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Ser de esquerda é não aceitar as injustiças, sejam elas quais forem, como um fato natural. É não calar diante da violação dos Direitos Humanos, em qualquer país e em qualquer momento. É questionar determinadas leis – porque a Justiça, muitas vezes, não anda de mãos dadas com o Direito; e entre um e outro, o homem de esquerda escolhe a justiça.
É ser guiado por uma permanente capacidade de se estarrecer e, com ela e por causa dela, não se acomodar, não se vender, não se deixar manipular ou seduzir pelo poder. É escolher o caminho mais justo, mesmo que seja cansativo demais, arriscado demais, distante demais. O homem de esquerda acredita que a vida pode e deve ser melhor e é isso, no fundo, que o move. Porque o homem de esquerda sabe que não é culpa do destino ou da vontade divina que um bilhão de pessoas, segundo dados da ONU, passe fome no mundo.
É caminhar junto aos marginalizados; é repartir aquilo que se tem e até mesmo aquilo que falta, sem sacrifício e sem estardalhaço. À direita, cabe a tarefa de dar o que sobra, em forma de esmola e de assistencialismo, com barulho e holofotes. Ser de esquerda é reconhecer no outro sua própria humanidade, principalmente quando o outro for completamente diferente. Os homens e mulheres de esquerda sabem que o destino de uma pessoa não deveria ser determinado por causa da raça, do gênero ou da religião.
Ser de esquerda é não se deixar seduzir pelo consumismo; é entender, como ensinou Milton Santos, que a felicidade está ancorada nos bens infinitos. É mergulhar, com alegria e inteireza, na luta por um mundo melhor e neste mergulho não se deixar contaminar pela arrogância, pelo rancor ou pela vaidade. É manter a coerência entre a palavra e a ação. É alimentar as dúvidas, para não cair no poço escuro das respostas fáceis, das certezas cômodas e caducas. Porém, o homem de esquerda não faz da dúvida o álibi para a indiferença. Ele nunca é indiferente. Ser de esquerda é saber que este “mundo melhor e possível” não se fará de punhos cerrados nem com gritos de guerra, mas será construído no dia-a-dia, nas pequenas e grandes obras e que, muitas vezes, é preciso comprar batalhas longas e desgastantes. Ser de esquerda é, na batalha, não usar os métodos do inimigo.
Fernando Evangelista

segunda-feira, novembro 11, 2013

 Maconha e álcool: portas de entrada ou saída?


Ilustração de Pat Perry


É verdade que já alimentei fortes preconceitos com relação ao assunto drogas e não tenho vergonha disso. Como tantos da minha geração, eu também sofri o bombardeio da mídia e da família sobre o assunto e, mais do que culpado, sinto-me como mais uma vítima do preconceito e desinformação. Assim, como tudo era “verdade”, não tínhamos a oportunidade de pensar, refletir, dialogar e formar uma convicção própria.


Anos mais tarde, no início da carreira de Juiz de Direito, quando ainda era vigente a Lei nº 6368/76, que previa pena de detenção para o crime de “uso próprio”, ainda cheguei a condenar alguns usuários por porte de maconha. Mesmo indignado, ainda não tinha forças intelectuais para fugir do “dura lex, sede lex” e terminava condenando usuários que não representavam perigo algum para a comunidade.


Com as primeiras decisões da Juíza Maria Lúcia Karam, no Rio de Janeiro, comecei a repensar tudo o que tinha como verdade em relação ao uso de drogas e questionar a aplicação de pena privativa de liberdade para usuários de drogas. Era o início de uma grande virada que culminou com a adesão à proposta de legalização de todas as drogas e filiação à Leap-Brasil – Law Enforcement Against Prohibition, traduzido por nós como "agentes da lei contra a proibição”.


Defender esta proposta não é mais um privilégio de poucos. No Brasil e no mundo, milhares de pessoas estão nesta luta e já se tem como fonte de experiência algumas tentativas oficiais de legalização e descriminalização das drogas. É o caso, por exemplo, da Holanda, Portugal, os estados de Washington e Colorado e, por fim, a tentativa de Uruguai de legalizar o uso e produção da maconha.


Pois bem, voltando ao meu preconceito inicial, outro dia comecei a me lembrar dos meus amigos de infância em Irecê, cidade do sertão da Bahia em que nasci e cresci, que usavam maconha ou que bebiam. A lembrança das pessoas me levaram a pensar no caminho que seguiram e no que estariam fazendo hoje. Muitos amigos e amigas me reapareceram na parede da memória, mas sei que muitos também não foram lembrados. Mistérios da mente humana.


