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Ser de esquerda é não aceitar as injustiças, sejam elas quais forem, como um fato natural. É não calar diante da violação dos Direitos Humanos, em qualquer país e em qualquer momento. É questionar determinadas leis – porque a Justiça, muitas vezes, não anda de mãos dadas com o Direito; e entre um e outro, o homem de esquerda escolhe a justiça.
É ser guiado por uma permanente capacidade de se estarrecer e, com ela e por causa dela, não se acomodar, não se vender, não se deixar manipular ou seduzir pelo poder. É escolher o caminho mais justo, mesmo que seja cansativo demais, arriscado demais, distante demais. O homem de esquerda acredita que a vida pode e deve ser melhor e é isso, no fundo, que o move. Porque o homem de esquerda sabe que não é culpa do destino ou da vontade divina que um bilhão de pessoas, segundo dados da ONU, passe fome no mundo.
É caminhar junto aos marginalizados; é repartir aquilo que se tem e até mesmo aquilo que falta, sem sacrifício e sem estardalhaço. À direita, cabe a tarefa de dar o que sobra, em forma de esmola e de assistencialismo, com barulho e holofotes. Ser de esquerda é reconhecer no outro sua própria humanidade, principalmente quando o outro for completamente diferente. Os homens e mulheres de esquerda sabem que o destino de uma pessoa não deveria ser determinado por causa da raça, do gênero ou da religião.
Ser de esquerda é não se deixar seduzir pelo consumismo; é entender, como ensinou Milton Santos, que a felicidade está ancorada nos bens infinitos. É mergulhar, com alegria e inteireza, na luta por um mundo melhor e neste mergulho não se deixar contaminar pela arrogância, pelo rancor ou pela vaidade. É manter a coerência entre a palavra e a ação. É alimentar as dúvidas, para não cair no poço escuro das respostas fáceis, das certezas cômodas e caducas. Porém, o homem de esquerda não faz da dúvida o álibi para a indiferença. Ele nunca é indiferente. Ser de esquerda é saber que este “mundo melhor e possível” não se fará de punhos cerrados nem com gritos de guerra, mas será construído no dia-a-dia, nas pequenas e grandes obras e que, muitas vezes, é preciso comprar batalhas longas e desgastantes. Ser de esquerda é, na batalha, não usar os métodos do inimigo.
Fernando Evangelista

quinta-feira, maio 08, 2014

O que há por trás da cortina de silêncio que envolve a conexão sexo, namoro e deficiência



É mais fácil para os deficientes falar sobre discriminação no emprego e educação do que sobre sexualidade
(Não) Vamos Falar sobre Sexo
Foram menos de 30 segundos para o encontro passar de promissor a muito ruim. Depois de algumas conversas on-line, Steve* estava animado para encontrar Kayla, de 24 anos, uma assistente de juiz com quem ele se conectou no site de relacionamento Plentyoffish. Eles decidiram se ver no pub Bull and Firkin, em Toronto, em um começo de noite de agosto de 2012. Ele a viu primeiro: cabelo loiro acobreado, lábios carnudos – ainda mais atraente pessoalmente. Steve, um assessor de imprensa, de 27 anos, tem paralisia cerebral, usa muletas ou uma cadeira de rodas para se movimentar. Naquela noite ele foi de cadeira de rodas. Ele sorriu para ela e foi em direção à mesa. Ao se aproximar, ele viu a calma expressão de Kayla mudar. Ela pareceu confusa, diz ele, como uma criança perdida. Os olhos dela foram direto para a cadeira de rodas.
Steve ficou imaginando por que ela estava tão confusa: seu perfil no site de encontros o mostrava claramente sentado em uma cadeira de rodas. De mais a mais, foi Kayla quem mandou a mensagem primeiro. Talvez ela não tivesse visto a foto dele? Talvez ela tivesse pensado que Steve estava vestindo uma fantasia de Halloween? Com dois minutos de conversa, Steve sabia que “talvez” não importava – estava claro, ele diz agora, que Kayla não estava mais interessada. O encontro durou 45 desconfortáveis minutos, antes que eles decidissem rachar a conta. Nem ela nem ele mencionaram, na conversa, a cadeira de rodas. Foi isso o que mais o desapontou: ele entendeu por que ela estava desinteressada, sem que ela tivesse dito alguma coisa.
