Páginas

Ser de esquerda é não aceitar as injustiças, sejam elas quais forem, como um fato natural. É não calar diante da violação dos Direitos Humanos, em qualquer país e em qualquer momento. É questionar determinadas leis – porque a Justiça, muitas vezes, não anda de mãos dadas com o Direito; e entre um e outro, o homem de esquerda escolhe a justiça.
É ser guiado por uma permanente capacidade de se estarrecer e, com ela e por causa dela, não se acomodar, não se vender, não se deixar manipular ou seduzir pelo poder. É escolher o caminho mais justo, mesmo que seja cansativo demais, arriscado demais, distante demais. O homem de esquerda acredita que a vida pode e deve ser melhor e é isso, no fundo, que o move. Porque o homem de esquerda sabe que não é culpa do destino ou da vontade divina que um bilhão de pessoas, segundo dados da ONU, passe fome no mundo.
É caminhar junto aos marginalizados; é repartir aquilo que se tem e até mesmo aquilo que falta, sem sacrifício e sem estardalhaço. À direita, cabe a tarefa de dar o que sobra, em forma de esmola e de assistencialismo, com barulho e holofotes. Ser de esquerda é reconhecer no outro sua própria humanidade, principalmente quando o outro for completamente diferente. Os homens e mulheres de esquerda sabem que o destino de uma pessoa não deveria ser determinado por causa da raça, do gênero ou da religião.
Ser de esquerda é não se deixar seduzir pelo consumismo; é entender, como ensinou Milton Santos, que a felicidade está ancorada nos bens infinitos. É mergulhar, com alegria e inteireza, na luta por um mundo melhor e neste mergulho não se deixar contaminar pela arrogância, pelo rancor ou pela vaidade. É manter a coerência entre a palavra e a ação. É alimentar as dúvidas, para não cair no poço escuro das respostas fáceis, das certezas cômodas e caducas. Porém, o homem de esquerda não faz da dúvida o álibi para a indiferença. Ele nunca é indiferente. Ser de esquerda é saber que este “mundo melhor e possível” não se fará de punhos cerrados nem com gritos de guerra, mas será construído no dia-a-dia, nas pequenas e grandes obras e que, muitas vezes, é preciso comprar batalhas longas e desgastantes. Ser de esquerda é, na batalha, não usar os métodos do inimigo.
Fernando Evangelista

