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Ser de esquerda é não aceitar as injustiças, sejam elas quais forem, como um fato natural. É não calar diante da violação dos Direitos Humanos, em qualquer país e em qualquer momento. É questionar determinadas leis – porque a Justiça, muitas vezes, não anda de mãos dadas com o Direito; e entre um e outro, o homem de esquerda escolhe a justiça.
É ser guiado por uma permanente capacidade de se estarrecer e, com ela e por causa dela, não se acomodar, não se vender, não se deixar manipular ou seduzir pelo poder. É escolher o caminho mais justo, mesmo que seja cansativo demais, arriscado demais, distante demais. O homem de esquerda acredita que a vida pode e deve ser melhor e é isso, no fundo, que o move. Porque o homem de esquerda sabe que não é culpa do destino ou da vontade divina que um bilhão de pessoas, segundo dados da ONU, passe fome no mundo.
É caminhar junto aos marginalizados; é repartir aquilo que se tem e até mesmo aquilo que falta, sem sacrifício e sem estardalhaço. À direita, cabe a tarefa de dar o que sobra, em forma de esmola e de assistencialismo, com barulho e holofotes. Ser de esquerda é reconhecer no outro sua própria humanidade, principalmente quando o outro for completamente diferente. Os homens e mulheres de esquerda sabem que o destino de uma pessoa não deveria ser determinado por causa da raça, do gênero ou da religião.
Ser de esquerda é não se deixar seduzir pelo consumismo; é entender, como ensinou Milton Santos, que a felicidade está ancorada nos bens infinitos. É mergulhar, com alegria e inteireza, na luta por um mundo melhor e neste mergulho não se deixar contaminar pela arrogância, pelo rancor ou pela vaidade. É manter a coerência entre a palavra e a ação. É alimentar as dúvidas, para não cair no poço escuro das respostas fáceis, das certezas cômodas e caducas. Porém, o homem de esquerda não faz da dúvida o álibi para a indiferença. Ele nunca é indiferente. Ser de esquerda é saber que este “mundo melhor e possível” não se fará de punhos cerrados nem com gritos de guerra, mas será construído no dia-a-dia, nas pequenas e grandes obras e que, muitas vezes, é preciso comprar batalhas longas e desgastantes. Ser de esquerda é, na batalha, não usar os métodos do inimigo.
Fernando Evangelista

