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Ser de esquerda é não aceitar as injustiças, sejam elas quais forem, como um fato natural. É não calar diante da violação dos Direitos Humanos, em qualquer país e em qualquer momento. É questionar determinadas leis – porque a Justiça, muitas vezes, não anda de mãos dadas com o Direito; e entre um e outro, o homem de esquerda escolhe a justiça.
É ser guiado por uma permanente capacidade de se estarrecer e, com ela e por causa dela, não se acomodar, não se vender, não se deixar manipular ou seduzir pelo poder. É escolher o caminho mais justo, mesmo que seja cansativo demais, arriscado demais, distante demais. O homem de esquerda acredita que a vida pode e deve ser melhor e é isso, no fundo, que o move. Porque o homem de esquerda sabe que não é culpa do destino ou da vontade divina que um bilhão de pessoas, segundo dados da ONU, passe fome no mundo.
É caminhar junto aos marginalizados; é repartir aquilo que se tem e até mesmo aquilo que falta, sem sacrifício e sem estardalhaço. À direita, cabe a tarefa de dar o que sobra, em forma de esmola e de assistencialismo, com barulho e holofotes. Ser de esquerda é reconhecer no outro sua própria humanidade, principalmente quando o outro for completamente diferente. Os homens e mulheres de esquerda sabem que o destino de uma pessoa não deveria ser determinado por causa da raça, do gênero ou da religião.
Ser de esquerda é não se deixar seduzir pelo consumismo; é entender, como ensinou Milton Santos, que a felicidade está ancorada nos bens infinitos. É mergulhar, com alegria e inteireza, na luta por um mundo melhor e neste mergulho não se deixar contaminar pela arrogância, pelo rancor ou pela vaidade. É manter a coerência entre a palavra e a ação. É alimentar as dúvidas, para não cair no poço escuro das respostas fáceis, das certezas cômodas e caducas. Porém, o homem de esquerda não faz da dúvida o álibi para a indiferença. Ele nunca é indiferente. Ser de esquerda é saber que este “mundo melhor e possível” não se fará de punhos cerrados nem com gritos de guerra, mas será construído no dia-a-dia, nas pequenas e grandes obras e que, muitas vezes, é preciso comprar batalhas longas e desgastantes. Ser de esquerda é, na batalha, não usar os métodos do inimigo.
Fernando Evangelista

terça-feira, janeiro 10, 2012

A VOLTA DA NOVILÍNGUA

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A Folha chamava o general Pinochet de "presidente"... 
Informa o site Carta Maior que, ao apagar das luzes de 2011, o governo direitista de Sebastián Piñera introduziu sorrateiramente uma mudança nos livros de história do Chile em relação à designação dos “anos de chumbo”, período dominado pelo general Augusto Pinochet. Nos últimos 20 anos, ao menos duas gerações de estudantes chilenos aprenderam que o governo de Pinochet foi uma ditadura, mas, no final de 2010, o governo Piñera decidiu mudar esse conceito pelo de “regime militar”, tido como mais “técnico”. Parece uma mera mudança semântica, mas não é. 
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É uma tentativa ideológica de “higienizar” a sangrenta ditadura militar chilena, emoldurando-a num conceito mais “equilibrado”, segundo os arautos da direita.

O episódio me remete à Folha de S. Paulo, que há tempos cunhou aqui o neologismo “ditabranda” para diferenciar a “nossa” ditadura militar, instalada em 1964, das demais que martirizaram a América Latina nos anos 1960/1980. A justificativa do jornal era que no Brasil o regime dos generais não foi tão extremista quanto o da Argentina, que massacrou cerca de 30 mil cidadãos, ou mesmo o do Chile, que eliminou três mil opositores. No Brasil, “apenas” cerca de 500 pessoas foram assassinadas pela ditadura – isso sem contar os que foram torturados e sobreviveram às sevícias. Como se o caráter discricionário de um regime fosse dado pelo número de vítimas fatais e não pela montagem de uma estrutura de repressão política violenta. O Brasil, aliás, era tão bom na prática de tortura que “exportava” know how para o Chile e Argentina, como mostrou o filme Estado de Sítio, de Costa-Gravas. Mas nada disso interessava à Folha; afinal, ela emprestara veículos para agentes da repressão e, pior, praticamente cedera a Folha da Tarde a “jornalistas” do DOPS, que publicavam “notícias” sobre morte de “terroristas” em confronto com a polícia quando estes ainda estavam sendo barbaramente torturados. Não por acaso, a Folha jamais sofreu censura prévia.

