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Ser de esquerda é não aceitar as injustiças, sejam elas quais forem, como um fato natural. É não calar diante da violação dos Direitos Humanos, em qualquer país e em qualquer momento. É questionar determinadas leis – porque a Justiça, muitas vezes, não anda de mãos dadas com o Direito; e entre um e outro, o homem de esquerda escolhe a justiça.
É ser guiado por uma permanente capacidade de se estarrecer e, com ela e por causa dela, não se acomodar, não se vender, não se deixar manipular ou seduzir pelo poder. É escolher o caminho mais justo, mesmo que seja cansativo demais, arriscado demais, distante demais. O homem de esquerda acredita que a vida pode e deve ser melhor e é isso, no fundo, que o move. Porque o homem de esquerda sabe que não é culpa do destino ou da vontade divina que um bilhão de pessoas, segundo dados da ONU, passe fome no mundo.
É caminhar junto aos marginalizados; é repartir aquilo que se tem e até mesmo aquilo que falta, sem sacrifício e sem estardalhaço. À direita, cabe a tarefa de dar o que sobra, em forma de esmola e de assistencialismo, com barulho e holofotes. Ser de esquerda é reconhecer no outro sua própria humanidade, principalmente quando o outro for completamente diferente. Os homens e mulheres de esquerda sabem que o destino de uma pessoa não deveria ser determinado por causa da raça, do gênero ou da religião.
Ser de esquerda é não se deixar seduzir pelo consumismo; é entender, como ensinou Milton Santos, que a felicidade está ancorada nos bens infinitos. É mergulhar, com alegria e inteireza, na luta por um mundo melhor e neste mergulho não se deixar contaminar pela arrogância, pelo rancor ou pela vaidade. É manter a coerência entre a palavra e a ação. É alimentar as dúvidas, para não cair no poço escuro das respostas fáceis, das certezas cômodas e caducas. Porém, o homem de esquerda não faz da dúvida o álibi para a indiferença. Ele nunca é indiferente. Ser de esquerda é saber que este “mundo melhor e possível” não se fará de punhos cerrados nem com gritos de guerra, mas será construído no dia-a-dia, nas pequenas e grandes obras e que, muitas vezes, é preciso comprar batalhas longas e desgastantes. Ser de esquerda é, na batalha, não usar os métodos do inimigo.
Fernando Evangelista

quinta-feira, julho 09, 2015

O domínio estratégico do petróleo é das estatais: algumas lições da experiência internacional

Até 2008, 73% das reservas de petróleo no mundo pertencia às estatais. Nenhuma das maiores empresas de petróleo do mundo é multinacional. Entenda por quê.


Marcelo Zero
Saudi Aramco/Reprodução
Qual é a maior empresa de petróleo do mundo? A Exxon? A Shell? A Chevron? A BP? 

Nenhuma delas. 

As maiores empresas de petróleo e gás do mundo são estatais - as chamadas national oil companies (NOCs). 

Entre elas, estão a Saudi Aramco (Arábia Saudita), a NIOC (Irã), a KPC (Kuwait), a ADNOC (Abu Dhabi), a Gazprom (Rússia), a CNPC (China), a PDVSA (Venezuela), a Statoil (Noruega), a Petronas (Malásia), a NNPC (Nigéria), a Sonangol (Angola), a Pemex (México) e a Petrobras. 

Numa estimativa conservadora, feita em 2008, antes do pré-sal ser bem conhecido, as NOCs já dominavam 73% das reservas provadas de petróleo do mundo e respondiam por 61% da produção de óleo. Segundo a Agência Internacional de Energia, a tendência é a de que as NOCs sejam responsáveis por 80% da produção adicional de petróleo e gás até 2030, pois elas dominam as reservas. 

Nem sempre foi assim. 

Até 1970, as chamadas international oil companies (IOCs), as grandes multinacionais, as Sete Irmãs, dominavam inteiramente 85% das reservas mundiais de petróleo. Outros 14% das jazidas eram dominados por empresas privadas menores e as NOCs tinham acesso a apenas 1% das reservas. As estatais que existiam na época, como a YPF (Argentina) a Pemex (México), a Petrobras e a PDVSA, não tinham a menor influência real nesse mercado.



