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Ser de esquerda é não aceitar as injustiças, sejam elas quais forem, como um fato natural. É não calar diante da violação dos Direitos Humanos, em qualquer país e em qualquer momento. É questionar determinadas leis – porque a Justiça, muitas vezes, não anda de mãos dadas com o Direito; e entre um e outro, o homem de esquerda escolhe a justiça.
É ser guiado por uma permanente capacidade de se estarrecer e, com ela e por causa dela, não se acomodar, não se vender, não se deixar manipular ou seduzir pelo poder. É escolher o caminho mais justo, mesmo que seja cansativo demais, arriscado demais, distante demais. O homem de esquerda acredita que a vida pode e deve ser melhor e é isso, no fundo, que o move. Porque o homem de esquerda sabe que não é culpa do destino ou da vontade divina que um bilhão de pessoas, segundo dados da ONU, passe fome no mundo.
É caminhar junto aos marginalizados; é repartir aquilo que se tem e até mesmo aquilo que falta, sem sacrifício e sem estardalhaço. À direita, cabe a tarefa de dar o que sobra, em forma de esmola e de assistencialismo, com barulho e holofotes. Ser de esquerda é reconhecer no outro sua própria humanidade, principalmente quando o outro for completamente diferente. Os homens e mulheres de esquerda sabem que o destino de uma pessoa não deveria ser determinado por causa da raça, do gênero ou da religião.
Ser de esquerda é não se deixar seduzir pelo consumismo; é entender, como ensinou Milton Santos, que a felicidade está ancorada nos bens infinitos. É mergulhar, com alegria e inteireza, na luta por um mundo melhor e neste mergulho não se deixar contaminar pela arrogância, pelo rancor ou pela vaidade. É manter a coerência entre a palavra e a ação. É alimentar as dúvidas, para não cair no poço escuro das respostas fáceis, das certezas cômodas e caducas. Porém, o homem de esquerda não faz da dúvida o álibi para a indiferença. Ele nunca é indiferente. Ser de esquerda é saber que este “mundo melhor e possível” não se fará de punhos cerrados nem com gritos de guerra, mas será construído no dia-a-dia, nas pequenas e grandes obras e que, muitas vezes, é preciso comprar batalhas longas e desgastantes. Ser de esquerda é, na batalha, não usar os métodos do inimigo.
Fernando Evangelista

terça-feira, outubro 28, 2014

Afinal, fidelidade é fruto de uma relação entre pessoas e não é bem jurídico tutelado pelo Direito, apesar de existir quem pense o contrário.

Ora, mas então para que serve um Direito que não entende as razões de cada pessoa, a vida, a alma e as tragédias pessoais? Afinal, um Direito que não tem a vida, a liberdade, a dignidade e a felicidade como objeto, não passa de um conhecimento que se alimenta apenas do cheiro de mofo dos autos e das vestes talares dos juristas.

As limitações do Direito no universo Lupiciniano



As limitações do Direito no universo Lupiciniano[1]

