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Ser de esquerda é não aceitar as injustiças, sejam elas quais forem, como um fato natural. É não calar diante da violação dos Direitos Humanos, em qualquer país e em qualquer momento. É questionar determinadas leis – porque a Justiça, muitas vezes, não anda de mãos dadas com o Direito; e entre um e outro, o homem de esquerda escolhe a justiça.
É ser guiado por uma permanente capacidade de se estarrecer e, com ela e por causa dela, não se acomodar, não se vender, não se deixar manipular ou seduzir pelo poder. É escolher o caminho mais justo, mesmo que seja cansativo demais, arriscado demais, distante demais. O homem de esquerda acredita que a vida pode e deve ser melhor e é isso, no fundo, que o move. Porque o homem de esquerda sabe que não é culpa do destino ou da vontade divina que um bilhão de pessoas, segundo dados da ONU, passe fome no mundo.
É caminhar junto aos marginalizados; é repartir aquilo que se tem e até mesmo aquilo que falta, sem sacrifício e sem estardalhaço. À direita, cabe a tarefa de dar o que sobra, em forma de esmola e de assistencialismo, com barulho e holofotes. Ser de esquerda é reconhecer no outro sua própria humanidade, principalmente quando o outro for completamente diferente. Os homens e mulheres de esquerda sabem que o destino de uma pessoa não deveria ser determinado por causa da raça, do gênero ou da religião.
Ser de esquerda é não se deixar seduzir pelo consumismo; é entender, como ensinou Milton Santos, que a felicidade está ancorada nos bens infinitos. É mergulhar, com alegria e inteireza, na luta por um mundo melhor e neste mergulho não se deixar contaminar pela arrogância, pelo rancor ou pela vaidade. É manter a coerência entre a palavra e a ação. É alimentar as dúvidas, para não cair no poço escuro das respostas fáceis, das certezas cômodas e caducas. Porém, o homem de esquerda não faz da dúvida o álibi para a indiferença. Ele nunca é indiferente. Ser de esquerda é saber que este “mundo melhor e possível” não se fará de punhos cerrados nem com gritos de guerra, mas será construído no dia-a-dia, nas pequenas e grandes obras e que, muitas vezes, é preciso comprar batalhas longas e desgastantes. Ser de esquerda é, na batalha, não usar os métodos do inimigo.
Fernando Evangelista

segunda-feira, novembro 11, 2013

Coronel Adilson Paes: Violência policial tem de parar; desmilitarização da PM já passou da hora






por Lúcia Rodrigues, especial para a Comissão de Direitos Humanos da Assembleia Legislativa de São Paulo
O que leva uma pessoa que ingressa na Polícia Militar a se tornar um assassino?
A resposta para essa pergunta foi o que motivou o tenente-coronel Adilson Paes de Souza a se tornar um estudioso do tema da violência policial. A pesquisa desenvolvida rendeu frutos. Sua dissertação de mestrado na Faculdade de Direito da USP, aprovada com louvor no ano passado, se transformou no livro O Guardião da Cidade, da editora Escrituras, que ele lança nesta segunda-feira, 11, às 18h30, na Livraria Martins Fontes, à avenida Paulista, 509.