As IOCs faziam o que bem entendiam. 

Ditavam a produção e o preço do petróleo e derivados no mundo, sempre com a perspectiva de curto prazo de obter o maior lucro possível e remunerar acionistas. Fortemente verticalizadas, as Sete Irmãs se encarregavam da pesquisa, da prospecção, da produção, do refino e da distribuição. Conteúdo nacional? Só o suor de trabalhadores locais de baixa qualificação. Tudo isso começou a mudar ao final da década de 1960. 

O nacionalismo árabe, de inspiração nasserista, incitou uma onda de nacionalização do petróleo, que se iniciou na Argélia, em 1967, e na Líbia de Khadafi (o ódio do Ocidente a Khadafi não era gratuito), em 1969 e 1970. Tal onda nacionalizante se estendeu rapidamente por todo o Oriente Médio, no início da década de 1970. Governos nacionalizaram jazidas e expropriaram ativos das multinacionais para criar as suas próprias companhias de petróleo. 

Em 1972, Arábia Saudita, Qatar, Kuwait e Iraque, onde estavam as principais reservas mundiais, já tinham iniciado esses processos. Isso mudou inteiramente o mercado do petróleo. 

Os governos passaram a se apropriar de uma renda muito maior da cadeia do óleo, até mesmo porque descobriram que as IOCs escondiam deles os reais custos de produção, reduzindo artificialmente a remuneração devida aos países. E os Estados, não as Sete Irmãs, começaram a ditar o ritmo da produção e da comercialização do petróleo, não mais com a perspectiva de obter o máximo de dividendos no curto prazo, mas com o objetivo estratégico de maximizar o uso de um recurso natural finito e não renovável. 

No âmbito internacional, esse novo domínio estatal permitiu que os países produtores, reunidos na OPEP, passassem a influenciar efetivamente o preço do petróleo, que se transformou numa commodity mundial. 

Em 1973, após a Guerra do Yom Kippur entre árabes e israelenses, os países árabes impuseram um embargo aos EUA, à Europa e ao Japão, que apoiaram Israel, o qual fez disparar os preços do óleo no mundo. Foi o primeiro choque do petróleo, o qual teria sido impossível de realizar num mercado governado apenas pelos interesses das grandes multinacionais. Ao longo da década de 70, o domínio estratégico dos Estados sobre o petróleo cresceu com a ampliação e a sedimentação dos processos de nacionalização das reservas, a criação de grandes companhias estatais e o fortalecimento das já existentes.

Significativamente, a onda privatizante que verificou no mundo todo nos anos 80 e 90, sob o paradigma do neoliberalismo, não afetou, de modo substancial, o domínio estatal sobre a cadeia do petróleo. 

Houve alguns episódios de privatizações totais ou parciais, especialmente na América Latina e no Leste europeu. Na Argentina, por exemplo, ocorreu a privatização da YPF, a segunda estatal do petróleo a ser criada, em 1928. No Brasil, a Petrobras teve o seu capital aberto na Bolsa de Nova Iorque. Na Rússia, alguns setores da indústria de hidrocarbonetos foram também privatizados. 

Contudo, o aumento dos preços do petróleo ocorrido a partir do início deste século provocou nova onda de nacionalizações e de criação de estatais. Na Rússia, Putin reverteu as privatizações, conformando uma poderosíssima Gazprom. O mesmo ocorreu em países da Ásia Central, como o Azerbaijão e o Uzbequistão. Na Bolívia, o governo Morales nacionalizou as jazidas de hidrocarbonetos. Na Argentina, o governo Kirchner desapropriou a Repsol, que havia se apossado dos despojos da YPF. 

Essa tendência praticamente mundial ao controle estatal do petróleo não ocorre por acaso. No estudo de mais de mil páginas intitulado Oil and Governance: State-owned Enterprises and the World Energy Supply, publicado em 2012 pela Cambridge Press e que analisa a experiência de 15 grandes NOCs (inclusive a Petrobras), os organizadores mencionam algumas fortes razões para o surgimento e a persistência dessa tendência. Há, é óbvio, motivos políticos, como o apelo do nacionalismo e a conveniência de obter ganhos geopolíticos com o controle efetivo e direto de bens sensíveis e estratégicos como os hidrocarbonetos, como faz a Rússia, por exemplo. 