Gerivaldo Neiva *

Lupicínio Rodrigues (1914-1974) é um artista muito conhecido e cantado por gerações mais antigas e pouco conhecido pela galera atual. Na linha evolutiva da MPB (Raul Seixas), no final dos anos 70, em plena ditadura militar, a bossa nova e o tropicalismo tomaram o espaço midiático (era do rádio) da música “dor de cotovelo” e serestas nos vozeirões dos trovadores, a exemplo de Vicente Celestino, Altemar Dutra e Nelson Gonçalves, dando lugar a cadência de João Gilberto e protestos de Gil e Caetano. Nos anos 80, muitas bandas e vozes surgiram no cenário musical brasileiro e desde então a riqueza da música brasileira só aumenta a cada ano, apesar dos pagodes de uma nota só e de outros lixos musicais.
Não é que tenha saudade da música “dor de cotovelo” e das serestas apaixonadas, mas reconheço que este tipo de música teve um lugar importante no cenário musical brasileiro nos anos 50 e 60. Não posso negar, também, que em certos momentos e certas situações bate uma nostalgia danada desse tempo e me pego cantarolando coisa do tipo: “Você sabe o que é ter um amor, meu senhor? Ter loucura por uma mulher...”
Daí, quando misturo o lirismo das tragédias cantadas neste estilo musical com as normais legais ou morais vigentes, minha mente vagueia por entre códigos e notas musicais em busca de algum sentido ou relação entre as tragédias da vida e o Direito. Algo do tipo: - E normais legais e morais servem para delimitar o sentido e consequências das tragédias humanas? Mas estas normas se aplicam às tragédias humanas? Se não, para que servem então?
Voltando à Lupicínio Rodrigues, talvez as gerações mais novais nem saibam, quando escutam a voz suave de Paulinho da Viola cantando “você sabe o que é ter um amor, meu senhor? E por ele quase morrer”, que esta maravilha de poesia é de autoria do Lupicínio.  
Nesta poesia, Lupicínio apenas levanta a hipótese de praticar ato impensado movido pela violenta emoção, apaixonado que é, ao encontrar seu amor nos “braços de um outro qualquer”. O fato não se consuma, mas o poeta não deixa de considerar que algumas pessoas têm nervos de aço, enquanto outras podem não resistir e talvez lhe venham alguma reação. Por fim, o poeta deixa claro sua condição humana, demasiada humana, de trazer no peito um sentimento contraditório de ciúme, despeito, amizade ou horror e que, ao ver a mulher amada nos braços de outro, sente desejo de morte ou de dor.
Só mesmo os poetas para traduzir este sentimento e transformar esta tradução em forma de música. Nenhuma norma legal ou moral poderá prever, inibir ou determinar sobre um sentimento desta natureza. Pode a norma, por exemplo, estabelecer “não matarás” ou que este ato será definido como “homicídio”, mas nenhuma norma legal ou moral poderá compreender a natureza mais profunda da ação humana. Aliás, tentam julgar as consequências desses sentimentos, mas permanecerão apenas nos aspectos formais da interpretação do ato sob o prisma criminológico, ou seja, é a interpretação do jurista que irá definir a conduta como criminosa, mas a motivação e o sentimento humano que ensejou aquele ato passará sempre distante desta interpretação.
Antes que algum desconhecedor da obra poética de Lupicíno Rodrigues o acuse de “politicamente incorreto” ou machista, é importante conhecer esta outra poesia (Quem há de dizer) que retrata a mesma condição de homem apaixonado. Desta feita, no entanto, nosso poeta é apaixonado por uma prostituta e, enquanto espera com sono o cabaré terminar, permite que sua amada trabalhe nesta condição, beba e dance, pois “ela nasceu com o destino da lua, pra todos que andam na rua e não vai viver só pra mim”. Aliás, mesmo com o aconselhamento de um amigo(“Rapaz, leve esta mulher contigo!”), nosso poeta resiste e deixa transparecer a sua mais alta compreensão e tolerância, recusando a sugestão do amigo.
A tradução do amor mais profundo, misto de respeito, querer e admiração, é retratado pelo poeta ao provocar a admiração do ouvinte/leitor e confessar que aquela mulher bebendo, dançando e sendo desejada por todos, é o seu “querido amor”. E ele, caindo de sono, apenas espera o cabaré terminar para então ter o seu momento de amor com a mulher amada.
Evidente que ressaltei até aqui o papel masculino e nada observei acerca do querer e vontades femininas, visto que estamos em uma sociedade machista e mesmo nas normas prevalecem, ainda, a vontade do masculino sobre o feminino. Assim, visto de outro ângulo, na primeira poesia, há de se perguntar por que a mulher amada teria preferido os braços de um “outro qualquer”, apesar do amor e loucura que lhe sente o traído? Ademais, sob qual parâmetro poderá dizer o traído que o braço do outro nem um “pedaço do seu pode ser”? Lembrando Nelson Rodrigues, “perdoa-me por me traíres!” Enfim, coisas da alma humana e distantes anos luz da tutela das normas legais ou morais.
Em seguida, vista de outro ângulo, na segunda poesia, há que ressaltar que a mulher amada, mesmo tendo ao seu dispor muitos homens do cabaré, prefere, ao final, a companhia calma e sincera do homem que lhe espera. Terá ainda “pique” para um último trago com seu amado e mais sexo ou preferirá uma boa noite de sono?
Por fim, misture-se agora os personagens – o que sente desejo de morte e dor com a traição e o que aceita o trabalho da amada em um cabaré – e tente julgar suas condutas, na hipótese da prática de um ato movido pelas circunstâncias vividas nas poesias (traição e compreensão) com base apenas nas normas legais e morais dominantes em nosso tempo. Em suma, há como julgá-las certas ou erradas, criminosas ou permitidas, legais ou ilegais...?? Só de pensar, eu, juiz de direito, confesso que o Direito poderá até fornecer as ferramentas (homicídio doloso por motivo torpe ou fútil?), para este julgamento, mas não tenho a menor pretensão de dizer e alardear em uma sentença judicial que se fez, em qualquer hipótese (condenação ou absolvição), a justiça que pretende fazer os códigos e as normas aceitas como paradigmas da moralidade e da manutenção da ordem familiar vigente. Afinal, fidelidade é fruto de uma relação entre pessoas e não é bem jurídico tutelado pelo Direito, apesar de existir quem pense o contrário.
Como tantas vezes já ouvir de interlocutores – Professor, o Direito não serve para julgar o lirismo das tragédias! – sei que neste momento esta observação ecoa mais uma vez. Como tenho respondido sempre, repito: - Ora, mas então para que serve um Direito que não entende as razões de cada pessoa, a vida, a alma e as tragédias pessoais? Afinal, um Direito que não tem a vida, a liberdade, a dignidade e a felicidade como objeto, não passa de um conhecimento que se alimenta apenas do cheiro de mofo dos autos e das vestes talares dos juristas.

