talvez isso nos lembre como precisamos procurar, como dizia Deleuze, por uma nova terra e por um povo que não existe ainda.
*esquerdopata
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