Presos políticos, sim senhor
do Porfírio
Julgamento do "mensalão" abstraiu normas do direito para condenar próceres de um certo governo
Tendo
na platéia indócil milhões de brasileiros indignados com a impunidade
secular da corrupção, os ministros do STF assomaram o proscênio
iluminado para apresentar o espetáculo do vale tudo, na tentativa de
produzir a catarse compensatória. Para isso, com a colaboração da mídia,
elevaram ao maior paroxismo um processo em que alguns dos vilões saiam
do primeiro escalão de um governo insólito para os padrões tradicionais,
encabeçado por um ex-metalúrgico puxador de greves, apostando no abalo
de suas vigas - até a própria implosão - para o que não vacilaram em
projetar um mocinho de maus bofes com poderes arbitrários de dar às
leis e ritos sua hermenêutica personalíssima.
Foram
mais de seis meses da primeira temporada, tempo maior do que de muitas
novelas globais, num massacre contundente que reacendeu em milhões o
sentimento das arenas de gladiadores. Não se disse exatamente o que cada
um dos 40 arrolados inicialmente fez e não se separou quem tinha ou não
direito a "foro privilegiado". Ao contrário, penduram todos na mesma
fieira, obtendo dessa mescla os elementos explosivos de alto teor
corrosivo e poderoso impacto social.
Não foram
as inegáveis transgressões, aliás, nada originais, que levaram ao
pelourinho, mas os efeitos bombásticos que poderia produzir a junção
calculada de ex-heróis da resistência a banqueiros e empresários
envolvidos num suposto esquema criminoso. Com as ilações disseminadas
aos sete ventos foi possível engendrar uma ninhada gorda de bodes
expiatórios para os quais, à primeira vista, as penas decididas ainda
parecem mínimas aos olhos das torcidas organizadas.
O
julgamento da Ação Penal 470 teve origem, fundamento e objetivos
políticos com múltiplas facetas e visou mais do que os réus condenados,
pinçados seletivamente em tal grau de má fé que se perguntarmos aos que
festejaram as condenações quais os crimes efetivamente cometidos nos
depararemos com respostas genéricas, apoiadas tão somente na inseminação
artificial de epítetos de fácil consumo e em estratagemas evasivos.
De
tal brilho foi o verniz que revestiu o vulgo "mensalão" que a própria
corte se impôs a configuração dos delitos na busca de substância
jurídica para o que precisava ganhar corpo e alma.
Sua atuação sem precedentes, impulsionada por um ministro histriônico e descompensado, dispensou exigências primárias como o ônus da prova e ainda recorreu a interpretações arbitrárias de doutrinas que não se encaixavam nesse caso, como o uso da teoria do domínio de fato, cujo autor, Claus Roxin, um jurista alemão, fez questão de demonstrar sua aplicação descabida.
Que
foi um processo político, que seus condenados são agora presos
políticos só não admite quem quer tirar proveito político do episódio,
pleno em emoções forjadas, ou quem se sacia no anseio consciente de
derrotar adversários, desafetos e inimigos por outros meios que não os
das urnas.
Num país de paradoxos esfuziantes e
conveniências inerciais assimiladas por vícios compensatórios não
surpreende que alguns dirigentes do partido governante tenham sido
objeto de uma ação penal seletiva, eivada de arbitrariedades e de
hermenêuticas forçadas, numa rumorosa orquestração que os expôs como
bandidos do que ganhou as vestes de um monstruoso moinho de corrupção.
O
tratamento dispensado a esses réus levados ao cadafalso como
devoradores dos cofres públicos nutriu-se da manipulada supremacia da
versão sobre os fatos reais e os colocou no corredor da morte política
enxertado de cultivados elementos de contágio, num bem dosado jogo de
cena para alvejar todos os que, por méritos ou por oportunismo, parecem
fadados a permanecer à frente dos nossos destinos, a menos que fatos
tais possam abater-lhes no caminho.
Somente os
maniqueístas estrábicos não vêem o caráter essencialmente político dessa
longa novela em que sequer se pode atribuir os danos alvejados à
exclusiva manipulação midiática. O judiciário supremo está na forja de
intempestivas “doutrinas”, muito mais afrontosas aos direitos do que
tudo o que se fez em 21 anos de ditadura explícita.
Para
incriminar o ex-chefe da Casa Civil, José Dirceu, contra quem não havia
uma única peça comprobatória e nem mesmo depoimentos objetivos, o
ministro Joaquim Barbosa usou e abusou da “teoria do domínio de fato”,
inspirado indevidamente no criminalista alemão Claus Roxin, segundo a
qual "autor não é só quem executa o crime, mas quem tem o poder de
decidir sua realização", esteja ou não diretamente envolvido.
