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Ser de esquerda é não aceitar as injustiças, sejam elas quais forem, como um fato natural. É não calar diante da violação dos Direitos Humanos, em qualquer país e em qualquer momento. É questionar determinadas leis – porque a Justiça, muitas vezes, não anda de mãos dadas com o Direito; e entre um e outro, o homem de esquerda escolhe a justiça.
É ser guiado por uma permanente capacidade de se estarrecer e, com ela e por causa dela, não se acomodar, não se vender, não se deixar manipular ou seduzir pelo poder. É escolher o caminho mais justo, mesmo que seja cansativo demais, arriscado demais, distante demais. O homem de esquerda acredita que a vida pode e deve ser melhor e é isso, no fundo, que o move. Porque o homem de esquerda sabe que não é culpa do destino ou da vontade divina que um bilhão de pessoas, segundo dados da ONU, passe fome no mundo.
É caminhar junto aos marginalizados; é repartir aquilo que se tem e até mesmo aquilo que falta, sem sacrifício e sem estardalhaço. À direita, cabe a tarefa de dar o que sobra, em forma de esmola e de assistencialismo, com barulho e holofotes. Ser de esquerda é reconhecer no outro sua própria humanidade, principalmente quando o outro for completamente diferente. Os homens e mulheres de esquerda sabem que o destino de uma pessoa não deveria ser determinado por causa da raça, do gênero ou da religião.
Ser de esquerda é não se deixar seduzir pelo consumismo; é entender, como ensinou Milton Santos, que a felicidade está ancorada nos bens infinitos. É mergulhar, com alegria e inteireza, na luta por um mundo melhor e neste mergulho não se deixar contaminar pela arrogância, pelo rancor ou pela vaidade. É manter a coerência entre a palavra e a ação. É alimentar as dúvidas, para não cair no poço escuro das respostas fáceis, das certezas cômodas e caducas. Porém, o homem de esquerda não faz da dúvida o álibi para a indiferença. Ele nunca é indiferente. Ser de esquerda é saber que este “mundo melhor e possível” não se fará de punhos cerrados nem com gritos de guerra, mas será construído no dia-a-dia, nas pequenas e grandes obras e que, muitas vezes, é preciso comprar batalhas longas e desgastantes. Ser de esquerda é, na batalha, não usar os métodos do inimigo.
Fernando Evangelista

terça-feira, junho 29, 2010

Dos terroristas de governo

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Vizinho Descompassado
(Jornal “O Povo”, Fortaleza)
Manuel Domingos
É difícil crer que o presidente eleito da Colômbia reúna legitimidade para garantir perspectiva alvissareira a uma sociedade dilacerada por crises múltiplas e profundas. Juan Manuel Santos, sem enfrentar adversário de peso, mal obteve 22% dos votos dos eleitores habilitados. Ao contrário do que informaram os grandes jornais, como manifestação de massas, a eleição foi um fiasco: 66% do eleitorado se absteve. A alardeada popularidade de Alvaro Uribe, padrinho político de Juan Santos, ficou sem comprovação.
Além disso, este ex-ministro da Defesa rescende a coisa antiga, fora do clima e do compasso da dinâmica política latino-americana. Trata-se de um quadro político de velha cepa, membro de famílias oligárquicas agarradas ao poder desde o século XIX, curtidas em banhos de sangue de seus compatriotas. Sua biografia, sua figura e seu discurso, por mais que se queira, não sugerem promessas de renovação.
O jeito antigo do presidente eleito é reforçado por seu alinhamento incondicional a Washington. Juan Santos comandou oficiais adestrados nas academias de guerra dos Estados Unidos, como, aliás, são todos os integrantes da hierarquia militar colombiana. Enquanto ministro de Uribe, foi personalidade central na implementação do Plano Colômbia, uma inquietante intervenção norte-americana na América Latina travestida de combate ao narcotráfico e ao terrorismo.
No momento em que bases militares norte-americanas são rechaçadas nos mais diversos continentes por pressões populares e governantes cansados da tutela de Washington e em que a integração subcontinental, conjugada ao avanço da democracia e às reformas sociais, dá passos concretos, abrangendo inclusive o sistema de Defesa, é na Colômbia que o Pentágono encontra espaço para seus dispositivos bélicos.
E que espaço! Mais de um milhão de km2 aos quais os barcos de guerra norte-americanos podem acessar pelos dois oceanos. Das bases colombianas, bombardeiros supersônicos podem chegar num piscar de olhos a qualquer canto do mar das Caraíbas ou da Amazônia brasileira.
A Colômbia é especial, foge do tom em política externa e interna. Nenhum outro país sul-americano tem resistido de forma tão contundente à mudança das estruturas herdadas do período colonial. Na direção de seus negócios públicos persistem - aglomeradas nos partidos Liberal e Conservador, cujos chefes reprimiram duramente demandas sociais e novos arranjos representativos - dinastias tenebrosas, inamovíveis, beneficiadas pelos expedientes dos esquadrões da morte e pelo negócio de drogas.
Hernando Ospina, em livro recentemente publicado (“Colombia, Laboratorio de Embrujos: Democracia y Terrorismo del Estado” ), revela com riqueza de detalhes como foi negada participação política às massas desfavorecidas e mesmo aos setores médios urbanos. Tendências de centro-esquerda foram violentamente reprimidas e criminalizadas. Ao contrário do que ocorreu entre seus vizinhos (Brasil, Venezuela, Peru e Equador), que vivenciaram experiências reformistas importantes ao longo do século XX, nenhum partido renovador, mesmo trabalhista ou social-democrata, foi tolerado.
Não há país sul-americano relativamente mais armado que o de Juan Santos. Com um PIB cinco vezes menor que o do Brasil, a Colômbia mantém tropas regulares equivalentes, em número, ao efetivo total das Forças Armadas brasileiras. Só o contingente paramilitar colombiano formalmente declarado supera, em quantidade, as tropas regulares da Argentina, que detém o segundo PIB sul-americano.
O pensamento conservador se preocupa com as compras de armas do governo venezuelano, mas, enquanto o gasto militar da Colômbia em 2008 foi equivalente a 3,7% de seu PIB, o da Venezuela chegou a 1,4% - menor, aliás, que o do Brasil (1,5%). Na última década o dispêndio militar colombiano cresceu 111%, mais que o dobro do brasileiro (39%). No mesmo período, o gasto venezuelano cresceu apenas 27%.
Apesar de comprometer os recursos públicos em aparato militar e de contar com o amparo maciço dos Estados Unidos, quem mais, além dos governantes colombianos apostaria no fim dos sangrentos confrontos internos?
A antiga prática de assassinatos contra lideranças populares chega à atualidade em números assustadores. Sob o governo Uribe, esquadrões da morte a serviço do poder executaram cerca de 500 ativistas e líderes sindicais; milhões de colombianos foram expulsos violentamente de suas moradias sob a acusação de apoio às FARC e a outros movimentos.
Juan Santos, mal legitimado pelas urnas, assumirá o governo prometendo segurança, não reformas sociais. A tarefa de manter a Colômbia na contracorrente das tendências sul-americanas não será fácil.
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Manuel Domingos
(Professor da Universidade Federal Fluminense;
editor de “Tensões Mundiais”)
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Álvaro Uribe e Santos, min. defensa

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