Mas há também razões vinculadas estritamente à racionalidade econômica de longo prazo. O controle direto das jazidas e da produção do petróleo permitiria, com maior facilidade: 

1) Influenciar o preço dos hidrocarbonetos no mercado interno, conferindo, se necessário, subsídios em energia ao setor produtivo. 

2) Instaurar políticas de conteúdo nacional, que se aproveitem das oportunidades e sinergias criadas pela produção de hidrocarbonetos para criar uma longa cadeia nacional do petróleo, estimulando indústrias e o setor de serviços. 

3) Ditar o ritmo de exploração das reservas e de comercialização do óleo, conforme o interesse nacional e dentro de uma visão estratégica de aproveitar ao máximo a existência de um recurso natural finito e não renovável. 

4) Gerar e obter informações detalhadas sobre as jazidas de óleo e gás, seu potencial e seus custos de exploração. 

5) Desenvolver tecnologia própria relativa à cadeia dos hidrocarbonetos. 

Alguns podem argumentar que pelo menos parte desses objetivos poderia ser alcançada sem a participação necessária de uma NOC. Em tese, um bom modelo regulador tornaria possível a consecução desses objetivos estratégicos e de longo prazo sem a participação direta de uma estatal como grande operadora das jazidas. 

A experiência internacional demonstra, contudo, que isso é muito difícil. 

No estudo mencionado, entre as 15 grandes NOCs analisadas, somente 2 não são grandes operadoras: a NNPC, da Nigéria, e a Sonangol, de Angola. Essas grandes companhias africanas desempenham funções básicas de regulação e não têm capacidade técnica de operar na prospecção e na produção dos hidrocarbonetos. 

No caso da Nigéria, a análise mostra que o país não consegue controlar a contento seu setor petrolífero, base da economia nigeriana. As grandes companhias multinacionais que lá atuam dominam inteiramente a produção e a prospecção e remuneram o Estado com base em suas próprias informações sobre custos e volume produzido. 

A NNPC, por não ser operadora, não tem condições técnicas reais de avaliá-los. Também não há política efetiva de criação de uma cadeia de petróleo na Nigéria. Soma-se a isso, uma péssima gestão da estatal e sua submissão a um sistema político fortemente fisiológico. A NNPC não consegue ser nem operadora competente, nem reguladora efetiva do setor, apresentando um desempenho muito pobre. Desse modo, a Nigéria não tem a gestão estratégica de seu recurso natural mais valioso. 

No que tange à Sonangol, embora o capítulo a ela dedicado a destaque como uma reguladora eficiente e estável, que não atrapalha as operações das multinacionais lá instaladas, as informações que chegam diretamente de Angola conformam um quadro muito ruim. 

Conforme Francisco de Lemos Maria, que assumiu a presidência da empresa em 2012, o atual modelo operacional caracteriza-se pela crescente dependência da Sonangol, quer da contribuição de terceiros para a geração de resultados, quer de outsourcing de serviços, do básico ao especializado. 

Segundo esse novo presidente, o sistema de hidrocarbonetos em Angola é “insustentável”. Com efeito, a prometida “angolonização” dos insumos e dos serviços da cadeia do petróleo não funcionou e, agora, a nova presidência vem envidando esforços para transformar a Sonangol também numa operadora eficiente e robusta. 

Parece haver, portanto, uma correlação positiva, entre ter capacidade de gestão estratégica dos hidrocarbonetos e contar com uma NOC que tenha efetiva capacidade de operar as jazidas. É evidente que as NOCs não são uma panaceia em si e podem, inclusive, ser instrumento de distorções e ineficiências, especialmente em países com ralos controles democráticos da gestão estatal. Mas a sua existência facilita muito, sem dúvida, a gestão estratégica dos recursos do petróleo por parte dos Estados nacionais. Mesmo o tão elogiado modelo norueguês de gestão dos hidrocarbonetos, que contém elementos liberalizantes, se assenta, no fundamental, na Statoil, que opera, com muita eficiência, cerca de 80% das reservas de petróleo da Noruega. 

