A descarada defesa da Constituição feita por FHC
Paulo Nogueira
Quando me lembro de algumas coisas que disse, sinto inveja dos mudos, escreveu Sêneca, o grande estoico.
Pensei nisso quando li a absurda declaração de FHC sobre a prisão dos condenados do Mensalão.
Foram palavras cínicas, falaciosas, abjetas, cruéis – enfim, uma declaração inteiramente apropriada à reflexão de Sêneca.
FHC cresceria se tivesse uma única palavra de conforto para a família de
Genoino, por exemplo. Mas não: ele pareceu um Joaquim Barbosa sem toga
mas com a mesma inclemência brutal.
Dizer que os réus descumpriram a Constituição é particularmente chocante
quando se sabe que FHC só pôde ter seu segundo mandato porque o
dinheiro comprou no Congresso os votos necessários para mudar a
Constituição.
O então deputado do Acre Narciso Mendes contou tudo à Folha, que o
tratou como “Senhor X”. Mendes, hoje com 67 anos, recebeu 200 000 reais,
como muitos de seus colegas. Em dinheiro de hoje, é cerca de 530 000
reais.
Abaixo, um trecho de uma reportagem da Folha naqueles dias:
“O
dinheiro (…) só foi entregue aos parlamentares na manhã do dia da
votação do primeiro turno da emenda da reeleição, 28 de janeiro, uma
terça-feira.
A
entrega dos 200 000 reais em dinheiro, para cada deputado, foi feita
mediante a devolução dos cheques pré-datados — que foram rasgados (…).
A
troca dos cheques por dinheiro ocorreu em um local combinado em
Brasília. Cada deputado se apresentou, rasgou seu cheque na hora e
recebeu o pagamento em dinheiro dentro de uma sacola.”
Todo mundo sabia quem era o “Senhor X”, mas isso não estimulou nenhuma
empresa de mídia a ir atrás de uma história simplesmente sensacional de
corrupção.
O motivo é que FHC era amigo.
Quase que na mesma época, ele apareceu numa foto ao lado de Roberto
Marinho para comemorar a inauguração de uma gráfica com a qual RM
imaginava que fosse imprimir mais de 1 milhão de exemplares do Globo.
A despeito da fortuna pessoal de Roberto Marinho e do dinheiro que
jorrava torrencialmente em direção à Globo, a gráfica foi financiada com
recursos públicos do BNDES.
As companhias de mídia – beneficiadas ainda hoje por um regime de
reserva de mercado – sempre foram malgeridas por famílias acostumadas a
fazer lucro por formas mais fáceis que o trabalho duro e arriscado no
estilo de Murdoch. Para compensar a administração caótica, o Estado
sempre as tratou como filhas diletas e mimadas.
Pelas mamatas dadas às companhias jornalísticas, FHC foi recompensado pelo silêncio delas no caso do “Senhor X”.
Mas os livros de história, que não serão escritos pelos Mervais nem
pelos Jabores, e muito menos pelos Azevedos, dirão, objetivamente, que
FHC comprou uma nova Constituição para poder se reeleger.
Narciso Mendes aparece num livro recente do jornalista Palmério Dória.
Nele, Mendes repete o que é amplamente sabido: todo mundo sabia que ele
era o “Senhor X”.
Admito até que, pragmaticamente, FHC diga que as circunstâncias da época
forçaram a compra de votos. Ele poderia dizer que é bom, para o Brasil,
que um presidente possa ter dois mandatos, e que as malas de dinheiro
foram a única maneira de conseguir isso.
Mas é inadmissível, mais, é intolerável que ele, agora, lance acusações
em nome de uma Constituição que ele comprou como se estivesse num
lupanar.
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