Sem
ter como denunciar o ex-chefe da Casa Civil de Lula, esse ministro de
poucas luzes e excesso de ambições pessoais levou o colegiado pusilânime
a segui-lo na dispensa de provas, sob pena de cair na boca do povo como
tolerantes com os corruptos. Foi como se dois terços dos ministros
precisassem demonstrar que não tinham rabos presos com os governantes
que os catapultaram aos píncaros do judiciário e agora respondiam
seletivamente por toda a corrupção acumulada.
Essa manipulação da teoria do domínio de fato
raramente foi comentada na mídia, com raras exceções, fermentada
pelos interesses que constrangem os atos e os passos dos governantes
eleitos, inibindo-os do exercício de compromissos históricos de suas
bandeiras.
A prevalência dessa lógica
casuística, que está no âmago da penalização espetacularizada, se
beneficiou de outra aberração processual – a inexistência do duplo grau de jurisdição,
embora apenas 5 do 40 acusados tivessem previsto o julgamento no STF. É
premissa legal, cristalizada nos pactos de direitos humanos, que cada
processo tenha no mínimo uma instância de recurso, tanto para o acusado,
como para o próprio ministério público.
As
evidências do caráter inegavelmente político da Ação Pena 470 estão em
todos os seus movimentos, desde a dispensa dos processos
individualizados, passando por sua pauta à frente de outros casos,
inclusive o similar mineiro, anterior, que envolve um governador do
PSDB, até o estabelecimento de um calendário direcionado, no qual o
ministro Joaquim Barbosa almejou e conseguiu o nexo de situações mercê
de inúmeras licenças médicas que pediu para levar o processo a seu
próprio êxtase.
No
momento desejado por ele, passou a acumular a condição de relator e de
presidente do tribunal, com o que conseguiu a proeza de bater o corner e
cabecear, preenchendo exclusivamente para ele todos os espaços
midiáticos e ganhando a projeção que o habilita a ser o candidato ideal
da direita nas eleições presidenciais de 2014.
A
escolha de dois dirigentes petistas como réus de maior visibilidade
sacia a vários apetites. A direita rancorosa, cujos crimes maiores na
ditadura foram indevidamente “perdoados” pela tibieza dos civis
entrantes, inclusive os constituintes de 88, ainda vive sob o fantasma
de suas monstruosidades e não engole expoentes da contestação dos anos
60 na proa dos novos tempos.
A direita
pragmática, que sabe muito bem compor com qualquer governo,teme um surto
mutante a partir das bases partidárias e do aprofundamento das
exigências das massas nas ruas, de onde opera seus próprios códigos de
convivência com a vantagem de manter governantes contra a parede,
limitando-os a programas compensatórios de eito caritativo, a
providências pontuais assimiláveis e a uma política externa
independente, embora sem confrontos.
Não foi por
acaso que o apedrejamento dos próceres governistas condenados se deu no
mesmo momento em que o governo entregava ao “mercado” os achados da
Petrobrás no pré-sal, facilitava a maior participação estrangeira no
Banco do Brasil e retomava as privatizações pelos aeroportos, portos e
rodovias rentáveis.
Essa deliberada politização
do julgamento só não mina fatalmente o governo encabeçado pelo PT por
que suas políticas sociais se encaixam no sonho de consumo de uma massa
paternalista e, principalmente, pela imagem depravada dos opositores de
maior visibilidade, cujas travessuras podem ter sido protegidas pela
mídia maior, mas não escapam ao boca-boca das ruas - na era da internet
até as paredes falam.
Os próximos passos serão
reveladores de todas as entrelinhas subjacentes ao noticiário pomposo.
Como há sempre um dia depois do outro, toda essa montagem aparentemente
blindada vai desmilinguir-se como um castelo de areia.
O
que aconteceu até agora não se esgota em si. Os senhores juízes vão se
dar por satisfeitos com a última proeza, o brilho nas telinhas de
plasma, e mudarão de assunto com a expectativa de que a turba vai se
empanzinar com as punições d’agora. A roubalheira mesmo, provada e
comprovada até em tribunais estrangeiros, ficará à sombra das capas
pretas endeusadas e não se falará mais nisso.
O
maniqueísmo perdurará para o deleite das elites dominantes e o jogo de
cartas marcadas dominará, a menos que o povo acorde e readquira o juízo
crítico de que foi destituído pelas tramas e pela tecnologia midiática
de um sistema vitorioso em seus propósitos de dominação.
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