Corte Interamericana pode SIM exigir novo julgamento
No último dia 11, a Folha de S.Paulo publicou reportagem intitulada "Corte Interamericana de Direitos Humanos não é tribunal penal de revisão, diz presidente",
segundo a qual Diego Garcia-Sayán, seu presidente, teria afirmado que a
"corte não pode modificar uma sentença. Se houve pena de prisão, ela
não pode aumentá-la ou reduzi-la".
De fato, está correto o presidente da Corte Interamericana quando
destaca que o tribunal não revisa "penas", ou seja, não se manifesta
sobre temas que envolvem um processo "penal" concluído em um dos
Estados-partes. Assim, a Corte não diminui ou majora uma pena criminal
imposta pelo Poder Judiciário de um Estado-parte na Convenção Americana
de Direitos Humanos, e tal é assim pelo simples motivo de que não se
trata de um Tribunal Penal Internacional. Aliás, tribunal dessa
categoria (penal) só tem um em todo o mundo: trata-se do Tribunal Penal
Internacional, que tem sede na Haia (Holanda) e cuja competência para
julgamento diz respeito a crimes que envolvem a humanidade como um todo,
a exemplo do genocídio, dos crimes contra a humanidade, dos crimes de
guerra etc.
Contudo, o que pretendem os condenados na AP 470
– e isso a reportagem não deixou claro – é outra coisa bem diferente,
nada tendo que ver com a revisão das "penas" impostas. O que pretendem é
que lhes seja oportunizado novo julgamento em razão de ter o STF
afrontado a regra do duplo grau de jurisdição, prevista no art. 8º,
inciso 2, letra h, da Convenção Americana sobre Direitos Humanos.
De fato, ainda que o Tribunal interamericano não revise "penas", pode
perfeitamente condenar o Estado brasileiro a dar a oportunidade de novo
julgamento a todos os réus que não detinham foro por prerrogativa de
função à época do julgamento.
A questão jurídica aberta, muito simplesmente, é a seguinte: o STF
deveria ter desmembrado o processo do mensalão ao menos para os réus que
não detinham, à época do julgamento, foro por prerrogativa de função; e
assim não procedeu. Com isto, violou uma regra de direito internacional
– a do "duplo grau de jurisdição" – prevista na Convenção Americana
sobre Direitos Humanos de 1969, conhecida como Pacto de San José da
Costa Rica, tratado internacional de direitos humanos que o Brasil
ratificou (obrigou-se) em 1992.
Há, inclusive, um precedente já julgado pela Corte Interamericana sobre o
assunto, e que se encaixa como uma luva à discussão. Trata-se do Caso
Barreto Leiva Vs. Venezuela, julgado pela Corte em 17 de novembro de
2009, ocasião em que o tribunal da OEA entendeu que a Venezuela violou o
direito ao duplo grau de jurisdição ao não oportunizar ao sr. Barreto
Leiva o direito de apelar para um tribunal superior – a sua condenação
também ocorreu em instância única (no caso do mensalão, este tribunal é o
STF). Em outras palavras, a Corte Interamericana entendeu que o réu não
dispôs, em consequência da conexão, da possibilidade de impugnar a
sentença condenatória, o que viola frontalmente a garantia do duplo grau
prevista (sem qualquer ressalva) na Convenção Americana sobre Direitos
Humanos (art. 8, 2, h).
Como se percebe, o precedente do Caso Barreto Leiva coincide
perfeitamente com a situação dos réus condenados na AP 470, uma vez que
foram impedidos de recorrer da sentença condenatória para outro tribunal
interno, em desrespeito à regra internacional do duplo grau que o
Brasil aceitou e se comprometeu a cumprir. A Corte Interamericana terá
que decidir se a aceitação dos embargos infringentes pelo STF supre a
regra do duplo grau prevista na Convenção Americana.
Em suma, ainda que o tribunal da OEA não revise "penas", não há qualquer
óbice – e é para isso que ele existe! – para que condene o Estado
brasileiro por violação da Convenção Americana, mandando eventualmente
oportunizar àqueles condenados novo julgamento, em razão da não
observância da garantia processual internacional do duplo grau de
jurisdição. Isso é o que merecia ser esclarecido.
Valerio de Oliveira Mazzuoli
é pós-doutor pela Universidade de Lisboa, doutor summa cum laude em
Direito Internacional pela UFRGS - Universidade Federal do Rio Grande do
Sul e professor da UFMT - Universidade Federal de Mato Grosso. Matéria
publicada no jornal MIGALHAS nº 3.251
*comtextolivre
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