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Ser de esquerda é não aceitar as injustiças, sejam elas quais forem, como um fato natural. É não calar diante da violação dos Direitos Humanos, em qualquer país e em qualquer momento. É questionar determinadas leis – porque a Justiça, muitas vezes, não anda de mãos dadas com o Direito; e entre um e outro, o homem de esquerda escolhe a justiça.
É ser guiado por uma permanente capacidade de se estarrecer e, com ela e por causa dela, não se acomodar, não se vender, não se deixar manipular ou seduzir pelo poder. É escolher o caminho mais justo, mesmo que seja cansativo demais, arriscado demais, distante demais. O homem de esquerda acredita que a vida pode e deve ser melhor e é isso, no fundo, que o move. Porque o homem de esquerda sabe que não é culpa do destino ou da vontade divina que um bilhão de pessoas, segundo dados da ONU, passe fome no mundo.
É caminhar junto aos marginalizados; é repartir aquilo que se tem e até mesmo aquilo que falta, sem sacrifício e sem estardalhaço. À direita, cabe a tarefa de dar o que sobra, em forma de esmola e de assistencialismo, com barulho e holofotes. Ser de esquerda é reconhecer no outro sua própria humanidade, principalmente quando o outro for completamente diferente. Os homens e mulheres de esquerda sabem que o destino de uma pessoa não deveria ser determinado por causa da raça, do gênero ou da religião.
Ser de esquerda é não se deixar seduzir pelo consumismo; é entender, como ensinou Milton Santos, que a felicidade está ancorada nos bens infinitos. É mergulhar, com alegria e inteireza, na luta por um mundo melhor e neste mergulho não se deixar contaminar pela arrogância, pelo rancor ou pela vaidade. É manter a coerência entre a palavra e a ação. É alimentar as dúvidas, para não cair no poço escuro das respostas fáceis, das certezas cômodas e caducas. Porém, o homem de esquerda não faz da dúvida o álibi para a indiferença. Ele nunca é indiferente. Ser de esquerda é saber que este “mundo melhor e possível” não se fará de punhos cerrados nem com gritos de guerra, mas será construído no dia-a-dia, nas pequenas e grandes obras e que, muitas vezes, é preciso comprar batalhas longas e desgastantes. Ser de esquerda é, na batalha, não usar os métodos do inimigo.
Fernando Evangelista

quarta-feira, junho 23, 2010

Alanis

Linguagem e medo global

Por Eduardo Galeano
Na era vitoriana, as calças não podiam ser mencionadas na presença de uma senhorita.

Hoje, não fica bem dizer certas coisas na presença da opinião pública. O capitalismo ostenta o nome artístico de economia de mercado, o imperialismo chama-se globalização.

As vítimas do imperialismo chamam-se países em vias de desenvolvimento, o que é como chamar de crianças aos anões.

O oportunismo chama-se pragmatismo, a traição chama-se realismo.

Os pobres chamam-se carentes, ou carenciados, ou pessoas de escassos recursos.

A expulsão das crianças pobres do sistema educativo é conhecida sob o nome de deserção escolar.

O direito do patrão a despedir o operário sem indemnização nem explicação chama-se flexibilização do mercado laboral.

A linguagem oficial reconhece os direitos das mulheres entre os direitos das minorias, como se a metade masculina da humanidade fosse a maioria.

Ao invés de ditadura militar, diz-se processo.

As torturas chamam-se pressões ilegais, ou também pressões físicas e psicológicas.

Quando os ladrões são de boa família, não são ladrões e sim cleptómanos.

O saqueio dos fundos públicos pelos políticos corruptos responde pelo nome de enriquecimento ilícito.

Chamam-se acidentes os crimes cometidos pelos automóveis.

Para dizer cegos, diz-se não visuais, um negro é um homem de cor.

Onde se diz longa e penosa enfermidade deve-se ler cancro ou SIDA.

Doença repentina significa enfarte, nunca se diz morte e sim desaparecimento físico.

Tão pouco são mortos os seres humanos aniquilados nas operações militares.

Os mortos em batalha são baixas, e as de civis que a acompanham são danos colaterais.

Em 1995, aquando das explosões nucleares da França no Pacífico Sul, o embaixador francês na Nova Zelândia declarou: "Não me agrada essa palavra bomba, não são bombas. São artefactos que explodem".

Chamam-se "Conviver" alguns dos bandos que assassinam pessoas na Colômbia, à sombra da protecção militar.

Dignidade era o nome de um dos campos de concentração da ditadura chilena e Liberdade a maior prisão da ditadura uruguaia.

Chama-se Paz e Justiça o grupo paramilitar que, em 1997, metralhou pelas costas quarenta e cinco camponeses, quase todos mulheres e crianças, no momento em que rezavam numa igreja da aldeia de Acteal, em Chiapas.

O medo global

Os que trabalham têm medo de perder o trabalho.

Os que não trabalham têm medo de nunca encontrar trabalho.

Quem não tem medo da fome, tem medo da comida.

Os automobilistas têm medo de caminhar e os peões têm medo de ser atropelados.

A democracia tem medo de recordar e a linguagem tem medo de dizer.

Os civis têm medo dos militares, os militares têm medo da falta de armas.

É o tempo do medo.

Medo da mulher à violência do homem e medo do homem à mulher sem medo.

Este texto encontra-se em
Cidadã do Mundo

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