Deve-se ter em mente que as grandes nacionalizações do petróleo na década de 1970 foram suscitadas essencialmente pela necessidade que os Estados detectaram de ter acesso a informações fidedignas sobre as jazidas e os custos de produção e operacionalização das atividades da cadeia do petróleo. De um modo geral, as grandes multinacionais da época ocultavam essas informações dos governos, os quais, por não contarem com operadoras próprias, não tinham como aferir ou contestar os dados apresentados pelas empresas.

Por isso, a grande maioria dos governos não se limitou a mudar o modelo de regulação, mas também se preocupou em criar NOCs, como grandes operadoras, para dar sustentáculo prático e técnico aos novos parâmetros de gestão estratégica dos hidrocarbonetos. Afinal, informação é poder. 

No caso da Petrobras, sua utilidade para o Brasil e sua competitividade única no mundo reside justamente nas informações e na tecnologia que ela detém. A Petrobras é a única, entre todas as grandes NOCs, que foi criada antes de haver a constatação da existência de reservas provadas de petróleo em seu território de atuação. Todas as outras foram geradas num ambiente de certeza de reservas provadas e/ou de fácil nacionalização de ativos pré-existentes. 

Desse modo, a Petrobras teve de investir pesadamente, desde o início, em prospecção e desenvolvimento próprio de tecnologia, principalmente de tecnologia de exploração em águas profundas e ultraprofundas, o que já lhe valeu merecidos grandes prêmios internacionais. 

Por conseguinte, o grande diferencial da Petrobras, no concorrido mercado dos hidrocarbonetos, reside na sua tecnologia de vanguarda e no domínio das informações estratégicas sobre as jazidas, particularmente as do pré-sal. Esse diferencial permitiu à Petrobras manter-se como a grande operadora do petróleo no Brasil, mesmo após os famosos contratos de risco da década de 1970 e da adoção do modelo de concessão, na década de 1990. Pois bem, retirar da Petrobras a condição de operadora única do pré-sal pode subtrair da empresa esse diferencial único, e, do Brasil, a capacidade de gerir estrategicamente os fantásticos, mas finitos recursos do pré-sal. 

De fato, a depender do ritmo dos leilões do pré-sal, a Petrobras não conseguiria participar da maioria, o que poderia resultar em seu alijamento da maior parte do pré-sal. Deve-se ter em mente que, num ambiente de crise e de estrangulamento das receitas, a tentação de acelerar, numa perspectiva de curto prazo, os leilões do pré-sal pode eclipsar as considerações estratégicas de longo prazo.

Para a empresa, tal alijamento resultaria num célere enfraquecimento e, provavelmente, numa dificuldade em honrar sua dívida contraída justamente para ter condições de explorar o pré-sal. Todo o seu capital tecnológico e informacional poderia ser vendido ou perdido e ela acabaria se transformando, em um cenário mais pessimista e no longo prazo, numa grande NNPC ou Sonangol, dedicada a atuar secundariamente como reguladora. Para o país, o quadro de alijamento da Petrobras da maior parte do pré-sal ou mesmo de parte significativa dele, provavelmente resultaria numa grande dificuldade para gerir estrategicamente os seus recursos oriundos dos hidrocarbonetos. 

Encontraríamos, nesse cenário, obstáculos consideráveis para controlar o ritmo da produção, amealhar os royalties efetivamente devidos e implantar a política de conteúdo nacional. 

Nesse sentido, retirar da Petrobras a condição de operadora única do pré-sal pode ser o início de seu fim e o começo sub-reptício de uma Petrobax. Pode ser também, num sentido maior, o início do fim de um Brasil desenvolvido, soberano e justo.  
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Marcelo Zero é sociólogo, especialista em Relações Internacionais e membro do Grupo de Reflexão sobre Relações Internacionais (GR-RI).

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