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Ser de esquerda é não aceitar as injustiças, sejam elas quais forem, como um fato natural. É não calar diante da violação dos Direitos Humanos, em qualquer país e em qualquer momento. É questionar determinadas leis – porque a Justiça, muitas vezes, não anda de mãos dadas com o Direito; e entre um e outro, o homem de esquerda escolhe a justiça.
É ser guiado por uma permanente capacidade de se estarrecer e, com ela e por causa dela, não se acomodar, não se vender, não se deixar manipular ou seduzir pelo poder. É escolher o caminho mais justo, mesmo que seja cansativo demais, arriscado demais, distante demais. O homem de esquerda acredita que a vida pode e deve ser melhor e é isso, no fundo, que o move. Porque o homem de esquerda sabe que não é culpa do destino ou da vontade divina que um bilhão de pessoas, segundo dados da ONU, passe fome no mundo.
É caminhar junto aos marginalizados; é repartir aquilo que se tem e até mesmo aquilo que falta, sem sacrifício e sem estardalhaço. À direita, cabe a tarefa de dar o que sobra, em forma de esmola e de assistencialismo, com barulho e holofotes. Ser de esquerda é reconhecer no outro sua própria humanidade, principalmente quando o outro for completamente diferente. Os homens e mulheres de esquerda sabem que o destino de uma pessoa não deveria ser determinado por causa da raça, do gênero ou da religião.
Ser de esquerda é não se deixar seduzir pelo consumismo; é entender, como ensinou Milton Santos, que a felicidade está ancorada nos bens infinitos. É mergulhar, com alegria e inteireza, na luta por um mundo melhor e neste mergulho não se deixar contaminar pela arrogância, pelo rancor ou pela vaidade. É manter a coerência entre a palavra e a ação. É alimentar as dúvidas, para não cair no poço escuro das respostas fáceis, das certezas cômodas e caducas. Porém, o homem de esquerda não faz da dúvida o álibi para a indiferença. Ele nunca é indiferente. Ser de esquerda é saber que este “mundo melhor e possível” não se fará de punhos cerrados nem com gritos de guerra, mas será construído no dia-a-dia, nas pequenas e grandes obras e que, muitas vezes, é preciso comprar batalhas longas e desgastantes. Ser de esquerda é, na batalha, não usar os métodos do inimigo.
Fernando Evangelista

quinta-feira, novembro 14, 2013

Federalismo e desigualdade regional


Desde que se tornou republicano e federalista, em 1889, o Brasil tem alcançado avanços econômicos e sociais, mas ainda não foi capaz de diminuir drasticamente as diferenças inter e intrarregionais. Permanecem contrastes gritantes na provisão de bens e serviços públicos entre as Regiões Norte e Nordeste, de um lado, e o Sul-Sudeste, de outro; assim como ocorre com as capitais, se comparadas à maioria das cidades do interior de cada Estado. Algumas soluções que parecem simples e óbvias - numa visão técnica - continuam adormecidas, à espera de vontade política e de uma visão de longo prazo de vários atores do federalismo brasileiro.

Nossa Constituição manda que se levem em conta as desigualdades regionais ao desenvolver políticas públicas. No entanto, o que o Estado brasileiro diz (na Constituição) não é necessariamente o que faz na hora de empregar recursos públicos. Nesse sentido, observa-se que a despesa per capita é tradicionalmente menor nas Regiões Norte e Nordeste, que compreendem os municípios e Estados que abrigam as parcelas da população mais desassistidas ou carentes em termos da provisão de direitos.

Teimosamente, insiste-se num viés inter-regional concentrador da ação pública. Mesmo nas regiões mais ricas as políticas públicas beneficiam as localidades que já estão relativamente mais bem equipadas para garantir os mesmos benefícios aos cidadãos. Tal desequilíbrio ("assimetria", para usarmos o nome técnico) tem como consequência a manutenção das desigualdades regionais.

