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Ser de esquerda é não aceitar as injustiças, sejam elas quais forem, como um fato natural. É não calar diante da violação dos Direitos Humanos, em qualquer país e em qualquer momento. É questionar determinadas leis – porque a Justiça, muitas vezes, não anda de mãos dadas com o Direito; e entre um e outro, o homem de esquerda escolhe a justiça.
É ser guiado por uma permanente capacidade de se estarrecer e, com ela e por causa dela, não se acomodar, não se vender, não se deixar manipular ou seduzir pelo poder. É escolher o caminho mais justo, mesmo que seja cansativo demais, arriscado demais, distante demais. O homem de esquerda acredita que a vida pode e deve ser melhor e é isso, no fundo, que o move. Porque o homem de esquerda sabe que não é culpa do destino ou da vontade divina que um bilhão de pessoas, segundo dados da ONU, passe fome no mundo.
É caminhar junto aos marginalizados; é repartir aquilo que se tem e até mesmo aquilo que falta, sem sacrifício e sem estardalhaço. À direita, cabe a tarefa de dar o que sobra, em forma de esmola e de assistencialismo, com barulho e holofotes. Ser de esquerda é reconhecer no outro sua própria humanidade, principalmente quando o outro for completamente diferente. Os homens e mulheres de esquerda sabem que o destino de uma pessoa não deveria ser determinado por causa da raça, do gênero ou da religião.
Ser de esquerda é não se deixar seduzir pelo consumismo; é entender, como ensinou Milton Santos, que a felicidade está ancorada nos bens infinitos. É mergulhar, com alegria e inteireza, na luta por um mundo melhor e neste mergulho não se deixar contaminar pela arrogância, pelo rancor ou pela vaidade. É manter a coerência entre a palavra e a ação. É alimentar as dúvidas, para não cair no poço escuro das respostas fáceis, das certezas cômodas e caducas. Porém, o homem de esquerda não faz da dúvida o álibi para a indiferença. Ele nunca é indiferente. Ser de esquerda é saber que este “mundo melhor e possível” não se fará de punhos cerrados nem com gritos de guerra, mas será construído no dia-a-dia, nas pequenas e grandes obras e que, muitas vezes, é preciso comprar batalhas longas e desgastantes. Ser de esquerda é, na batalha, não usar os métodos do inimigo.
Fernando Evangelista

quarta-feira, março 26, 2014

1964: a FIESP assistia às torturas


Com o consulado americano. (A Folha fornecia as camionetes.)

O Conversa Afiada reproduz artigo de Ivan Seixas na Carta Capital (não deixe de ler: “PiG se lembra de 64 e esconde o trabalhador“):

Um golpe contra o Brasil



O objetivo da ditadura era implantar um projeto econômico e social cujo alvo eram os trabalhadores, escreve Ivan



Engana-se quem acha que a ditadura foi implantada , em abril de 1964, com uma quartelada ou alguma ação improvisada de militares furiosos. Foi um golpe de Estado anticomunista, antioperário e antinacional, dentro da histeria da Guerra Fria, em uma agressão escancarada para impor um minucioso projeto econômico e social desenvolvido segundo os interesses do capitalismo estrangeiro e seus aliados nacionais.

Para impor esse projeto econômico e social era necessário impor o arrocho salarial e medidas impopulares sem precedentes. E para que isso se efetivasse era necessário o terrorismo de Estado e a cumplicidade e cooperação do empresariado nacional. A grande maioria dos sindicatos de trabalhadores sofreu intervenção, que passaram a ser dirigidos por gente de confiança da ditadura e dos patrões. Para garantir a repressão, uma extensa rede de repressão se instala desde os primeiros momentos da ditadura sob o comando do temido SNI – Serviço Nacional de Informações, complementada por agentes de repressão particular dentro das fábricas, contratados pelos empresários. Essa cooperação é prevista no organograma do SISNI – Sistema Nacional de Informações, que destaca as “Comunidades Complementares” com os convênios com “Entidades privadas conveniadas”.

Toda essa rede de arapongas a serviço do empresariado foi detectada pela Comissão Estadual da Verdade Rubens Paiva, de São Paulo, com base em documentos oficiais do SNI, guardados no Arquivo Nacional. Do mesmo modo, o Arquivo do Estado de São Paulo guarda documentos que mostram que as empresas entregavam as fichas funcionais de seus empregados ao DOPS – Departamento de Ordem Política e Social para que fossem perseguidos pela temida repressão política e essa perseguição servir de desculpas para demitir e colocar o nome do perseguido nas “listas negras” daqueles que não poderiam conseguir emprego mais. Suas famílias passavam fome e os empresários impunham assim o medo da demissão e a submissão dos trabalhadores dentro do projeto implantado em abril de 1964.

