Maconha e álcool: portas de entrada ou saída?
Ilustração de Pat Perry |
É verdade que já alimentei fortes preconceitos com relação ao assunto
drogas e não tenho vergonha disso. Como tantos da minha geração, eu
também sofri o bombardeio da mídia e da família sobre o assunto e, mais
do que culpado, sinto-me como mais uma vítima do preconceito e
desinformação. Assim, como tudo era “verdade”, não tínhamos a
oportunidade de pensar, refletir, dialogar e formar uma convicção
própria.
Anos mais tarde, no início da carreira de Juiz de Direito, quando ainda
era vigente a Lei nº 6368/76, que previa pena de detenção para o crime
de “uso próprio”, ainda cheguei a condenar alguns usuários por porte de
maconha. Mesmo indignado, ainda não tinha forças intelectuais para fugir
do “dura lex, sede lex” e terminava condenando usuários que não representavam perigo algum para a comunidade.
Com as primeiras decisões da Juíza Maria Lúcia Karam, no Rio de Janeiro,
comecei a repensar tudo o que tinha como verdade em relação ao uso de
drogas e questionar a aplicação de pena privativa de liberdade para
usuários de drogas. Era o início de uma grande virada que culminou com a
adesão à proposta de legalização de todas as drogas e filiação à
Leap-Brasil – Law Enforcement Against Prohibition, traduzido por nós
como "agentes da lei contra a proibição”.
Defender esta proposta não é mais um privilégio de poucos. No Brasil e
no mundo, milhares de pessoas estão nesta luta e já se tem como fonte de
experiência algumas tentativas oficiais de legalização e
descriminalização das drogas. É o caso, por exemplo, da Holanda,
Portugal, os estados de Washington e Colorado e, por fim, a tentativa de
Uruguai de legalizar o uso e produção da maconha.
Pois bem, voltando ao meu preconceito inicial, outro dia comecei a me
lembrar dos meus amigos de infância em Irecê, cidade do sertão da Bahia
em que nasci e cresci, que usavam maconha ou que bebiam. A lembrança das
pessoas me levaram a pensar no caminho que seguiram e no que estariam
fazendo hoje. Muitos amigos e amigas me reapareceram na parede da
memória, mas sei que muitos também não foram lembrados. Mistérios da
mente humana.
Não vou citar o nome desses meus amigos por motivo óbvio. Da mesma
forma, vou destacar apenas alguns casos emblemáticos que resultaram em
mortes ou sequelas, mas sem esquecer que muitos, muitos mesmo, usavam
álcool e maconha e seguiram nos estudos e profissão. É o começo da
compreensão de que “usuário” é completamente diferente de “dependente”.
O caso mais emblemático de uso de maconha foi de TDZ. Ele tinha a mesma
idade da turma e era irreverente e brigão. Eu mesmo tive a maior sorte
de ser seu amigo e que ele gostasse de mim. Não sei como, TDZ passou a
fumar maconha e tornou-se dependente. Nossos pais nos aconselhavam a
fugir dele e esta reação dos amigos foi fundamental para agravar sua
situação. TDZ deixou de estudar e não sei se ainda usa ou não. O certo,
no entanto, é que ficou com graves sequelas causadas pelo uso abusivo de
maconha.
Com relação ao álcool, o caso que me vem mais forte à mente é de AMD.
Ele era pequeno, moreno, parecido com um índio e muito namorador.
“Pegou” quase todas as meninas da cidade e era um craque de bola. Como
todos nós, AMD experimentou álcool e, por razões que ainda não sei
explicar, não conseguiu mais se livrar dele. Em consequência, depois de
muito sofrimento da família, AMD morreu ainda jovem por motivo do uso
abusivo do álcool. Todos nós sofremos muito com a morte dele.
Relembrando estes dois casos, vejo hoje como eram diferentes nossos
sentimentos em relação ao TDZ e AMD. Do primeiro, tínhamos medo até da
fumaça do baseado que fumava; do segundo, quando não provávamos de sua
bebida, tínhamos pena de seu estado e lhe aconselhava a ir para casa e
não beber mais.
Vou deixar de lado, sem esquecer, os que morreram em consequência do uso
do tabaco (câncer de pulmão e outros males) e tantos que morreram em
acidentes de carro ou de moto por estarem dirigindo (ou passageiros)
embriagados de álcool.
O caso mais emblemático de todos e que hoje tenho a melhor compreensão,
mesmo não sendo psicanalista, é de uma família amiga da nossa família e
que alguns dos seus membros sofriam da doença do alcoolismo. O pai deles
e o irmão mais velho, que não conheci, tinham morrido em decorrência da
bebida. Outros irmãos se tornaram alcoolistas e morreram ainda jovens.
Outro irmão, no entanto, ao invés da bebida, passou a fumar maconha e
tornou-se um usuário problemático para a família, mas mesmo assim
manteve a convivência social, militância política e hoje trabalha e tem
uma vida normal. Não sei se lhe resultaram sequelas ou se ainda usa, mas
enquanto seus irmãos dependentes de álcool estão mortos, ele continua
vivo para nos contar sua experiência.
Evidente que não estou fazendo a apologia do uso de maconha, mas apenas
apurando minha visão sobre o problema do uso abusivo de drogas, sejam
lícitas ou ilícitas, e do preconceito que teimamos em manter com base
nesta distinção aleatória e sem sentido algum. Assim, enquanto odiamos e
defendemos a prisão de usuários e dependentes das drogas consideradas
ilícitas, temos compaixão e ajudamos os dependentes das drogas lícitas.
Por culpa de tudo o que nos foi dito até hoje, enxergamos a pessoa
humana carente e dependente do álcool, mas só vemos o tráfico e a
violência por trás da pessoa dependente de alguma droga ilícita. Na
verdade, a virada que precisamos fazer é enxergar por trás de qualquer
dependente, de qualquer tipo de droga, uma pessoa humana que precisa de
cuidado e solidariedade.
Por fim, voltando ao caso da família amiga, só hoje posso ter a
compreensão que usar maconha, para uma pessoa membro de uma família com
vários alcoolistas, pode ter sido a “porta de saída” para MRM. Este
caso, melhor pensado e estudado, pode jogar por terra este nosso
preconceito antigo de que a maconha é a “porta de entrada” para outras
drogas. Ao contrário, quando passamos a entender a dependência como uma
relação entre o usuário e a substância, a maconha pode ser, em
determinadas circunstâncias, a “porta de saída” para o alcoolismo e
outras dependências muito mais danosas para a saúde.
Gerivaldo Neiva,
Juiz de Direito (Ba), membro da Associação Juízes para a Democracia e
Porta-Voz no Brasil do Law Enforcement Against Prohibition (Leap-Brasil)
*comtextolivre
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