Páginas

Ser de esquerda é não aceitar as injustiças, sejam elas quais forem, como um fato natural. É não calar diante da violação dos Direitos Humanos, em qualquer país e em qualquer momento. É questionar determinadas leis – porque a Justiça, muitas vezes, não anda de mãos dadas com o Direito; e entre um e outro, o homem de esquerda escolhe a justiça.
É ser guiado por uma permanente capacidade de se estarrecer e, com ela e por causa dela, não se acomodar, não se vender, não se deixar manipular ou seduzir pelo poder. É escolher o caminho mais justo, mesmo que seja cansativo demais, arriscado demais, distante demais. O homem de esquerda acredita que a vida pode e deve ser melhor e é isso, no fundo, que o move. Porque o homem de esquerda sabe que não é culpa do destino ou da vontade divina que um bilhão de pessoas, segundo dados da ONU, passe fome no mundo.
É caminhar junto aos marginalizados; é repartir aquilo que se tem e até mesmo aquilo que falta, sem sacrifício e sem estardalhaço. À direita, cabe a tarefa de dar o que sobra, em forma de esmola e de assistencialismo, com barulho e holofotes. Ser de esquerda é reconhecer no outro sua própria humanidade, principalmente quando o outro for completamente diferente. Os homens e mulheres de esquerda sabem que o destino de uma pessoa não deveria ser determinado por causa da raça, do gênero ou da religião.
Ser de esquerda é não se deixar seduzir pelo consumismo; é entender, como ensinou Milton Santos, que a felicidade está ancorada nos bens infinitos. É mergulhar, com alegria e inteireza, na luta por um mundo melhor e neste mergulho não se deixar contaminar pela arrogância, pelo rancor ou pela vaidade. É manter a coerência entre a palavra e a ação. É alimentar as dúvidas, para não cair no poço escuro das respostas fáceis, das certezas cômodas e caducas. Porém, o homem de esquerda não faz da dúvida o álibi para a indiferença. Ele nunca é indiferente. Ser de esquerda é saber que este “mundo melhor e possível” não se fará de punhos cerrados nem com gritos de guerra, mas será construído no dia-a-dia, nas pequenas e grandes obras e que, muitas vezes, é preciso comprar batalhas longas e desgastantes. Ser de esquerda é, na batalha, não usar os métodos do inimigo.
Fernando Evangelista

sábado, outubro 11, 2014

Antipetismo e ódio de classe

A partir das figuras do escravo e do dependente, formou-se entre nós uma massa a quem se nega o estatuto de “gente”


Bastou o resultado do primeiro turno das eleições ser divulgado e, mais uma vez, os insultos aos “nordestinos miseráveis analfabetos” eleitores de Dilma Rousseff pipocaram nas redes sociais. Enquanto isso, na grande imprensa, FHC reproduzia o preconceito em sua versão mais douta e sutil, associando o voto ao PT aos “menos informados” que, por “coincidência”, são os mais pobres.
Na raiz do problema, uma velha tradição brasileira: a ausência de um arcabouço moral universalizado capaz de impor como dever o respeito a todos os seres humanos, em sua dignidade fundamental. Os “nordestinos miseráveis analfabetos” são a versão mais recente do que Jessé Souza chamou de “ralé brasileira”. Ele mostra como, a partir das figuras do escravo e do dependente, formou-se entre nós uma massa a quem se nega o estatuto de “gente”.
No caso em questão, a dignidade desses tipos sociais é duplamente negada. Primeiro, contesta-se o seu direito à manifestação mais superficial de cidadania que é o voto. Eleitores tão desinformados não deveriam votar, está implícito. Mas esta primeira recusa está fundamentada em outra, muito mais profunda, que é a do direito ao reconhecimento social já mencionado.
Ao fim e ao cabo, o que está em jogo é a grita contra a quebra do monopólio de recursos vitais para a reprodução das elites e para a manutenção do tipo obsceno de desigualdade que existe entre nós. Afinal, os governos petistas empreenderam uma política de valorização do salário mínimo e de distribuição de renda, o que fez cair a desigualdade econômica de modo contínuo, embora em ritmo mais lento nos últimos anos. A PEC das domésticas veio colocar mais lenha na fogueira porque, ao regular este tipo de trabalho, atacou o mais claro resquício da escravidão no país, uma relação que não tinha sequer uma jornada estabelecida.
Mas foi sobretudo a democratização do acesso à universidade que feriu os brios das elites nacionais, porque afetou diretamente um dos mecanismos mais importantes para a sua reprodução: o acesso exclusivo ao ensino superior. As novas universidades, a política de cotas, a expansão das vagas convergiram para fazer muitas famílias verem um de seus membros chegar pela primeira vez a este nível de escolaridade.
Para piorar a situação dos preconceituosos, já partir de 2006 as políticas inclusivas do Governo provocaram uma mudança da base eleitoral do PT, das classes médias mais escolarizadas para as classes populares, como mostrou André Singer. Eles acertam quando identificam a composição social do voto petista. Mas seu preconceito não os deixa ver que os pobres tem boas razões para isso, mesmo que o Governo tenha deixado intocados tantos outros monopólios, como o da própria mídia que agora o ataca, e que tenha se paralisado no último mandato em áreas tão importantes como a política cultural.
A corrupção é a cortina de fumaça para muitos – mas não para todos – dos que repudiam o PT neste momento. A trajetória do partido faz os escândalos que o envolvem soarem mais fétidos do que os demais, porque ele começou a conquista do poder pelo legislativo, chamando para si a função de fiscal do executivo, desde a redemocratização. Agora, a pecha de “paladino da ética” é usada contra ele. Mas, todos sabemos (mesmo que a grande mídia e os eleitores do PSDB façam questão de esquecer) que a relação viciada entre o legislativo e o executivo é constitutiva da política brasileira.
Tendo campanhas absurdamente caras, o Brasil vê chegar ao poder partidos comprometidos com grandes empresas e congressistas que votam por interesse, e não por convicção. Entretanto, por que os tantos indignados com a corrupção não defendem a reforma política que podia mudar esse estado de coisas? Porque a moralização do debate é uma forma de evitar sua politização. Politização que, aliás, avançou muito pouco durante o governo petista, o que agora pode lhe custar o Planalto. Os jovens pobres parecem ver suas conquistas como meramente pessoais, cedendo diante da ideia de meritocracia e esquecendo os fatores estruturais e a ausência de políticas públicas que explicam porque as gerações anteriores não tiveram as mesmas oportunidades. Por isso, a onda conservadora pode crescer ainda mais.
Maria Eduarda Mota Rocha é pesquisadora e professora da Universidade Federal de Pernambuco
*BrasilElPais.com
*StellaTobar

Nenhum comentário:

Postar um comentário