sexta-feira, novembro 22, 2013

Presos políticos, sim senhor

Julgamento do "mensalão" abstraiu normas do direito para condenar próceres de um certo governo
Tendo na platéia indócil milhões de brasileiros indignados com a impunidade secular da corrupção, os ministros do STF assomaram o proscênio iluminado para apresentar o espetáculo do vale tudo, na tentativa de produzir a catarse compensatória. Para isso, com a colaboração da mídia, elevaram ao maior paroxismo um processo em que alguns dos vilões saiam do primeiro escalão de um governo insólito para os padrões tradicionais, encabeçado por um ex-metalúrgico puxador de greves, apostando no abalo de suas vigas - até a própria implosão -  para o que não vacilaram em projetar um mocinho de maus  bofes com poderes arbitrários de dar às leis e ritos sua hermenêutica personalíssima.
Foram mais de seis meses da primeira temporada, tempo maior do que de muitas novelas globais, num massacre contundente que reacendeu em milhões o sentimento das arenas de gladiadores. Não se disse exatamente o que cada um dos 40 arrolados inicialmente fez e não se separou quem tinha ou não direito a "foro privilegiado". Ao contrário, penduram todos na mesma fieira, obtendo dessa mescla os elementos explosivos de alto teor corrosivo e poderoso impacto social.
Não foram as inegáveis transgressões, aliás, nada originais, que levaram ao pelourinho, mas os efeitos bombásticos que poderia produzir a junção calculada de ex-heróis da resistência a banqueiros e empresários envolvidos num suposto esquema criminoso. Com as ilações disseminadas aos sete ventos foi possível engendrar uma ninhada gorda de bodes expiatórios para os quais, à primeira vista, as penas decididas ainda parecem mínimas aos olhos das torcidas organizadas. 
O julgamento da Ação Penal 470 teve origem, fundamento e objetivos políticos com múltiplas facetas e visou mais do que os réus condenados, pinçados seletivamente em tal grau de má fé que se perguntarmos aos que festejaram as condenações quais os crimes efetivamente cometidos nos depararemos com respostas genéricas, apoiadas tão somente na inseminação artificial de epítetos de fácil consumo e em estratagemas evasivos.  
De tal brilho foi o verniz que revestiu o vulgo "mensalão"  que a própria corte se impôs a configuração dos delitos na busca de substância jurídica para o que precisava ganhar corpo e alma. 
Sua atuação sem precedentes, impulsionada por um ministro histriônico e descompensado, dispensou exigências primárias como o ônus da prova e ainda recorreu a interpretações arbitrárias de doutrinas que não se encaixavam nesse caso, como o uso da teoria do domínio de fato, cujo autor, Claus Roxin, um jurista alemão, fez questão de demonstrar sua aplicação descabida.
Que foi um processo político, que seus condenados são agora presos políticos só não admite quem quer tirar proveito político do episódio, pleno em emoções forjadas, ou quem se sacia no anseio consciente de derrotar adversários, desafetos e inimigos por outros meios que não os das urnas.
Num país de paradoxos esfuziantes e conveniências inerciais assimiladas por vícios compensatórios não surpreende que alguns dirigentes do partido governante tenham sido objeto de uma ação penal seletiva, eivada de arbitrariedades e de hermenêuticas forçadas, numa rumorosa orquestração que os expôs como bandidos do que ganhou as vestes de um monstruoso moinho de corrupção.
O tratamento dispensado a esses réus levados ao cadafalso como devoradores dos cofres públicos nutriu-se da manipulada supremacia da versão sobre os fatos reais e os colocou no corredor da morte política enxertado de cultivados elementos de  contágio, num bem dosado jogo de cena para alvejar todos os que, por méritos ou por oportunismo, parecem fadados a permanecer à frente dos nossos destinos, a menos que fatos tais possam abater-lhes no caminho.
Somente os maniqueístas estrábicos não vêem o caráter essencialmente político dessa longa novela em que sequer se pode atribuir os danos alvejados à exclusiva manipulação midiática. O judiciário supremo está na forja de intempestivas “doutrinas”, muito mais afrontosas aos direitos do que tudo o que se fez em 21 anos de ditadura explícita.
Para incriminar o ex-chefe da Casa Civil, José Dirceu, contra quem não havia uma única peça comprobatória e nem mesmo depoimentos objetivos, o ministro Joaquim Barbosa usou e abusou da “teoria do domínio de fato”, inspirado indevidamente no criminalista alemão Claus Roxin, segundo a qual "autor não é só quem executa o crime, mas quem tem o poder de decidir sua realização", esteja ou não diretamente envolvido.
Sem ter como denunciar o  ex-chefe da Casa Civil de Lula, esse ministro de poucas luzes e excesso de ambições pessoais levou o colegiado pusilânime a segui-lo na dispensa de provas, sob pena de cair na boca do povo como tolerantes com os corruptos. Foi como se dois terços dos ministros precisassem demonstrar que não tinham rabos presos  com os governantes que os catapultaram aos píncaros do judiciário e agora respondiam seletivamente por toda a corrupção acumulada.
Essa manipulação da teoria do domínio de fato raramente foi comentada na mídia, com raras exceções,    fermentada pelos interesses que constrangem os atos e os passos dos governantes eleitos, inibindo-os do exercício de compromissos históricos de suas bandeiras.
A prevalência dessa lógica casuística, que está no âmago da penalização espetacularizada,  se beneficiou de outra aberração processual – a inexistência do duplo grau de jurisdição, embora apenas 5 do 40 acusados tivessem previsto o julgamento no STF. É premissa legal, cristalizada nos pactos de direitos humanos, que cada processo tenha no mínimo uma instância de recurso, tanto para o acusado, como para o próprio ministério público.
As evidências do caráter inegavelmente político da Ação Pena 470 estão em todos os seus movimentos, desde a dispensa dos processos individualizados, passando por sua pauta à frente de outros casos, inclusive o similar mineiro, anterior, que envolve um governador do PSDB, até o estabelecimento de um calendário direcionado, no qual o ministro Joaquim Barbosa almejou e conseguiu o nexo de situações mercê de inúmeras licenças médicas que pediu para levar o processo a seu próprio êxtase.
No momento desejado por ele, passou a acumular a condição de relator e de presidente do tribunal, com o que  conseguiu a proeza de bater o corner e cabecear, preenchendo exclusivamente para ele todos os espaços midiáticos e ganhando a projeção que o habilita a ser o candidato ideal da direita nas eleições presidenciais de 2014.
A escolha de dois dirigentes petistas como réus de maior visibilidade sacia a vários apetites. A direita rancorosa, cujos crimes maiores na ditadura foram indevidamente “perdoados” pela tibieza dos civis entrantes, inclusive os constituintes de 88, ainda vive sob o fantasma de suas monstruosidades e não engole expoentes da contestação dos anos 60 na proa dos novos tempos. 
A direita pragmática, que sabe muito bem compor com qualquer governo,teme um surto mutante a partir das bases partidárias e do aprofundamento das exigências das massas nas ruas, de onde opera seus próprios códigos de convivência com a vantagem de manter governantes contra a parede, limitando-os a programas compensatórios de eito caritativo, a providências pontuais assimiláveis e a uma política externa independente, embora sem confrontos.
Não foi por acaso que o apedrejamento dos próceres governistas condenados se deu no mesmo momento em que o governo entregava ao “mercado” os achados da Petrobrás no pré-sal, facilitava a maior participação estrangeira no Banco do Brasil e retomava as privatizações pelos aeroportos, portos e rodovias rentáveis.
Essa deliberada politização do julgamento só não mina fatalmente o governo encabeçado pelo PT por que suas políticas sociais se encaixam no sonho de consumo de uma massa paternalista e, principalmente, pela imagem depravada dos opositores de maior visibilidade, cujas travessuras podem ter sido protegidas pela mídia maior, mas não escapam ao boca-boca das ruas -  na era da internet até as paredes falam.
Os próximos passos serão reveladores de todas as entrelinhas subjacentes ao noticiário pomposo.  Como há sempre um dia depois do outro, toda essa montagem aparentemente blindada vai desmilinguir-se como um castelo de areia.
O que aconteceu até agora não se esgota em si. Os senhores juízes vão se dar por satisfeitos com a última proeza, o brilho nas telinhas de plasma, e mudarão de assunto com a expectativa de que a turba vai se empanzinar com as punições d’agora. A roubalheira mesmo, provada e comprovada até em tribunais estrangeiros, ficará à sombra das capas pretas endeusadas e não se falará mais nisso.
O maniqueísmo perdurará para o deleite das elites dominantes e o jogo de cartas marcadas dominará, a menos que o povo acorde e readquira o juízo crítico de que foi destituído pelas tramas  e pela tecnologia midiática de um sistema vitorioso em seus propósitos de dominação.

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