"Não penso, logo relincho": os maiores clichês dos papagaios da direita
quarta-feira, 27 de novembro de 2013
"Não penso, logo relincho": os maiores clichês dos papagaios da direita
- por Matheus Pichonelli
Dizem que uma mentira repetida à exaustão se transforma em verdade. Pura
mentira. Uma mentira repetida à exaustão é só uma mentira, que descamba para o
clichê, que descamba para o discurso.
E o discurso, quando mal calibrado, é o terreno para legitimar ofensas,
preconceitos, perseguições e exclusões ao longo da História. Nem sempre é
resultado da má fé.
Por estranho que pareça, é na maioria das vezes fruto da
indigência mental – uma indigência mental que assola as escolas, a imprensa, as
tribunas, as mesas de bares, as redes sociais.
Com os anos, a liberdade dos leitores para se manifestar sobre qualquer
assunto e o exercício de moderação de comentários nos levam a reconhecer um
clichê pelo cheiro.
Listamos alguns deles abaixo com um apelo humanitário: ao replicar, você
não está sendo original; está apenas repetindo uma fórmula pronta sem precisar
pensar sobre tema algum. E um clichê repetido à exaustão, vale lembrar, não é
debate. É apenas relincho*.
“Negros tem preconceitos contra eles mesmos”
Tentativa clássica de terceirizar o próprio racismo, é a frase mais falada
das redes sociais durante o Dia da Consciência Negra. É propagada justamente por
quem mais precisa colocar a mão na consciência em datas como esta: pessoas que
nunca tomaram enquadro na rua nem foram preteridas em entrevistas de emprego sem
motivos aparentes. O discurso é recorrente na boca de quem jamais se questionou
por que a maioria da população brasileira não circula em ambientes frequentados
pela elite financeira e intelectual do País, como universidades, centros
culturais, restaurantes, shows e centros de compra. Tem a sua variação
homofóbica aplicada durante a Parada Gay. O sujeito tende a imaginar que Dia
Branco e Dia Hétero são equivalentes porque ignora os processos históricos de
dominação e exclusão de seu próprio país.
“Não precisamos de consciência preta, parda ou branca. Precisamos de
consciência humana”
Eis uma verdade fatiada que deixa algumas perguntas no contrapé: o
manifestante a exigir direitos iguais não é gente? O que mais se busca, nessas
datas, se não a consciência humana? Ou ela seria necessária, com ou sem feriado,
caso a cor da pele (ou o gênero ou a sexualidade) não fosse, ainda hoje, fatores
de exclusão e agressão?
“Heteros morrem mais do que homossexuais. Portanto, somos mais
vulneráveis”
É o mesmo que medir o volume de um açude com uma régua escolar. Crimes como
homicídio, latrocínio, roubo ou furto têm causas diversas: rouba-se ou mata-se
por uma carteira, por ciúmes, por fome, por motivo fútil, por futebol, mas não
necessariamente por causa da orientação sexual da vítima. O argumento é
utilizado por quem nunca se perguntou por que ninguém acorda em um belo dia e
decide estourar uma barra de ferro na cabeça de alguém só porque este alguém
gosta e anda de mãos dadas com alguém do sexo oposto. O crime motivado por ódio
contra heterossexuais é tão plausível quanto ser engolido por uma jaguatirica em
plena Avenida Paulista.
“Estamos criando uma ditadura gay (ou racial) no Brasil. O que essas
pessoas querem é privilégio”
Frase utilizada por quem jamais imaginou a seguinte cena: o sujeito acorda,
vê na tevê sempre os mesmos apresentadores, sempre as mesmas pautas, sempre as
mesmas gracinhas. No caminho do trabalho, ouve ofensas de pedestres, motoristas
e para constantemente em uma mesma blitz que em tese serviria para todos. Mostra
documento, RG. Ouve risada às suas costas. Precisa o tempo todo provar que
trabalha e paga imposto (além, é claro, de trabalhar e pagar imposto). Chega ao
trabalho e é recebido com deferência: “oi boneca”; “oi negão”; “veio sem camisa
hoje?”. Quando joga futebol, vê a torcida imitando um macaco, jogando bananas ao
campo, ou imitando gazelas. E engasga toda vez que vira as costas e se descobre
alvo de algum comentário. Um dia diz: “apenas parem”. E ouve como resposta que
ele tem preconceito contra a própria condição ou está em busca de privilégio.
Resultado: precisamos de um novo glossário sobre privilégios.
“A mulher deve se dar o valor”
Repetida tanto por homens como por mulheres, é a confissão do recalque, em
um caso, e da incompetência, no outro: o homem recorre ao mantra para
terceirizar a culpa de não controlar seus próprios instintos; a mulher, por pura
assimilação dos mandamentos do pai, do marido e dos irmãos. Nos dois casos o
interlocutor acredita que, ao não se dar o valor, a menina assume por sua conta
e risco toda e qualquer violência contra sua pretensão. Para se vestir como
quer, andar como quer, dizer e fazer o que quer com quem bem quiser, ouvirá, na
melhor das hipóteses, que não é a moça certa para casar; na pior, que foi ela
quem provocou a agressão.
“Os homens também precisam ser protegidos da violência feminina”
Na Lua, é possível que a violência entre gêneros seja equivalente. Na
Terra, ainda está para aparecer o homem que apanhou em casa porque foi chamado
de gostoso na rua, levou mão na bunda, ouviu assobios ou ruídos com a língua sem
pedir a opinião da mulher. Também não há relevância estatística para os homens
que tiveram os corpos rasgados e invadidos por grupos de mulheres que dominam as
delegacias do País e minimizam os crimes ao perguntar: “Quem mandou tirar a
camisa?”.
