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Ser de esquerda é não aceitar as injustiças, sejam elas quais forem, como um fato natural. É não calar diante da violação dos Direitos Humanos, em qualquer país e em qualquer momento. É questionar determinadas leis – porque a Justiça, muitas vezes, não anda de mãos dadas com o Direito; e entre um e outro, o homem de esquerda escolhe a justiça.
É ser guiado por uma permanente capacidade de se estarrecer e, com ela e por causa dela, não se acomodar, não se vender, não se deixar manipular ou seduzir pelo poder. É escolher o caminho mais justo, mesmo que seja cansativo demais, arriscado demais, distante demais. O homem de esquerda acredita que a vida pode e deve ser melhor e é isso, no fundo, que o move. Porque o homem de esquerda sabe que não é culpa do destino ou da vontade divina que um bilhão de pessoas, segundo dados da ONU, passe fome no mundo.
É caminhar junto aos marginalizados; é repartir aquilo que se tem e até mesmo aquilo que falta, sem sacrifício e sem estardalhaço. À direita, cabe a tarefa de dar o que sobra, em forma de esmola e de assistencialismo, com barulho e holofotes. Ser de esquerda é reconhecer no outro sua própria humanidade, principalmente quando o outro for completamente diferente. Os homens e mulheres de esquerda sabem que o destino de uma pessoa não deveria ser determinado por causa da raça, do gênero ou da religião.
Ser de esquerda é não se deixar seduzir pelo consumismo; é entender, como ensinou Milton Santos, que a felicidade está ancorada nos bens infinitos. É mergulhar, com alegria e inteireza, na luta por um mundo melhor e neste mergulho não se deixar contaminar pela arrogância, pelo rancor ou pela vaidade. É manter a coerência entre a palavra e a ação. É alimentar as dúvidas, para não cair no poço escuro das respostas fáceis, das certezas cômodas e caducas. Porém, o homem de esquerda não faz da dúvida o álibi para a indiferença. Ele nunca é indiferente. Ser de esquerda é saber que este “mundo melhor e possível” não se fará de punhos cerrados nem com gritos de guerra, mas será construído no dia-a-dia, nas pequenas e grandes obras e que, muitas vezes, é preciso comprar batalhas longas e desgastantes. Ser de esquerda é, na batalha, não usar os métodos do inimigo.
Fernando Evangelista

quinta-feira, junho 20, 2013

O preço do progresso (em política não há vazio)



por Boaventura Souza Santos*
do Carta Maior

Com a eleição da Presidente Dilma Rousseff, o Brasil quis acelerar o passo para se tornar uma potência global. Muitas das iniciativas nesse sentido vinham de trás mas tiveram um novo impulso: Conferência da ONU sobre o Meio Ambiente, Rio +20, em 2012, Campeonato do Mundo de Futebol em 2014, Jogos Olímpicos em 2016, luta por lugar permanente no Conselho de Segurança da ONU, papel ativo no crescente protagonismo das "economias emergentes", os BRICS (Brasil, Rússia, Índia, China e África do Sul), nomeação de José Graziano da Silva para Diretor-Geral da Organização da Nações Unidas para a Alimentação e Agricultura (FAO), em 2012, e de Roberto Azevedo para Diretor-Geral Organização Mundial de Comércio, a partir de 2013, uma política agressiva de exploração dos recursos naturais, tanto no Brasil como em África, nomeadamente em Moçambique, favorecimento da grande agricultura industrial sobretudo para a produção de soja, agro-combustíveis e a criação de gado.

Beneficiando-se de uma boa imagem pública internacional granjeada pelo Presidente Lula e as suas políticas de inclusão social, este Brasil desenvolvimentista impôs-se ao mundo como uma potência de tipo novo, benévola e inclusiva. Não podia, pois, ser maior a surpresa internacional perante as manifestações que na última semana levaram para a rua centenas de milhares de pessoas nas principais cidades do país. Enquanto perante as recentes manifestações na Turquia foi imediata a leitura sobre as "duas Turquias", no caso do Brasil foi mais difícil reconhecer a existência de "dois Brasis". Mas ela aí está aos olhos de todos. A dificuldade em reconhecê-la reside na própria natureza do "outro Brasil", um Brasil furtivo a análises simplistas. Esse Brasil é feito de três narrativas e temporalidades.

