Um crucifixo na parede não é um objeto de decoração
Territórios livres
Imagine que você é o Galileu e está sendo processado pela Santa
Inquisição por defender a ideia herética de que é a Terra gira em torno
do Sol e não o contrário. Ao mesmo tempo você está tendo problemas de
família, filhos ilegítimos que infernizam a sua vida e dívidas, que
acabam levando você a outro tribunal, ao qual você comparece até com uma
certa alegria. No tribunal civil será você contra credores ou filhos
ingratos, não você contra a Igreja e seus dogmas pétreos. Você receberá
uma multa ou uma reprimenda, ou talvez, com um bom advogado, até consiga
derrotar seus acusadores, o que é impensável quando quem acusa é a
Igreja. Se tiver que ser preso será por pouco tempo, e a ameaça de ir
para a fogueira nem será cogitada. No tribunal laico, pelo menos por um
tempo, você estará livre do poder da Igreja. É com esta sensação de
alívio, de estar num espaço neutro onde sua defesa será ouvida e talvez
até prevaleça, que você entra no tribunal. E então você vê um enorme
crucifixo na parede atrás do juiz. Não adianta, suspiraria você,
desanimado, se fosse Galileu. O poder dela está por toda a parte. Por
onde você andar, estará no território da Igreja. Por onde seu pensamento
andar, estará sob escrutínio da Igreja. Não há espaços neutros.
Um crucifixo na parede não é um objeto de decoração, é uma declaração.
Na parede de espaços públicos de um país em que a separação de Igreja e
Estado está explícita na Constituição, é uma desobediência, mitigada
pelo hábito. Na parede dos espaços jurídicos deste país, onde a
neutralidade, mesmo que não exista, deve ao menos ser presumida, é um
contrassenso - como seria qualquer outro símbolo religioso pendurado. É
inimaginável que um Galileu moderno se sinta acuado pela simples visão
do símbolo cristão na parede atrás do juiz, mesmo porque a Igreja
demorou mas aceitou a teoria heliocêntrica de Copérnico e ninguém mais é
queimado por heresia. Mas a questão não é esta, a questão é o nosso
hipotético e escaldado Galileu poder encontrar, de preferência no poder
judiciário, um território livre de qualquer religião, ou lembrança de
religião.
Fala-se que a discussão sobre crucifixos em lugares públicos ameaça a
liberdade de religião. É o contrário, o que no fundo se discute é como
ser religioso sem impor sua religião aos outros, ou como preservar a
liberdade de quem não acredita na prepotência religiosa. Com o
crescimento político das igrejas neopentecostais, esta preocupação com a
capacidade de discordar de valores atrasados impostos pelos religiosos a
toda a sociedade, como nas questões do aborto e dos preservativos,
tornou-se primordial. A retirada dos crucifixos das paredes também é uma
declaração, no caso de liberdade.
*esquerdopata
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