A Comissão Estadual descobriu também os livros de entrada e saída no DOPS. Não o livro de entrada de presos, mas o de visitantes do departamento. Sem nenhuma dúvida, o visitante mais constante era um funcionário da FIESP – Federação das Indústrias do Estado de São Paulo, Geraldo Resende de Mattos, homem de confiança do chefe da entidade patronal. Suas visitas nem sempre têm registrado o horário de saída. Numa dessas vezes, a entrada foi pouco antes das seis da tarde e sua saída se dá no dia seguinte quase sete horas da manhã. Óbvio que o funcionário da FIESP ia lá organizar a repressão ao movimento sindical já amordaçado, reprimido e duramente perseguido. Mais uma vez o projeto econômico e social implantado em 1964 era garantido pela repressão política da ditadura sem nenhum disfarce, bem longe da civilidade ou legalidade.

Outro que visitava muito aquele órgão de repressão, tortura e extermínio e opositores à ditadura militar era Claris Halliwell, graduado membro do consulado geral dos EUA, que entrava e saía com muita frequência e também não tinha horário de saída registrado ou só saía no dia seguinte. Em geral, sua presença lá coincidia com os dias em que aconteciam terríveis sessões de tortura a membros da resistência ao estado de terror imperante. Sua entrada acontecia junto com conhecidos torturadores do DOI-CODI de São Paulo como o tenebroso Capitão Ênio Pimentel Silveira, notório torturador e assassino de presos políticos. A entrada dos dois indica que participavam das sessões de torturas, como é o caso do dirigente do Movimento Revolucionário Tiradentes (MRT), Devanir José de Carvalho, Comandante Henrique, barbarizado por quase três dias seguidos e assassinado ao fim dessa jornada.

Torturas, assassinatos e desaparecimentos de opositores militantes de organizações revolucionárias de luta armada aconteciam no mesmo lugar e com a mesma atenção que a repressão ao movimento sindical e de trabalhadores em geral. A ligação que há entre Mister Halliwell e Geraldo Resende de Mattos é o projeto econômico e social implantado em 1964, com orientação, apoio e acompanhamento do governo americano ao Estado usurpado pelos golpistas civis e militares, que se perpetuaram por longos 21 anos seguidos no poder. Causaram danos em, pelo menos, três gerações de brasileiros e estão impunes até hoje.

Nesse momento em que se marcam os cinquenta anos do assalto ao poder por gente que não tinha compromisso com a democracia e menos ainda com o País, devemos refletir o que se pode fazer para o Brasil continuar e aperfeiçoar suas instituições. Cometeram crimes de lesa-humanidade e também crimes de lesa-pátria, pois causaram danos ao povo trabalhador, aos jovens, à cultura nacional, à economia nacional e às instituições nacionais. E continuam impunes. As mortes são imperdoáveis, mas o que se pode dizer da fome causada aos trabalhadores colocados nas chamadas “listas negras”? Não eram “apenas” os trabalhadores, mas todos os componentes de suas famílias. Danos morais, políticos e econômicos em mulheres, crianças e idosos. Não há como perdoar. Tudo cometido em nome de um maldito projeto econômico e social de uma potência estrangeira.

*Ivan Seixas, ex-militante do Movimento Revolucionário Tiradentes (MRT), foi torturado ao lado do pai, assassinado pelo regime. Hoje Seixas preside o Conselho Estadual de Defesa dos Direitos da Pessoa Humana. Seu relato faz parte da série de 50 depoimentos coletados para o especial Ecos da Ditadura, sobre os 50 anos do golpe civil-militar de 1964


Navalha
Não fossem as Comissões da Verdade do Rio ( do Wadih Damous) e de São Paulo (do Ivan Seixas), os coronéis Ustra, Malhães e Belham, e o notável empresário Paulo Sawaya – clique aqui para ler sobre o PIB da tortura – dormiriam o sono dos justos.
Ou melhor, o sono que o Supremo embala.
Porque aquela Comissão 1/10 da Verdade de Brasília ainda não sabe onde fica o Ministério da Defesa.

Paulo Henrique Amorim

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