As inquietações do coronel sobre o assunto, no entanto, surgiram bem antes.
Há mais de uma década durante o curso que frequentou na Academia do Barro Branco, para ascender ao posto de major, ele teve aulas de Direitos Humanos com o desembargador Antonio Carlos Malheiros. O contato com o mestre foi decisivo.
Malheiros levava para o diálogo com os alunos em sala de aula, vídeos com denúncias de entidades de defesa dos direitos humanos sobre tortura e outros tipos de violência policial.
O que causava irritação nos demais colegas, produzia nele efeito contrário. O então capitão Adilson se sentia desconfortável, sim, mas por outro motivo. A falta de respostas da corporação para enfrentar essas violações é o que o incomodava.
“Via muitos oficiais negando as denúncias pura e simplesmente, outros diziam que era uma orquestração contra a instituição. Não via nenhuma resposta adequada aos relatórios nacionais e internacionais que denunciavam a violência policial”, enfatiza.
Constatar se a educação em Direitos Humanos que os oficiais recebem na Academia é adequada, e em caso negativo, se isso gera aumento no quadro de violência, além de contribuir para que o policial se torne assassino, foram as hipóteses levantadas para o desenvolvimento da dissertação. Essas hipóteses se confirmariam ao longo da pesquisa.
Segundo ele, existem vários temas de extrema importância que não são abordados nos cursos da corporação.
“A violência policial não é tratada no currículo de Direitos Humanos. É um tabu, não se comenta”, revela. “Por que eu não posso levar para a sala de aula a discussão dos casos de insucesso, para aprender com os erros? Por que não posso tocar na questão da violência policial nos bancos escolares?”, questiona. “É um equívoco muito grande não se discutir isso. As grandes empresas, no mundo todo, que buscam sucesso discutem seus erros, para que não ocorram mais.”
O coronel destaca que após ter concluído o livro houve uma reforma no currículo da PM. O curso que era de quatro anos, foi reduzido para três. “A carga horária que já era baixa foi reduzida ainda mais na disciplina de Direitos Humanos, mas agora consta no currículo Violência Policial. Contudo a abordagem é para desenvolvimento de sistemas e aprimoramento de supervisão e controle. Isso é pouco. Nós temos de estudar os casos que deram errado, que resultaram em execução extrajudicial e extermínio. Entender porque isso aconteceu, para que não se repita.”
O mesmo se aplica à questão da tortura. “Quando se fala sobre tortura, se fala da lei de tortura, não sobre os mecanismos que fazem com que a tortura exista. Não se fala sobre o que motiva uma pessoa a reduzir outra a um objeto. Estudar esses mecanismos é de suma importância, não é só estudar a lei.”
Educação falha
Para elaborar a dissertação que resultou no livro, além da pesquisa teórica, o coronel ouviu vários policiais militares que praticaram homicídios, cumpriram pena pelos crimes que cometeram e foram expulsos da corporação.
“Nas entrevistas, eu perguntei o que os levou a praticar os homicídios. E a resposta foi de que não conheciam a realidade social onde foram trabalhar. ‘Não tive isso nos bancos escolares’. Isso evidencia que houve falha no processo de formação. A minha hipótese de que a educação em Direitos Humanos não estava cumprindo o seu papel se confirmou logo na primeira pergunta.”
Os policiais criam por conta própria suas respostas. “Isso é perigoso, porque depende da capacidade de cada um em responder ao estímulo externo. Se não estou preparado, o choque pode produzir reações adversas a ponto de a pessoa achar que pode resolver o problema sozinho. Foi isso o que aconteceu com os policiais militares que entrevistei. Se sentiam dotados de superpoderes. Diziam que podiam fazer o que quisessem visando à proteção da sociedade.”
O slogan proferido por muitos policiais: ‘Bandido bom é bandido morto’ é rechaçado de forma veemente pelo coronel, que o classifica como um “populismo barato, com cunho político-eleitoral espúrio e perigosíssimo”.
Ele explica que esses policiais querem conquistar status pelo medo que impõem. Há estudos que comprovam que esse tipo de policial se vê como um super-homem.
Outra teoria revela que a frustração e a impotência diante de determinadas situações podem levar policiais a adotar atitudes extremadas.
“Isso encontra eco na fala dos ex-policiais que entrevistei. Eles disseram que não acreditavam mais no sistema de justiça. ‘Eu não estava preparado para enfrentar a extrema carência social, tive de desenvolver ferramentas para resolver o problema. Não acreditava no sistema, passei a ser o sistema sem intermediários. Eu protegia a sociedade segundo os meus critérios’. Essa era a fala deles.”
O descrédito nas instituições fica patente no argumento utilizado como justificativa para as execuções praticadas. “Eles disseram que cansaram de levar pessoas para a delegacia e ver os presos pagarem propina e serem soltos. ‘Por que eu vou arriscar a minha vida prendendo, para outra polícia soltar. Vou prender, sentenciar e matar. Assim protejo a sociedade.’ Isso é uma total incompreensão do que vem a ser a função policial. Nós representamos um Estado, não somos o Estado, e no caso um Estado ditatorial”, ressalta.
A Lei de Diretrizes e Bases da Educação (LDB) determina que professores em instituições de nível superior tenham curso de pós-graduação com mestrado e doutorado.
“Mas dos seis docentes da disciplina de Direitos Humanos (da Academia), na época em que fiz a pesquisa, quatro eram policiais militares e nenhum deles tinha pós-graduação. Dos dois civis, um tinha lato sensu e outro estava cursando doutorado. A LDB não é cumprida. Há um artigo na Lei, o 83, que diz que o ensino militar se regerá por leis próprias. A Polícia Militar adotou o artigo literalmente. Para um PM ser docente, o único requisito exigido é ele ter cursado a disciplina de Direitos Humanos.”
