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Ser de esquerda é não aceitar as injustiças, sejam elas quais forem, como um fato natural. É não calar diante da violação dos Direitos Humanos, em qualquer país e em qualquer momento. É questionar determinadas leis – porque a Justiça, muitas vezes, não anda de mãos dadas com o Direito; e entre um e outro, o homem de esquerda escolhe a justiça.
É ser guiado por uma permanente capacidade de se estarrecer e, com ela e por causa dela, não se acomodar, não se vender, não se deixar manipular ou seduzir pelo poder. É escolher o caminho mais justo, mesmo que seja cansativo demais, arriscado demais, distante demais. O homem de esquerda acredita que a vida pode e deve ser melhor e é isso, no fundo, que o move. Porque o homem de esquerda sabe que não é culpa do destino ou da vontade divina que um bilhão de pessoas, segundo dados da ONU, passe fome no mundo.
É caminhar junto aos marginalizados; é repartir aquilo que se tem e até mesmo aquilo que falta, sem sacrifício e sem estardalhaço. À direita, cabe a tarefa de dar o que sobra, em forma de esmola e de assistencialismo, com barulho e holofotes. Ser de esquerda é reconhecer no outro sua própria humanidade, principalmente quando o outro for completamente diferente. Os homens e mulheres de esquerda sabem que o destino de uma pessoa não deveria ser determinado por causa da raça, do gênero ou da religião.
Ser de esquerda é não se deixar seduzir pelo consumismo; é entender, como ensinou Milton Santos, que a felicidade está ancorada nos bens infinitos. É mergulhar, com alegria e inteireza, na luta por um mundo melhor e neste mergulho não se deixar contaminar pela arrogância, pelo rancor ou pela vaidade. É manter a coerência entre a palavra e a ação. É alimentar as dúvidas, para não cair no poço escuro das respostas fáceis, das certezas cômodas e caducas. Porém, o homem de esquerda não faz da dúvida o álibi para a indiferença. Ele nunca é indiferente. Ser de esquerda é saber que este “mundo melhor e possível” não se fará de punhos cerrados nem com gritos de guerra, mas será construído no dia-a-dia, nas pequenas e grandes obras e que, muitas vezes, é preciso comprar batalhas longas e desgastantes. Ser de esquerda é, na batalha, não usar os métodos do inimigo.
Fernando Evangelista

sábado, março 01, 2014

Ditado russo: Os russos demoram para selar o cavalo. Mas depois que montam, andam depressa.