A primeira é a narrativa da exclusão social (um dos países mais desiguais do mundo), das oligarquias latifundiárias, do caciquismo violento, de elites politicas restritas e racistas, uma narrativa que remonta à colónia e se tem reproduzido sobre formas sempre mutantes até hoje. A segunda narrativa é a da reivindicação da democracia participativa que remonta aos últimos 25 anos e teve os seus pontos mais altos no processo constituinte que conduziu à Constituição de 1988, nos orçamentos participativos sobre políticas urbanas em centenas de municípios, no impeachment do Presidente Collor de Mello em 1992, na criação de conselhos de cidadãos nas principais áreas de políticas públicas especialmente na saúde e educação aos diferentes níveis da ação estatal (municipal, estadual e federal).

A terceira narrativa tem apenas dez anos de idade e diz respeito às vastas políticas de inclusão social adotadas pelo Presidente Lula da Silva a partir de 2003 e que levaram a uma significativa redução da pobreza, à criação de uma classe média com elevado pendor consumista, ao reconhecimento da discriminação racial contra a população afrodescendente e indígena e às políticas de ação afirmativa e à ampliação do reconhecimento de territórios e quilombolas e indígenas.

O que aconteceu desde que a Presidente Dilma assumiu funções foi a desaceleração ou mesmo estancamento das duas últimas narrativas. E como em política não há vazio, o espaço que elas foram deixando de baldio foi sendo aproveitado pela primeira e mais antiga narrativa que ganhou novo vigor sob as novas roupagens do desenvolvimento capitalista todo o custo, e as novas (e velhas) formas de corrupção. As formas de democracia participativa foram cooptadas, neutralizadas no domínio das grandes infraestruturas e megaprojetos e deixaram de motivar as gerações mais novas, orfãs de vida familiar e comunitária integradora, deslumbradas pelo novo consumismo ou obcecadas pelo desejo dele.

As políticas de inclusão social esgotaram-se e deixaram de corresponder às expectativas de quem se sentia merecedor de mais e melhor. A qualidade de vida urbana piorou em nome dos eventos de prestígio internacional que absorveram os investimentos que deviam melhorar transportes, educação e serviços públicos em geral . O racismo mostrou a sua persistência no tecido social e nas forças policiais. Aumentou o assassinato de líderes indígenas e camponeses, demonizados pelo poder político como "obstáculos ao desenvolvimento" apenas por lutarem pelas suas terras e modos de vida, contra o agronegócio e os megaprojetos de mineração e hidrelétricos (como a barragem de Belo Monte, destinada a fornecer energia barata à indústria extrativa).

A Presidente Dilma foi o termómetro desta mudança insidiosa. Assumiu uma atitude de indisfarçável hostilidade aos movimentos sociais e aos povos indígenas, uma mudança drástica em relação ao seu antecessor. Lutou contra a corrupção mas deixou para os parceiros políticos mais conservadores as agendas que considerou menos importantes. Foi assim que a Comissão de Direitos Humanos, historicamente comprometida com os direitos das minorias, foi entregue a um pastor evangélico homofóbico e promove uma proposta legislativa conhecida como “cura gay”. As manifestações revelam que, longe de ter sido o país que acordou, foi a Presidente quem acordou.

Com os olhos postos na experiência internacional e também nas eleições presidenciais de 2014, a Presidente Dilma tornou claro que as respostas repressivas só agudizam os conflitos e isolam os governos. No mesmo sentido, os presidentes de câmara de nove cidades capitais já decidiram baixar o preço dos transportes. É apenas um começo. Para ele ser consistente é necessário que as duas narrativas (democracia participativa e inclusão social intercultural) retomem o dinamismo que já tiveram. Se assim for, o Brasil estará a mostrar ao mundo que só merece a pena pagar o preço do progresso, aprofundando a democracia, redistribuindo a riqueza criada e reconhecendo a diferença cultural e política daqueles para quem progresso sem dignidade é retrocesso.

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Boaventura de Sousa Santos é sociólogo e professor catedrático da Faculdade de Economia da Universidade de Coimbra (Portugal).
*Tecedora

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