O coronel defende a tese de que as disciplinas lecionadas na Academia, semelhantes às desenvolvidas nas universidades públicas ou privadas devem seguir as mesmas regras e, portanto, exigir que os professores tenham pós-graduação. Ele também questiona a interpretação do termo militar pela corporação. “Policial militar é militar? A Constituição Federal diz que não é. O artigo 83 deveria ser interpretado, levando-se em conta a Constituição e não uma interpretação gramatical.” E completa: “Um doutor em ciência política, docente da FGV, usou um termo que eu acho bem adequado, que afirma que isso é um dos vários entulhos que ainda existem na legislação. Isso é um resquício da ditadura militar.”
Desmilitarização 
Para o coronel Adilson, passou da hora de se discutir a desmilitarização da corporação com seriedade. “A Ouvidoria das polícias com base em dados da Secretaria de Segurança Pública e do FBI constatou que a Polícia Militar de São Paulo matou em cinco anos mais do que todas as forças policiais norte-americanas. Então tem de ter mudança. Não é uma questão político-partidária, é uma questão de política de Estado, de sobrevivência do Estado democrático de direito. Do jeito que está não dá mais. Estamos assistindo a uma espiral de violência, que tem de parar.”
Ele cita a pesquisa apresentada recentemente pelo Fórum Nacional de Segurança Pública que aponta que 70,1% da população desconfiam das polícias, para exemplificar como a violência praticada por agentes de Estado impacta na opinião pública. De acordo com o coronel, nos Estados Unidos 88% da população confiam na polícia, no Reino Unido esse percentual fica na casa dos 82%.
“Lá, as polícias são de cunho civil, embora usem uniformes e tenham uma estética militar. Nos Estados Unidos, mesmo após os atos patrióticos que instalaram um Estado de exceção no país, a população confia nas polícias. Seria bom estudar isso e aprender com eles. O programa segurança cidadã da Colômbia é um bom exemplo. Deixou de lado a doutrina da segurança nacional, de combate ao inimigo. Perceberam que isso não era efetivo, que não estava resolvendo. Partiram para um novo conceito de segurança cidadã. As questões de segurança pública não podem ser tratadas somente sob a ótica da repressão.”
O coronel acredita que ações violentas por parte da Polícia Militar, como a desocupação do Pinheirinho, em São José dos Campos, interior de São Paulo, e a repressão às manifestações de rua em junho passado, contribuíram para o desgaste da corporação junto à população.
“Por um pedaço de terra, não valia a pena produzir tanta desgraça na vida daquelas pessoas. Podia se esperar mais um ou dois meses até se chegar a uma solução adequada. Podia ter sido de outra maneira. Nada justifica o que aconteceu. Não estou denegrindo a minha Polícia Militar. Eu sou leal, adoro a Polícia Militar, mas não tem justificativa. O Pinheirinho foi uma mancha na história da minha corporação. Eu acho que tem de ser um marco que represente uma mudança de atitude.”
Em relação à repressão contra manifestantes, o coronel também é contundente.
“Infelizmente determinados efetivos da Polícia Militar, em alguns episódios, não sabem lidar com o diferente, com o contraditório. Fazem como primeira e única opção o uso da violência. Não da força, mas da violência. Opção errada, que evidencia o despreparo. Após esse dia (13 de junho), um repórter me disse que a polícia conseguiu unir todo mundo contra (ela). Criminalizar os movimentos sociais e reprimi-los não vai solucionar o problema. Foi uma atuação equivocada da Polícia Militar, para dizer o mínimo.”
O coronel elogia, no entanto, a postura desempenhada pelo secretário de Segurança Pública, Fernando Grella, no episódio para debelar a crise instalada. “O secretário teve uma atitude correta, assumiu o controle das polícias. Se percebeu uma mudança na atuação das polícias.”
Incitação à violência
Mas se atitudes como as do secretário contribuíram para conter a violência policial naquele momento, outros componentes vitaminam diariamente essa violência.
Os programas de jornalismo policial exibidos em várias emissoras de TV nos finais de tarde são exemplo disso. Para o coronel, os apresentadores desses programas prestam um desserviço à democracia ao difundirem a ideia de que a solução do conflito deve ser por meio da violência e de que para se ter autoridade é preciso ser arbitrário e truculento. “Isso é perigosíssimo. Incitam a violência de uma maneira crua, absurda. Não é à toa que determinadas camadas da população defendem a pena de morte e falam que tem de matar (os bandidos).”
Esses programas sensacionalistas atingem milhares de pessoas. Grande parte de sua audiência vem dos próprios policiais que se alimentam dos estímulos emitidos por esses apresentadores. Os noticiários servem como um salvo conduto para que eles continuem a ser truculentos. “Eu gostaria que nós ficássemos invisíveis  e entrássemos nos quartéis para ver em que canais estão ligadas as TVs nesse horário”, brinca.
Com 30 anos de serviços prestados à PM, a clareza nas posições e a defesa intransigente de valores ligados à vida não amedrontam o coronel defensor dos direitos humanos.

Indagado se teme por sua própria segurança por abordar de maneira explicita as mazelas da corporação, ele afirma que não. “Eu teria medo se tivesse partido para o denuncismo, ofendido pessoas ou as desmerecido. Mas isso eu nunca fiz e nunca vou fazer. O meu livro visa tão somente expor a minha mais clara lealdade à Polícia Militar e aos meus companheiros de farda. Sou um oficial da reserva da Polícia Militar. Não quero que eles passem pelo que outros policiais passaram. Porque o drama é pesado, o trauma é grande e a dor é imensa. Eu sou amigo, sou parceiro deles. Estou aqui para ajudar. O livro é um material para permitir a reflexão, uma contribuição para a solução desse grave problema. Minha meta é fazer doutorado, quero continuar estudando a violência policial.”
*Nassif

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