Eis as letras das canções

NERVOS DE AÇO

Você sabe o que é ter um amor, meu senhor?
Ter loucura por uma mulher.
E depois encontrar esse amor, meu senhor,
ao lado de um tipo qualquer?

Você sabe o que é ter um amor, meu senhor
E por ele quase morrer.
E depois encontrá-lo em um braço,
que nem um pedaço do seu pode ser?

Há pessoas de nervos de aço,
sem sangue nas veias e sem coração,
mas não sei se passando o que eu passo
talvez não lhes venha qualquer reação.

Eu não sei se o que trago no peito
é ciúme, é despeito, amizade ou horror.
Eu só sei é que quando a vejo
me dá um desejo de morte ou de dor.

(Ouça aqui com o próprio Lupicínio e Paulinho da Viola:


QUEM HÁ DE DIZER

Quem há de dizer
que quem você está vendo
naquela mesa bebendo
é o meu querido amor.
Repare bem que toda vez
que ela fala ilumina mais a sala
do que a luz do refletor.
O cabaré se inflama
quando ela dança
e com a mesma esperança
todos lhe põe o olhar.
E eu, o dono,
aqui no meu abandono
espero louco de sono
o cabaré terminar.

Rapaz! Leva esta mulher contigo.
Disse uma vez um amigo
quando nos viu conversar.
Vocês se amam
e o amor deve ser sagrado.
O resto deixa de lado,
vai construir o teu lar.
Palavra! Quase aceitei o conselho.
O mundo, este grande espelho,
que me fez pensar assim.
Ela nasceu com o destino da lua,
pra todos que andam na rua,
não vai viver só pra mim.

(Ouça aqui na voz de Jamelão:


* Juiz de Direito (Ba), membro da Associação Juízes para a Democracia (AJD), membro da Comissão de Direitos Humanos da Associação dos Magistrados Brasileiros (AMB) e Porta-Voz no Brasil do movimento Law Enforcement Against Prohibition (Leap-Brasil)





[1] Este texto foi inspirado em uma conversa muito agradável com os poetas José Carlos Capinam e Jorge Portugal, no bar Varanda, em Salvador (Ba).





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