SP virou cenário para Mad Max
No fim, não foi muito diferente do que aconteceu na Cracolândia, no
começo do ano. Para resolver um problema, a autoridade anuncia uma ação
com estardalhaço sem medir as consequências nem saber quem são, ou o que
querem, as partes envolvidas. Resultado: a cidade aplaude a cacetada
sobre os supostos delinquentes, mas o “tumor”, palavra de um policial,
em vez de combatido, é espalhado.
O mesmo com o Pinheirinho – tragédia, neste caso, patrocinada pelo
governo do estado: a polícia tira as famílias “invasoras” no tapa, passa
o trator em cima de suas casas “ilegais” e pronto. Dane-se quem não tem
outra alternativa se não se instalar de mala sem cuia (porque não houve
tempo de retirar demais pertences) em igrejas, escolas, barracões da
cidade. O problema é delas, e o estado só cumpre a lei.
Da mesma forma, a restrição da circulação de caminhões pelas veias
arteriais de São Paulo foi anunciada sem que se pensasse em alternativas
para os entregadores.
Faz muito tempo que os agora chamados “ecochatos” e urbanistas avisam: a
cidade vai parar. A cada ano são anunciados com trombetas os números
recordes sobre emplacamento de carros. A renda dos consumidores sobe e,
em vez de irem para Meca, a classe média vai às concessionárias – e de
lá para os mesmos lugares, os mesmos parques, os mesmos shoppings, as
mesmas padarias, os mesmos cinemas. Até para correr no Ibirapuera (a pé)
andam quilômetros (de carro) só para estacionar.
Na metrópole, há anos ciclistas pedem espaço e usuários de transporte
público clamam por serviços decentes, vias alternativas, faixas
exclusivas. Mas, em ano eleitoral, é sempre mais fácil jogar de vez a
água suja com o bebê junto.
Foi o que aconteceu no protesto dos caminhoneiros. Prejudicada pela
canetada, que deixou como opção trabalhar à noite (sob o risco de
assalto) ou ampliar o trajeto (de novo, por falta de alternativas), a
categoria simplesmente decidiu parar. Em três dias, a maior metrópole do
País entrou em parafuso. “Não nos querem na cidade, vamos embora dela”.
Foi com restrição que os caminhoneiros responderam às restrições. E
restrições não somente de circulação, mas de diálogo. Assim, lançaram
aos esfomeados paulistanos só dois milhões de litros de combustíveis em
dois dias (a média diária é de 20 a 30 milhões), dos quais apenas 10%
chegou aos postos.
O racionamento nas praças do consumidor final transformou São Paulo numa
cidade cenográfica perfeita para a série de filmes Mad Max, a sequência
futurista de George Miller em que a falta de combustíveis levava os
homens a se matar como bichos primatas.
Pois
na quarta-feira 7 veio a notícia, por meio dos portais, de que um homem
foi assassinado a tiros enquanto abastecia. A primeira suspeita – a
essa altura praticamente descartada porque o criminoso fugiu a pé – foi
que o sujeito havia furado a fila para abastecer.
Ainda que delirante, a desconfiança já acusava a paranoia: a realidade
da cidade (que já tem ares de fim de mundo com suas áreas verdes
escassas, rios poluídos, gente de cara amarrada no trânsito passando por
cima de pedestres e ciclistas como papel) estava a cara da ficção.
Gerentes de postos de gasolina colocavam o preço do produto na
estratosfera e iam para a cadeia por prática abusiva; caminhões-tanque
eram escoltados pela polícia como se levassem água para o que restava de
uma humanidade sedenta; os usuários entraram em parafuso e eram capazes
de vender a mãe por uma jarra de petróleo bruto, o mesmo material que
há quase um século jorra com sangue e bombas no Oriente Médio, seu maior
polo produtor.
A cretinice era tamanha que parecia difícil acreditar nos relatos à la
classe média sofre publicados nos jornais. Um motorista chegou a contar
que circulou por 20 postos em vários bairros e não encontrou nada.
Circulou como? De carro. Como este, os relatos se multiplicavam.
Outro motorista amarrado pela crise preferiu levar os filhos para a
escola de táxi – que, até o fechamento deste texto, ainda usava
combustível ou derivado para circular. A queixa maior, no entanto, é
que, acostumado a acordar às 8h, teve de saltar da cama uma hora a menos
nos últimos dias…
Caso
por caso, a crise deixou exposta novamente a maneira irracional como
viramos escravos dos automóveis. Em vez de mobilização por demandas
coletivas, ainda restritas aos ciclistas mais engajados, vemos um modelo
ainda intacto de urbanização, em que poucos corredores de tráfego, como
as marginais, a Faria Lima e o Minhocão, concentram boa parte do
movimento sem vida ao redor, sem moradias nem parques ou áreas de
convivência.
Pelo contrário, a cidade cospe seus habitantes para lugares cada vez
mais distantes, e deixa como rastro apenas terreno fértil para a festa
da especulação, da qual só participam sedes das empresas capazes de
pagar aluguéis astronômicos para operar nessas vias.
É inútil lembrar que as principais beneficiadas deste modelo, as grandes
construtoras, são as principais financiadores de campanha das
autoridades que, numa canetada, decidem quando e onde trabalhadores
podem circular justamente para abastecer os outros milhões de
trabalhadores.
No fim das contas, nós, os petrodependentes, podemos praguejar o quanto
quisermos contra os sindicalistas que hoje tumultuam nossa ordem. Isso
só nos fará dormir tranquilos, e iludidos, de que antes da paralisação
havia alguma ordem.
O que os motoristas de caminhão fizeram foi dar exemplo de como se
manifesta repúdio contra canetadas mal planejadas – e isso num tempo em
que estender faixas na Paulista em dia de feriado virou sinônimo de
desobediência civil. Se meia dúzia de gatos pingados, mais úteis à
cidade do que muito autor de normas esdrúxulas, fizesse o mesmo até
conseguir direitos básicos (como o de ir e vir sem riscos de ser
esmagado), São Paulo e o País seriam lugares mais interessantes, e menos
claustrofóbicos, para se viver.
Matheus Pichonelli-CartaCapital
*oterrordonordeste
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