Quanto aos encontros para namoro, para Steve são um campo minado por desafios: antes de se preocupar com o que dizer ou vestir em um encontro, ele – como muitas pessoas com deficiência – sente que tem de convencer a mulher de que ele também é um ser humano. Ele deve convencê-las, diz, de que sua deficiência física não anula sua capacidade ou desejo de namorar e fazer sexo – considerando os desafios, não é uma tarefa fácil.
A sociedade tem um estereótipo e trata deficientes físicos como indesejáveis ou parceiros sexuais incapazes.
sociedade tem um estereótipo e trata deficientes físicos como indesejáveis ou parceiros sexuais incapazes.
Foco positivo
Aqui, uma revelação espantosa: muitas pessoas acreditam que aquelas com deficiência não podem, não vão e não devem contribuir com o futuro da raça humana, escreve Tobin Siebers, professor da Universidade de Michigan, num ensaio publicado no livro “Sex and Disability” (sexo e deficiência). Essas pessoas acreditam que aquelas com deficiências não são capazes da reprodução, mas se conseguirem, os resultados serão ruins.
Assim, não é difícil imaginar que uma cultura do silêncio tenha enclausurado a comunidade de deficientes. “A sexualidade é, com frequência, a fonte de nossas mais profundas opressões e dores”, diz Anne Fringer, ativista e escritora norte- americana focada em questões de deficiência, que se tornou deficiente após contrair poliomielite quando bebê. Ela diz que é mais fácil para as pessoas com deficiência falar – e traçar estratégias para mudanças – sobre discriminação no emprego, educação e habitação do que entrar a fundo na questão da exclusão da sexualidade e reprodução. Os direitos sexuais não são prioridade para o movimento dos direitos dos deficientes, diz Anne, mas, sim, criar uma imagem de “deficiente apto”.
Em 2011, Tim Rose e sua mulher, Natalie Sanborn, fundaram o Rose Centre para jovens adultos com deficiências. Em parte, a missão do centro é promover discussões e conscientização sobre deficiência e sexualidade (a meta secundária é promover o foco positivo no público em geral nas questões como deficiência, relacionamentos e sexualidade). Tim, de 28 anos, tem paralisia cerebral, enquanto Natalie tem o corpo fisicamente capaz. Eles se conheceram por meio de um amigo comum. Recém-casados, Tim diz que com frequência eles recebem olhares estranhos e perguntas. “Perguntam a ela se é minha mãe ou minha enfermeira”, diz ele. Ainda assim, o casal prefere se manter alegre. Essa atitude positiva levou à criação do Rose Centre: sem recursos para ajudar os deficientes a se encontrarem, os dois decidiram criar um espaço próprio em que isso fosse possível. O centro não tem um local permanente (ainda), mas realiza noites mensais de discussões e eventos sociais na Universidade Ryerson, uma das maiores do Canadá, em Toronto.
Tim diz que pessoas de todas as origens e deficiências participam dos encontros promovidos pelo centro. “Muitas pessoas que vêm dizem que nunca tiveram ninguém com quem falar sobre isso”, diz. “Elas sempre guardam essas coisas para si.” Muitos dos que participam não têm experiência ou não sabem como é um encontro amoroso. Quando se chega ao que se sabe sobre encontros e relações românticas e sexuais, ele diz, muitos participantes estão bem atrasados em seus conhecimentos. E, talvez, sem graça de falar sobre o assunto. Em situações como essas, Tim e mais seis voluntários podem começar a conversa falando das próprias lutas – como Tim não gostava de fazer sexo até que ele “redefiniu” sexo e o tornou confortável para ele – e formas de superá-las.
Tópico controverso
O que, com certeza, não ajuda é o sexo ser um assunto tabu. Quando se trata do mundo dos encontros amorosos, o sentido de tabu pode se traduzir de maneiras esquisitas e humilhantes. Helena*, 33 anos, com atrofia muscular, é aluna de mestrado na Universidade de Toronto e tem um parceiro há dois anos, de quem ficou noiva. Ela está feliz. Mas nem sempre foi assim. Na casa dos 20 anos, ela lembra, muitos caras a viam “somente” como uma amiga ou parceira sexual – mas não como alguém com quem pudesse ter um relacionamento.