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...mas Fidel Castro de "ditador"

A prática da Novilíngua (*) na Folha é antiga. Quando eu trabalhava lá como redator de internacional, nos anos 1980, havia uma determinação do Manual de Redação para designar ditadores pelos seus títulos oficiais. Pinochet sempre era tratado como “o presidente Pinochet”, assim como Alfredo Stroessner, do Paraguai, ou “o ex-presidente Médici”, quando se referia ao chefe do governo mais torcionário da ditadura brasileira. Nunca me esqueço o dia em que uma então editora do JB, que fora fazer uma palestra na Folha, saiu-se com uma provocação: “no meu (sic) jornal, ninguém chama Pinochet de ‘presidente’; é ditador mesmo”. Mas o jornalão da Barão de Limeira tinha dois pesos e duas medidas: líderes de países comunistas não eram “presidentes”, mas “dirigentes” – jamais líderes, mesmo que o fossem. E, na medida em que os ditadores de direita deixavam a cena política, a Folha se esqueceu de seu próprio manual e passou a chamar os líderes comunistas, como Fidel Castro, de ditadores.

Definitivamente, as palavras não são inocentes.


(*) Expressão inventada por George Orwell no romance distópico 1984 para designar o idioma fictício criado pelo governo totalitário do Grande Irmão. A Novilíngua se caracteriza não pela criação de novas palavras, mas pela condensação das existentes e/ou pela remoção de alguns de seus sentidos, com o objetivo de restringir o escopo do pensamento.






velha nova direita


Quando Sebastián Piñera ganhou a Presidência chilena, não foram poucos os que saudaram a sua vitória como a prova maior da vitalidade da democracia no país andino.
Empresário de sucesso, com imagem de homem eficaz e sem grande envolvimento visível com a ditadura de Pinochet, Piñera parecia uma reversão da onda esquerdista que domina a América Latina desde o início do século. Ele era o homem indicado para mostrar, à política latino-americana, a via da modernização conservadora.
No entanto nada deu certo. Depois de dois anos de governo, Piñera protagoniza a maior catástrofe da história da política chilena recente. Com níveis recordes de baixa popularidade, o presidente parece ter servido para mostrar como a direita latino-americana perdeu sua hora.
Desde o movimento dos estudantes chilenos que pediam educação pública de qualidade para todos -revolta esta apoiada por mais de 70% da população-, ficou visível como havia um grande descompasso entre o que o povo queria e o que o governo estava disposto a oferecer.
O povo pediu claramente serviços públicos de qualidade e disponíveis a todos. O governo, com seu ideário neoliberal envelhecido e ineficaz, continuou recusando-se a desenvolver as condições econômicas para o fortalecimento da função pública e para a liberação de largas parcelas da população pobre das garras dos financiamentos bancários contraídos para pagar a educação dos filhos.
Depois, diante da firmeza da revolta estudantil, só passou pela cabeça de Piñera reforçar o aparato de segurança e repressão, isso na esperança de quebrar as demandas sociais.
Discursos contra "nossos jovens que não foram bem-educados pelos pais e que agora querem tudo na boca" ou "os estudantes arruaceiros" e outras pérolas da mentalidade pré-histórica foram ouvidos. Prova maior da incapacidade de responder de forma política a problemas políticos.
Agora, como se não bastasse, seu governo teve de voltar atrás em uma tentativa bisonha de retraduzir a "ditadura militar" chilena em uma novilíngua onde ela se chama "regime militar". Prova indelével de que a direita latino-americana nunca conseguiu fazer a crítica e se desvencilhar de vez de seu apoio às ditaduras.
Quando o assunto volta à baila, eles agem com um estranho espírito de solidariedade, como vimos na votação feita pela Câmara Municipal de Porto Alegre para a modificação do nome de uma avenida que se chamava "Castello Branco". O pedido de modificação, feito bravamente pelo PSOL, foi arquivado.
Nesse vínculo ao passado e nessa inabilidade diante do presente, evidencia-se claramente como a nova direita latino-americana não conseguiu renovar seu guarda-roupa.

*esquerdopata

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