Não vou citar o nome desses meus amigos por motivo óbvio. Da mesma forma, vou destacar apenas alguns casos emblemáticos que resultaram em mortes ou sequelas, mas sem esquecer que muitos, muitos mesmo, usavam álcool e maconha e seguiram nos estudos e profissão. É o começo da compreensão de que “usuário” é completamente diferente de “dependente”.


O caso mais emblemático de uso de maconha foi de TDZ. Ele tinha a mesma idade da turma e era irreverente e brigão. Eu mesmo tive a maior sorte de ser seu amigo e que ele gostasse de mim. Não sei como, TDZ passou a fumar maconha e tornou-se dependente. Nossos pais nos aconselhavam a fugir dele e esta reação dos amigos foi fundamental para agravar sua situação. TDZ deixou de estudar e não sei se ainda usa ou não. O certo, no entanto, é que ficou com graves sequelas causadas pelo uso abusivo de maconha.


Com relação ao álcool, o caso que me vem mais forte à mente é de AMD. Ele era pequeno, moreno, parecido com um índio e muito namorador. “Pegou” quase todas as meninas da cidade e era um craque de bola. Como todos nós, AMD experimentou álcool e, por razões que ainda não sei explicar, não conseguiu mais se livrar dele. Em consequência, depois de muito sofrimento da família, AMD morreu ainda jovem por motivo do uso abusivo do álcool. Todos nós sofremos muito com a morte dele.


Relembrando estes dois casos, vejo hoje como eram diferentes nossos sentimentos em relação ao TDZ e AMD. Do primeiro, tínhamos medo até da fumaça do baseado que fumava; do segundo, quando não provávamos de sua bebida, tínhamos pena de seu estado e lhe aconselhava a ir para casa e não beber mais.


Vou deixar de lado, sem esquecer, os que morreram em consequência do uso do tabaco (câncer de pulmão e outros males) e tantos que morreram em acidentes de carro ou de moto por estarem dirigindo (ou passageiros) embriagados de álcool.


O caso mais emblemático de todos e que hoje tenho a melhor compreensão, mesmo não sendo psicanalista, é de uma família amiga da nossa família e que alguns dos seus membros sofriam da doença do alcoolismo. O pai deles e o irmão mais velho, que não conheci, tinham morrido em decorrência da bebida. Outros irmãos se tornaram alcoolistas e morreram ainda jovens. Outro irmão, no entanto, ao invés da bebida, passou a fumar maconha e tornou-se um usuário problemático para a família, mas mesmo assim manteve a convivência social, militância política e hoje trabalha e tem uma vida normal. Não sei se lhe resultaram sequelas ou se ainda usa, mas enquanto seus irmãos dependentes de álcool estão mortos, ele continua vivo para nos contar sua experiência.


Evidente que não estou fazendo a apologia do uso de maconha, mas apenas apurando minha visão sobre o problema do uso abusivo de drogas, sejam lícitas ou ilícitas, e do preconceito que teimamos em manter com base nesta distinção aleatória e sem sentido algum. Assim, enquanto odiamos e defendemos a prisão de usuários e dependentes das drogas consideradas ilícitas, temos compaixão e ajudamos os dependentes das drogas lícitas. Por culpa de tudo o que nos foi dito até hoje, enxergamos a pessoa humana carente e dependente do álcool, mas só vemos o tráfico e a violência por trás da pessoa dependente de alguma droga ilícita. Na verdade, a virada que precisamos fazer é enxergar por trás de qualquer dependente, de qualquer tipo de droga, uma pessoa humana que precisa de cuidado e solidariedade.


Por fim, voltando ao caso da família amiga, só hoje posso ter a compreensão que usar maconha, para uma pessoa membro de uma família com vários alcoolistas, pode ter sido a “porta de saída” para MRM. Este caso, melhor pensado e estudado, pode jogar por terra este nosso preconceito antigo de que a maconha é a “porta de entrada” para outras drogas. Ao contrário, quando passamos a entender a dependência como uma relação entre o usuário e a substância, a maconha pode ser, em determinadas circunstâncias, a “porta de saída” para o alcoolismo e outras dependências muito mais danosas para a saúde.


Gerivaldo Neiva, Juiz de Direito (Ba), membro da Associação Juízes para a Democracia e Porta-Voz no Brasil do Law Enforcement Against Prohibition (Leap-Brasil)
*comtextolivre

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