sexta-feira, janeiro 06, 2012

Quando banqueiros se tornam gângsteres


Via Jornal do Brasil
Mauro Santayana 
Primeiro-ministro da França entre 1988 e 1991, Michel Rocard é homem respeitável em seu país. Ele, e um economista mais moço, Pierre Larrouturou, publicaram, segunda-feira, em Le Monde, artigo baseado em fontes americanas sobre os empréstimos concedidos pelo Tesouro dos Estados Unidos aos bancos, em 2008. De acordo com as denúncias — feitas pela agência de informações econômicas Bloomberg — os juros cobrados pelo FED aos bancos e seguradoras foram de apenas 0,01% ao ano, enquanto os bancos estão emprestando aos Estados europeus em dificuldades a juros de 6% a 9% ao ano — de 600 a 900 vezes mais. De acordo com as denúncias da Bloomberg, retomadas por Rocard e Larrouturou, o montante do socorro por Bush e Henry Paulson, seu secretário do Tesouro, aos banqueiros, chegou a um trilhão e duzentos bilhões de dólares, em operações secretas.
O artigo cita a cáustica conclusão de Roosevelt, durante sua luta para salvar os Estados Unidos depois da irresponsabilidade criminosa dos especuladores que haviam provocado a Grande Depressão: “Um governo dirigido pelo dinheiro organizado é igual a um governo dirigido pelo crime organizado”.
Dentro do raciocínio de Roosevelt, podemos comparar a carreira de Henry Paulson à de qualquer grande boss  de Chicago ou de Nova York no crime organizado. Desde 1974 — quando tinha 28 anos — Paulson tem servido ao Goldman Sachs, a cuja presidência chegou em 1999. Nos sete anos seguintes, ele consolidou a posição do banco em sua atuação internacional — e foi convocado por Bush para ocupar a Secretaria do Tesouro dos Estados Unidos em 2006. Poucos dias antes, ele deixou a presidência do banco, e preferiu converter a indenização a que teria direito (o famoso bônus) em participação acionária. Isso o manteve ligado, por interesse próprio, aos destinos do banco.
A AIG — a maior seguradora norte-americana — recebeu cerca de 80 bilhões de dólares
Uma das primeiras firmas a serem beneficiadas pela ajuda do Tesouro, por decisão de Paulson, durante a crise de 2008, foi a AIG — a maior seguradora norte-americana — com cerca de 80 bilhões de dólares. Ocorre que o principal credor da AIG era o Goldman Sachs, que desse dinheiro recebeu quase 30 bilhões, logo em seguida.
O Goldman foi multado, em julho de 2010, pela SEC (Securities and Exchanche Commission) por fraude, em 550 milhões de dólares, por ter atuado de má-fé na questão das operações com papéis da dívida imobiliária. E são ex-diretores do Goldman Sachs (provavelmente ainda grandes acionistas do banco, como é o caso de Henry Paulson) que se encontram agora no controle do Banco Central Europeu (Mario Draghi), na chefia dos governos da Itália (Mario Monti) e da Grécia (Lucas Papademos). O que farão esses interventores do Goldman Sachs, no controle das finanças europeias, a não ser defender os interesses dos bancos — e seus lucros fraudulentos? Se Roosevelt fosse vivo, naturalmente estaria pensando em sua advertência dos anos 30.
É brutal a semelhança entre a situação atual e a de 1929. Ao analisar os fatos daquele tempo, John Galbraight disse que “o outono de 1929 foi, talvez, a primeira ocasião em que os homens tiveram, em grande escala, a capacidade de enganar a si mesmos”. A escala do autoengano parece ser ainda maior em nossos dias. Rocard lembra a observação de Paul Krugman, de que a Europa entrou em uma “espiral da morte” — mas não é apenas a Europa que corre esse risco.
Assim podemos explicar a advertência de Edgar Morin — também citada por Rocard — de que a civilização ocidental está entre a metamorfose e a morte. “O capitalismo sem regras é o suicídio da civilização”, como afirmam Morin e Stephane Hessel, em seu livro recente Le chemin de l’espérance.
O ex-premier Rocard registra, em seu artigo no Le Monde, que as dívidas dos países europeus para com os grandes bancos são antigas, e sua solução não é difícil. Se o Tesouro americano foi capaz de emprestar a 0,01 aos bancos fraudadores e irresponsáveis, o Banco Central Europeu poderia emprestar, com as mesmas taxas, a instituições nacionais europeias — seu estatuto veda o empréstimo direto aos estados-membros — como os bancos estatais de fomento e caixas econômicas. Essas instituições repassariam as somas aos estados, cobrando-lhes juros em dobro — a 0,02% ao ano. Se prevalecessem a razão e a ética, estaria resolvido o problema europeu da dívida pública.
Os governantes de hoje, em sua maioria, não servem a seus povos
Registre-se, no entanto, que o lema do Goldman Sachs, creditado a um de seus antigos controladores, Gus Levy, nos anos 50, é autoelucidativo: “long-term greedy”, ganância a longo prazo. O fato singelo é o de que, em tempos de crise — como disse Keynes em 1937, e Krugman relembrou também em texto recente — não cabe a austeridade, com corte de gastos sociais e de infraestrutura, mas, sim, é preciso investir e criar empregos. Os governantes de hoje, em sua maioria, não servem a seus povos, e em razão disso desprezam pensadores como Keynes. Estão a serviço de grandes corporações, dirigidas por fraudadores, como os banqueiros do Goldman Sachs.
Talvez tenhamos que ir mais adiante ainda — e seguir o conselho de Morin: para não perecer, a civilização ocidental terá que sofrer a metamorfose necessária, encasular-se na razão e, nela, criar asas para o voo.

Nenhum comentário:

Postar um comentário