“Se ela se deixou ser filmada, é porque quis se exibir”
Verdade. Mas não leva em conta um detalhe: existe alguém do outro lado da
tela, ou da câmera. Este alguém tem um colchão de conforto a seu favor. Se um
dia o vídeo vazar, será carregado nos braços como comedor. Ela, enquanto isso,
vai ser sempre a exibida. A puta. A idiota que deixou ser flagrada. A vergonha
da família. A piada na escola. Parece uma relação bastante equilibrada,
não?
“O humor politicamente correto é sacal”
É a mais pura verdade em um mundo no qual o politicamente incorreto serve
para manter as posições originais: ricos rindo de pobres, paulistas
ridicularizando nordestinos, brancos ricos fazendo troça de mulatos pobres,
machões buscando graça na vulnerabilidade de gays e mulheres. As provocações são
brincadeiras saudáveis à medida que a plateia não se identifica com elas: a
graça de uma piada sobre português é proporcional à distância do primeiro
português daquele salão. Via de regra, a frase é usada por quem jura se ofender
quando chamado de girafa branca tanto quanto um negro ao ser chamado de macaco.
Só não vale perguntar se o interlocutor já foi chamado de “elemento suspeito”,
com tapas e humilhações, pelo simples fato de ser alto como o artiodátilo.
“Bolsa Família incentiva a vagabundagem. Pegar na enxada e trabalhar
ninguém quer”
Há duas origens para a sentença. Uma advém da bronca – manifestada,
ironicamente, por quem jamais pegou em enxada – por não se encontrar hoje em dia
uma boa empregada doméstica pelo mesmo preço e a mesma facilidade. A outra
origem é da turma do “pegar o jornal e ler além do horóscopo ninguém quer”; se
quisesse, o autor da frase saberia que o Bolsa Empreiteiro (que também dispensa
a enxada) consome muito mais o orçamento público do que programa de
transferência de renda. Ou que a maioria dos beneficiários de Bolsa Família não
só trabalha como é obrigada a vacinar os filhos, manter a regularidade na escola
e atravessar as portas de saída do programa. Mas a ojeriza sobre números e fatos
é a mesma que consagrou a enxada como símbolo do nojo ao trabalho.
“Na ditadura as coisas funcionavam”
Frase geralmente acolhida por pacientes com síndrome de Estocolmo. Entre
1964 e 1985, a economia nacional crescia para poucos, às custas de endividamento
externo e da subserviência a Washington; universalização do ensino e da saúde
era piada pronta, ninguém podia escolher os seus representantes, a imprensa não
podia criticar os generais e a sensação de segurança e honestidade era
construída à base da omissão porque ninguém investigava ninguém. Em todo caso,
qualquer desvio identificado era prontamente ofuscado com receitas de bolo na
primeira página (os bolos eram de fato melhores).
“Você defende direito de presos porque ele não agrediu ninguém da sua
família”
É o sofisma usado geralmente contra quem defende o uso das leis para que a
lei seja garantida. Para o sujeito, aplicação de penas e encarceramentos são
privilégios bancados às custas dele, o contribuinte. Em sua lógica, o Estado só
seria efetivo se garantisse a sua segurança e instituísse a vingança como base
constitucional. Assim, a eventual agressão contra um integrante de uma família
seria compensada com a agressão a um integrante da família do acusado. O acúmulo
de experiência, aperfeiçoamento de leis e instituições, para ele, são papo de
intelectual: bons eram os tempos dos linchamentos, dos apedrejamentos públicos,
da Lei de Talião. Falta perguntar se o defensor do fuzilamento está disposto a
dar a cara a tapa, ou a tiro, quando o filho dirigir bêbado, atropelar, agredir
e violentar a família de quem, como ele, defende penas mais duras para crimes
inafiançáveis.
“A criminalidade só vai diminuir quando tiver pena de morte no
Brasil”
Frase repetida por quem admira o modelo prisional e o corredor da morte dos
EUA, o país mais rico do mundo e ao mesmo tempo o mais violento entre as nações
desenvolvidas. Lá o crime pode não compensar (em algum lugar compensa?), mas
está longe de ser varrido junto com seus meliantes.
“Político deveria ser tratado por médico cubano”
Tradução: “não gosto de política nem de cubano”. Pelo raciocínio, todo
paciente tratado por cubanos VAI morrer e todo político que precisa de
tratamento médico DEVE morrer. Para o autor da frase, bons eram os tempos em
que, na falta de médico brasileiro, deixava-se o paciente morrer – ou quando as
leis eram criadas não pelo Legislativo, mas pelo humor de quem governa na
canetada.
“Deveriam fazer testes de medicamento em presidiários, não em
animais”
Também conhecida como “não aprendemos nada com a parábola do filho Pródigo
que tantas vezes rezamos na catequese”. É citada por quem não aceita tratamento
desumano contra os bichos, mas não liga para o tratamento desumano contra
humanos. É repetida também por quem se imagina livre de todo pecado e das
grandes ironias da vida, como um certo fiscal da prefeitura de São Paulo que um
certo dia criticou o direito ao indulto de presidiários e, no outro, estava
preso acusado de participação na máfia do ISS. É como dizem: teste de
laboratório na cela dos outros é refresco.
“Por que você não vai para Cuba?”
Também conhecida como “acabou meu estoque de argumentos. Estou andando na
banguela”.
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