O que Herzog pode ensinar sobre Genoino
Qualquer problema que Genoino possa
enfrentar na prisão pode transformar-se numa tragédia política de
consequências imprevisíveis
Ao apresentar o pedido de transferência para o regime de prisão
domiciliar, o deputado José Genoino coloca uma questão complicada para o
presidente do STF, Joaquim Barbosa, que terá a palavra final sobre a
decisão.
A solicitação de Genoino, apoiada em vários laudos médicos, deixa nas
mãos do Estado toda responsabilidade por qualquer problema que possa lhe
acontecer.
Se essa situação já fora juridicamente estabelecida no momento em que
Genoino se tornou prisioneiro, como ocorre com todo cidadão encarcerado,
ficou ainda mais clara depois do pedido de transferência, que serve
como um alerta para sua condição médica.
Cardiopata grave, segundo médicos que o examinaram, qualquer problema
que o deputado possa enfrentar na prisão – como uma arritmia grave, ou
mesmo um enfarto – pode transformar-se numa tragédia política de
consequências imprevisíveis.
A jurisprudência firmada é conhecida. Em 1975, o jornalista Vladimir
Herzog foi massacrado pela tortura no DOI-CODI paulista. Três anos
depois, o juiz Márcio José de Moraes assinou uma sentença que teria um
peso importante na democratização do país, responsabilizando a União
pela tortura e morte de Herzog.
Do ponto de vista da conjuntura política, não há semelhança entre as
duas situações. O Brasil vive hoje sob o mais prolongado regime de
liberdades de sua história, preparando-se, pela primeira vez desde 1930,
para a sexta eleição presidencial resolvida pelo voto direto, em urna.
Não há tortura nem execução de adversários políticos.
A semelhança se encontra na responsabilidade do Estado. É a mesma, num caso ou em outro.
A gravidade do estado de saúde de Genoino é um fato difícil de
contestar. No final de julho ele se encontrava entre a vida e a morte
quando fez uma operação de emergência na artéria aorta, que foi
parcialmente substituída por um tubo de material sintético.
Dois meses depois, quando apresentou o pedido de aposentadoria por
invalidez apresentado ao Congresso, Genoino incluiu uma avaliação da
Sociedade Brasileira de Cardiologia sobre sua doença:
“As doenças da aorta,” mencionou, “são patologias com morbi-mortalidade
elevada. Tanto o tratamento clínico como o cirúrgico ainda estão
relacionados a elevadas taxas de mortalidade, tornando esse grupo de
patologias alvo de extrema importância no tópico das patologias graves.”
No laudo que assinou depois de uma consulta de madrugada no presídio da
Papuda, o doutor Daniel França registrou riscos provocados pelos
problemas de coagulação de Genoino, que podem produzir trombose ou
sangramento.
Se você entrar no melhor hospital da cidade, do bairro, do mundo, irá
comprovar que a medicina mais avançada não abandonou o estágio de
filosofia pré-socrático – quanto mais sabe, mais sabe que nada sabe.
Como sabe qualquer paciente que já visitou um cardiologista, em
particular, o grau de certeza dos prognósticos para doenças do coração é
um dos mais incertos que se conhece.
Os casamentos entre medicina e política são antigos mas nem sempre
trazem bons frutos, o que recomenda às autoridades assegurar uma
autonomia respeitável aos veredictos médicos.
Para ficar na legislação trabalhista, as audiências da Justiça do
trabalho estão cheias de casos que envolvem empresas que desprezaram
recomendações determinadas por seu departamento médico. Não é só.
Um dos traços mais vergonhosos do regime militar consistiu em subordinar
os médicos a seus interesses. Doutores que hoje escondem a verdadeira
identidade dos vizinhos, dos parentes e também de filhos e netos eram
chamados a aconselhar torturadores na aplicação de eletro-choques e
outros maus tratos.
Em sua ausência absoluta de compromissos com a vida humana, doutores
alimentavam a ilusão megalomaníaca de que haviam descoberto a fronteira
científica entre a vida e a morte, definindo exatamente a hora em que a
violência deveria ser interrompida – e quando poderia ser reiniciada. Em
sua agonia, que envolve mistérios profundos até hoje, o ex-deputado e
empresário Rubens Paiva teve a companhia de um médico dessa categoria, a
quem disse o nome, momentos antes de desaparecer.
Não há, obviamente, a mais leve relação entre estes universos, de 1970 e 2013. Nenhuma.
O perigo se encontra num eventual namoro com situações de risco. O problema, aqui, não é médico, mas político.
Vivemos num país onde a noção demagógica de que a delinquência de toda
natureza – inclusive no universo político – se resolve com violência
aberta e punições cada vez mais duras. Essa visão costuma ser estimulada
24 horas por dia por autoridades policiais e políticos conservadores.
São pessoas que consideram direitos humanos como sinônimos de mordomia
para criminosos e garantias constitucionais como eufemismo para a
impunidade. O ibope para ideias selvagens – como pena de morte – é
altíssimo nesses círculos. O mesmo vale para a proposta de redução da
maioridade penal.
Essa visão inclui atitudes de desrespeito pelos direitos mais
elementares dos presos da ação penal 470 – e aqui também o caso de
Genoino tem semelhança com os piores momentos de nosso passado.
“Morra!!!,” escreveram cidadãos com nome e endereço nas redes sociais,
quando leram a notícia de que o deputado havia ingressado com o pedido
de prisão domiciliar. “Morte aos terroristas,” berravam cidadãos comuns
quando equipes do porão militar prendiam militantes da luta armada para
encaminhá-los para salas de tortura.
O pedido de Genoino certamente irá provocar reações desse tipo.
Mas tem a utilidade de mostrar ao Brasil o caminho do Direito e da
Democracia, que todos aprendemos a valorizar após um aprendizado longo e
difícil.
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