Aos poucos, a resposta do Kremlin vai-se tornando mais visível


Traduzido pelo pessoal da Vila Vudu
The Saker
Русские долго запрягают, но быстро едут
Ditado russo:  Os russos demoram para selar o cavalo. Mas depois que montam, andam depressa.
Mapa linguístico da Ucrânia
Ao longo dos últimos dias, os eventos na Ucrânia entraram em fantástica aceleração e houve vários eventos simultâneos. Vou tentar apontá-los um a um.
  • Em Kiev, os líderes da insurgência assumiram controle total do Parlamento e imediatamente aprovaram leis que revogam o status de língua oficial para o idioma russo.
  • Os líderes políticos foram à Praça Maidan para obter a aprovação dos membros propostos para o novo governo.
  • Exatamente como a sra. Nuland ordenou, Iatseniuk ficou com o cargo de primeiro-ministro.
  • Na própria Praça Maidan, aparecem profundas diferenças entre partes, que agora se opõem entre elas, da multidão.
  • O neonazista líder das “forças de segurança Maidan” e um dos fundadores do Partido Liberdade, Andrei Parubii, tornou-se chefe do Conselho de Segurança.
  • O líder do Setor Direita (Pravy Sektor) neonazista, Dmitri Iarosh, é agora Delegado-chefe do Conselho de Segurança.
  • O resto do novo governo é, a maioria, de apoiadores do ex-presidente Yushchenko, em outras palavras: leais agentes dos EUA.
  • O novo regime dissolveu a polícia antitumultos e, assim, liquidou a última força que restava ainda capaz de manter a lei e a ordem nas regiões controladas pelos insurgentes. Agora reina a lei das gangues, nua e crua.
  • A moeda está em queda livre. Iatseniuk diz que são necessários $35 bilhões imediatamente, para evitar um calote. A dívida total é de $170 bilhões.
  • Nas áreas controladas pelo novo regime, estão acontecendo “expropriações” (roubos e assaltos) por toda a parte; a rua é governada pelos bandidos.
  • Yanukovich foi retirado da Ucrânia por forças da segurança russas (mais sobre isso, adiante).
  • O Parlamento do Tartaristão e o Congresso Mundial dos Tártaros apelou aos tártaros da Crimeia, basicamente para parar a merda toda (disseram em termos mais polidos). Honra e glória, à sabedoria dessas duas organizações!
  • Homens armados, não identificados, tomaram o prédio do Parlamento da Crimeia às 4h da madrugada, só para assegurar que, dessa vez, os membros eleitos daquele Parlamento pudessem entrar e reunir-se. Uma bandeira russa foi hasteada no topo do prédio do Parlamento.
  • O governador de Carcóvia, Mikhail Dobkin, renunciou ao cargo, para concorrer à presidência da Ucrânia, nas eleições de 25 de maio.
  • O Parlamento da Crimeia assumiu as funções do governo central e anunciou um referendo sobre o futuro da Crimeia, marcado para 25 de maio.
  • O recém-eleito prefeito de Sebastopol reuniu-se com o Comandante-em-chefe da Frota do Mar Negro. Os dois declararam que não será tolerada nenhuma violência, seja de que tipo for.
  • Novas milícias populares de defesa formaram-se na Crimeia, com número estimado entre 5 mil e 15 mil membros, organizados em brigadas. Estão controlando todas as principais estradas e no momento estão filtrando o tráfego de quaisquer “visitantes” provenientes das áreas controladas pela insurgência.
  • ·Membros importantes do Parlamento russo visitaram a Crimeia para manifestar apoio à população local e reunir-se com parlamentares da Crimeia.
  • Na Rússia, as opiniões estão divididas sobre o que fazer: Vladimir Zhirinovksy e seu partido LDPR dizem que a Rússia deve ficar de fora e não dar um único rublo aos ucranianos. Os comunistas querem que a Rússia leve a questão ao Conselho de Segurança da ONU. O Partido “Só Rússia” (mais “moderado”) está manifestando pleno apoio ao povo da Crimeia e diz que a Rússia tem de intervir e ajudá-lo. Feitas as contas, a tomada do governo por neonazistas em Kiev parece estar despertando uma mistura de desgosto e fúria, que pressionará o Kremlin para que faça alguma coisa.
Assim sendo... E o Kremlin? De fato, acho que começo a discernir o que me parece ser uma estratégia de resposta em várias camadas, que o Kremlin porá em andamento, todas as camadas simultaneamente:
1) No plano da legislação vigente:
Yanuk
Ao retirar Yanuk do país e permitir que se refugiasse na Rússia, o Kremlin deixou claro que o presidente legitimamente eleito da Ucrânia estará fisicamente disponível para desafiar qualquer e todas as decisões do novo governo, do Parlamento controlado pelos insurgentes e do governo nacionalista fascista. É evidente que Yanuk está politicamente morto, mas, em termos da legislação vigente, continua a ser extremamente poderoso e ator importante que tem de ser mantido vivo.
2) No plano ucraniano:

Mikhail Dobkin
O (agora ex-) governador da Carcóvia, Mikhail Dobkin, fez “discreta” viagem à Rússia e voltou com a decisão de renunciar ao cargo de governador, para concorrer à presidência.
À primeira vista, a ideia de participar de eleições controladas pelos fascistas pode parecer estúpida, mas repense: em primeiro lugar, no caso totalmente improvável de uma eleição que seja pelo menos 50% decente, ele quase com certeza será eleito (a maioria dos ucranianos não apoia os fascistas).
Segundo, se a eleição for “manejada”, Dobkin, candidato, poderá questioná-la.
Terceiro, pelo simples fato de concorrer, ele pode forçar a imprensa controlada pelos fascistas (sobretudo a TV) a dar-lhe tempo de televisão no ar para responder à propaganda nacionalista fascista. Assim, tudo considerado, é movimento astuto.
3) Na Crimeia – nível político:
Mapa geofísico da Crimeia
Para a Crimeia, eu diria que é assunto resolvido: em maio, se tornará estado independente. Esse estado terá alternativas abertas para ele. Se, por algum milagre inesperado e basicamente impossível, Dobkin for eleito presidente, a Crimeia pode aceitar um statu quo ante [lat. “estado em que as coisas estavam antes”], mas com o claro entendimento de que aquele será arranjo federativo do qual a Crimeia poderá separar-se a qualquer momento. Se algum dos doidos nacionalistas for “eleito”, nesse caso a Crimeia romperá todos seus laços com a Ucrânia e se unirá à União Econômica com Rússia, Bielorrússia, Cazaquistão e Armênia, como estado independente.
4) Na Crimeia – nível de segurança:
A Rússia usará a força para defender a Crimeia se for necessário. A solução preferível é ajudar as autoridades locais a defenderem-se, elas mesmas, fornecendo fundos, armas (se necessárias), expertise (se necessária), inteligência (se necessária), etc.. Mas em praticamente todos os casos, nada disso será necessário, simplesmente porque tudo isso pode ser fornecido pela Frota do Mar Negro, com base ali mesmo. No máximo, os ucranianos nacionalistas podem mandar para lá as gangues de bandidos que já usaram em Kiev.
102º Destacamento independente Spetsnaz da Marinha da Rússia
Por outro lado, a Frota do Mar Negro pode mobilizar a 810ª Brigada Independente de Infantaria Naval, o 382º Batalhão Independente de Infantaria Naval e, até, o 102º Destacamento independente Spetsnaz da Marinha [emblema, na imagem], o que significa algo entre 1.300-1.400 soldados de elite, todos eles oficiais super treinados, com longa experiência de combates, apoiados por artilharia, força aérea, blindados, etc.. De fato, minha expectativa é que as autoridades locais e as forças policiais (inclusive os Berkut da polícia antitumulto local e as milícias populares de defesa) serão suficientes para conter qualquer “visitante” da insurgência que apareça por lá, sem precisar de qualquer ajuda da Frota do Mar Negro. Em resumo: a insurgência ucraniana jamais controlará a Crimeia.
5) Leste da Ucrânia:
É onde as coisas ficam muito mais nebulosas. Meu palpite é que o Kremlin está adotando uma atitude de “esperar para ver” em relação ao leste da Ucrânia, esperando pelo que aconteça num nível local. O princípio básico por trás da política do Kremlin é “só ajudamos os que se ajudem eles mesmos e façam por merecer nossa ajuda”. A Crimeia é exemplo perfeito dessa abordagem. Fato é que os nacionalistas têm forte presença em Carcóvia, Dniepropetrovsk ou Poltava. Assim sendo, o desenlace aí é muito mais difícil e delicado de antever.
6) Restante da Ucrânia:
Aqui, entendo que a política correta é autoevidente: primeiro, deixar que os doidos lutem entre eles até aplacarem o coração. Eles que comandem a já arruinada economia real; eles que descubram até onde conseguem sobreviver movidos só a hinos nacionalistas e gritos de “Бий жидів та москалів - Україна для українців” (Fora, judeus e russos, Ucrânia para os ucranianos). A União Europeia e os EUA que compareçam com os $35 bilhões para pagar por mais essa “revolução colorida” e evitar um calote; e, depois, eles que deem jeito de administrar esse novo regime “popular pró-ocidente”.
Então, quando o dinheiro deles acabar, é esperar que recorram ao Kremlin e peçam ajuda. Aí, basicamente, se tratará de “comprar a parte deles para tirá-los do negócio”, item a item, fábrica a fábrica, político a político, oligarca a oligarca, região por região.
Brigada neonazista do Pravy Sektor na Praça Maidan em 13/2/2014
A Rússia NADA deve a esses nazistas odiadores de russos. E nada lhes dará gratuitamente. Os nacionalistas ucranianos tentarão retaliar, sobretudo com ataques aos gasodutos russos que atravessam a Ucrânia, mas essa é estratégia inviável: ferirá, em primeiro lugar e mais fundo, a Europa; e, afinal, a Rússia construirá dois gasodutos que não passam pela Ucrânia. Eventualmente, a Ucrânia acabaria por romper com o ocidente.
Quanto à China, já está processando judicialmente o novo regime por quebra de contratos comerciais (ou, pelo menos, já há notícias disso, em algum dos noticiários que ouvi). A China seguirá a Rússia, neste caso.
7) Violência previsível no leste da Ucrânia:
A menos que ocorra um milagre, haverá muita violência nas províncias do leste da Ucrânia. No ponto em que estão as coisas hoje, não vejo qualquer intervenção militar russa para proteger a população falante de russo, que terá de defender-se, ela mesma. A Rússia garantirá:
(a) apoio político,
(b) financeiro e, possivelmente, quantidade limitada de
(c) apoio secreto.
Por hora, pelo menos, é isso. É possível que eu tenha de corrigir/refinar essa análise.
Bandeira do Partido Svoboda
neonazista
Quanto a EUA/OTAN, não acredito que intervirão militarmente. Haverá MUITA propaganda anti-Rússia, muita propaganda pró-nacionalistas fascistas, milhões de dólares norte-americanos continuarão a encher as burras dos líderes do golpe, mas, mais cedo ou mais tarde, os EUA e seus fantoches europeus terão de se conformar ante a evidência de que fracassaram: não expulsaram da Crimeia a Frota do Mar Negro; e a Crimeia se encaminhará na direção da Rússia: será o tiro pela culatra, da “revolução colorida” que EUA e União Europeia inventaram em Kiev.
Mas em nenhum caso EUA/EU reconhecerão qualquer tipo de autoridade pró-Rússia em nenhuma parte da Ucrânia. Por isso é possível que o país rache, como a Geórgia ou as duas Coreias. OK. Absolutamente não tirará o sono, nem da Crimeia, nem da Rússia – EUA/EU que tenham sua própria versão do Kosovo, só para variar :-)
O que lhes parece? O que escrevi faz sentido?
Muito obrigado e saudações.
The Saker
*GilsonSampaio

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