O problema federativo brasileiro não está restrito somente à distribuição ou alocação de recursos tributários entre os entes. Trata-se de saber como esses recursos estão sendo gastos na provisão de bens e serviços públicos à sociedade. A tese, empiricamente comprovada, é de que o gasto público no Brasil tem servido para manter ou até agravar as desigualdades inter e intrarregionais no País.

Como agravante, gasta-se dinheiro para alimentar um círculo vicioso em que as grandes cidades, em especial as capitais, atraem pessoas e sorvem recursos além da conta, o que contribui para tornar outras cidades não apenas menores, mas inviáveis. As únicas exceções têm sido as cidades localizadas, por sorte, em "corredores" de desenvolvimento. Em geral, elas são ou estão se tornando localidades de porte médio.

Ao analisarmos os dados da Secretaria do Tesouro Nacional de 2000 e 2010, verificamos que a despesa per capita dos municípios com menos de 10 mil habitantes é semelhante (às vezes, superior) à de outros com mais de 1 milhão de habitantes. Isso significa que os pequenos municípios têm um custo de provisão de bens e serviços públicos muito alto, comparável ao de grandes municípios. Ou seja, oferecer serviços públicos adequados é proporcionalmente mais caro se o município for muito grande ou muito pequeno.

Percebe-se, porém, que essa despesa média é decrescente, alcançando níveis mínimos nos municípios entre 50 mil e 500 mil habitantes. Nessa faixa populacional, o custo médio de provisão de bens e serviços públicos atinge esse valor mínimo em razão da presença de economias de escala para uma provisão mais eficiente, sem os problemas de que são acometidos os aglomerados urbanos com concentração populacional exagerada. Significa dizer que não deveríamos ter nem muitos municípios nanicos, pois isso torna nosso federalismo muito caro, nem municípios grandes demais, que se tornaram insustentáveis sob diversos aspectos.

Um sinal positivo e, por enquanto, alentador é o fato de que nesses municípios de médio porte, justamente os de 50 mil a 500 mil habitantes, que apresentam despesas per capita inferiores às dos pequenos e grandes centros, podem estar se criando forças centrípetas (de concentração) que, traduzindo, estão gerando economias de escala maiores que os pequenos municípios e de forma mais eficiente que as das grandes cidades. Os municípios de porte médio podem tornar-se verdadeiros polos de bem-estar social ao prover bens públicos que consigam diminuir um pouco a pressão exercida principalmente sobre as capitais.

Numa perspectiva de médio e de longo prazos, caso houvesse uma orientação do Estado brasileiro, ou seja, uma decisão conjunta e harmônica entre os entes federal, estaduais e municipais, o ideal seria fortalecer institucionalmente os arranjos federativos cooperativos (conhecidos como consórcios públicos, mas que também podem ser considerados enquanto regiões integradas para o desenvolvimento), com o intuito claro de reduzir as despesas nos pequenos e nos grandes municípios. Esses arranjos municipais poderiam receber mais recursos públicos, para custeio e investimento, de modo a aproveitar sua escala mais eficiente.

Em suma, o equilíbrio federativo é tencionado pelo enfrentamento das heterogeneidades territoriais e das desigualdades regionais. A solução passa principalmente por robustecer as instituições e os mecanismos de coordenação e cooperação federativa. A conformação de acordos interfederativos traz, implicitamente, uma abordagem territorial orientada pelo desafio de ampliar nossas capacidades governativas para prover bens e serviços públicos que reduzam as desigualdades regionais.

As médias cidades seriam um contraponto a muitos dos problemas do federalismo brasileiro se fossem reposicionadas institucionalmente como potenciais polos de desenvolvimento regional, do ponto de vista econômico e social. Portanto, a solução para alguns de nossos graves problemas pode estar a meio caminho, bem debaixo de nossos olhos. Como diz o poeta, a lição sabemos de cor, só nos resta aprender.

Constantino Cronemberger Mendes e Antonio Lassance são técnicos de planejamento e pesquisa do IPEA
*comtextolivre

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