Helena sentiu que tinha de decidir se queria ficar sozinha e não experimentar intimidade – ou se deveria se dar a chance, conhecer homens on-line e explorar sua sexualidade. Escolheu abraçar sua sexualidade. Ela e quaisquer pessoas com as quais trocasse mensagens expressavam francamente o interesse em ter sexo. Mas ela também procurou parceiros românticos. Helena acha que o sexo é uma parte natural e bonita da experiência, que deve ser celebrada.
Muitas pessoas têm atração sexual por pessoas com deficiência física – justamente por causa da deficiência. São os chamados “devotos”. Sem surpresa, os devotos são um tópico muito controverso. Entre as muitas preocupações estão: se o tipo de relacionamento explora pessoas com deficiência; se transforma as pessoas em objeto de fetiche; e que tipo de mensagem está sendo enviada quando a deficiência é colocada pela primeira vez. Raymond J. Aguilera é deficiente, escritor, mora na Califórnia e escreve sobre questões de LGBT e deficiência. Ele diz que embora alguns devotos entrem na categoria de “preocupantes”, há homens e mulheres deficientes que escolhem ter relacionamento com um devoto.
Página do Rose Centre: missão prioritária é promover discussões e conscientização sobre deficiência e sexualidade
Página do Rose Centre: missão prioritária é promover discussões e conscientização sobre deficiência e sexualidade
Assistentes sexuais
Com muita frequência, a cultura do silêncio tem sido alimentada pela aparentemente inabalável concepção de que pessoas deficientes são assexuadas. Elas não podem e não querem ter sexo. A sociedade tem um estereótipo e trata deficientes físicos como indesejáveis ou parceiros sexuais incapazes.
No entanto, às vezes os problemas com mobilidade podem trazer dificuldade – e o sexo pode ser fisicamente impossível sem a ajuda de alguém. No Canadá, a profissão de cuidador (PSW, na sigla em inglês de Personal Support Workers) não é regulamentada. Os cuidadores (de deficientes, idosos ou doentes) são contratados diretamente pelos clientes e trabalham em suas casas, ou são arregimentados por agências, hospitais e edifícios voltados para serviços a deficientes ou idosos. Muitas agências têm políticas segundo as quais os cuidadores não devem dar nenhuma assistência relacionada ao sexo. Mas devido à não regulamentação da profissão no Canadá e à flexibilidade para criar as próprias políticas, algumas agências e cuidadores optam por dar assistência sexual.
Isso é mais frequente nos casos em que o cuidador e o cliente desenvolvem um relacionamento forte o suficiente, no qual o cuidador se sente à vontade em assisti-lo em atividades relacionadas ao sexo, como colocar o cliente em posições sexuais, conforme querem seus parceiros.
Tim consultou cuidadores para dar assistência a ele e a uma antiga namorada, também com deficiência, durante os encontros sexuais. “Pode parecer estranho”, diz ele, “mas é parte do relacionamento”. É uma atitude saudável de se ter, especialmente considerando-se que, como ele diz, o assunto assistência ao sexo é raramente discutido.
Steve desativou seu perfil no Plentyoffish em fevereiro de 2013. Por razões médicas, ele diz que não saía muito por causa de dor nas costas e nas juntas. Encontros amorosos ficaram bem embaixo na sua lista de prioridades. De mais a mais, ele não acha que a maioria das mulheres seja capaz de lidar com sua dor crônica e “outras coisas malucas” que muitas pessoas não compreendem. Na época, parecia mais fácil simplesmente evitar relacionamentos.
Então, ele encontrou Crystal*, uma morena mignon, pouco tempo depois, na The House of Moments, galeria de arte e restaurante. Três semanas depois, Crystal convidou Steve para sair. Em junho, eles se tornaram um casal monogâmico. Como muitos casais novos, eles têm muito a aprender um sobre o outro. Steve ficou sabendo que Crystal tem uma leve paralisia cerebral. Ele também notou as particularidades dela, como a forma com que ela morde seu lábio inferior quando pensativa ou como mexe a cabeça quando ouve suas músicas favoritas. O relacionamento está ficando sério, mas eles estão indo devagar. Estão saboreando o tempo que passam juntos. E o sexo, Steve diz que é fantástico e pleno.
* Nomes fictícios
Tradução Teresa Sousa
Texto originalmente publicado em This Magazine, revista canadense nas versões impressa e eletrônica de perfil alternativo com foco em política e cultura.
*deficientecient

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