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Ser de esquerda é não aceitar as injustiças, sejam elas quais forem, como um fato natural. É não calar diante da violação dos Direitos Humanos, em qualquer país e em qualquer momento. É questionar determinadas leis – porque a Justiça, muitas vezes, não anda de mãos dadas com o Direito; e entre um e outro, o homem de esquerda escolhe a justiça.
É ser guiado por uma permanente capacidade de se estarrecer e, com ela e por causa dela, não se acomodar, não se vender, não se deixar manipular ou seduzir pelo poder. É escolher o caminho mais justo, mesmo que seja cansativo demais, arriscado demais, distante demais. O homem de esquerda acredita que a vida pode e deve ser melhor e é isso, no fundo, que o move. Porque o homem de esquerda sabe que não é culpa do destino ou da vontade divina que um bilhão de pessoas, segundo dados da ONU, passe fome no mundo.
É caminhar junto aos marginalizados; é repartir aquilo que se tem e até mesmo aquilo que falta, sem sacrifício e sem estardalhaço. À direita, cabe a tarefa de dar o que sobra, em forma de esmola e de assistencialismo, com barulho e holofotes. Ser de esquerda é reconhecer no outro sua própria humanidade, principalmente quando o outro for completamente diferente. Os homens e mulheres de esquerda sabem que o destino de uma pessoa não deveria ser determinado por causa da raça, do gênero ou da religião.
Ser de esquerda é não se deixar seduzir pelo consumismo; é entender, como ensinou Milton Santos, que a felicidade está ancorada nos bens infinitos. É mergulhar, com alegria e inteireza, na luta por um mundo melhor e neste mergulho não se deixar contaminar pela arrogância, pelo rancor ou pela vaidade. É manter a coerência entre a palavra e a ação. É alimentar as dúvidas, para não cair no poço escuro das respostas fáceis, das certezas cômodas e caducas. Porém, o homem de esquerda não faz da dúvida o álibi para a indiferença. Ele nunca é indiferente. Ser de esquerda é saber que este “mundo melhor e possível” não se fará de punhos cerrados nem com gritos de guerra, mas será construído no dia-a-dia, nas pequenas e grandes obras e que, muitas vezes, é preciso comprar batalhas longas e desgastantes. Ser de esquerda é, na batalha, não usar os métodos do inimigo.
Fernando Evangelista

segunda-feira, junho 29, 2015

Grécia, não pisque!

Sanguessugado do redecastorphoto


 Alex Andreou, By Line
Traduzido pelo pessoal da Vila Vudu
O Jogo da Franga [1], que vem sendo jogado pelos últimos cinco anos na Grécia, está chegando ao clímax. Alexis Tsipras jogou extremamente bem com cartas péssimas, apesar do que dizem e escrevem os teóricos do apocalipse-já.
Alexis Tsipras em 25/1/2015
O Primeiro-Ministro grego, Alexis Tsipras, pareceu surpreender o mundo ontem, quando anunciou que oferecerá um referendum ao povo grego sobre o acordo sobre a dívida do país que a UE/FMI apresentaram. Que o povo grego decidirá o que quer. Deixou claro que a proposta das instituições não o agrada, que é proposta “inaceitável” e “humilhante” que deve ser rejeitada.
Partidos da oposição grega rapidamente condenaram o movimento do governo. São as mesmas pessoas que há semanas criticam Tsipras por aceitar excessivas demandas das instituições credoras e por estar andando na direção de um acordo que, para aqueles partidos, é terrível.
Mas comentaristas internacionais observaram que as discussões no Eurogrupo, de fato, estão continuando hoje, e que a “equipe grega” repentinamente viu-se com meios para tirar um grande ás da manga, que ninguém imaginou que ainda existisse.
Onde está a verdade?
Como sempre, está no meio, entre essas duas posições. No início do ano, escrevi que a União Europeia e especialmente o FMI estavam em processo de superdistensão. Para que a doutrina do choque funcione, é preciso que haja uma maioria com algo a perder. Pode-se alcançar um ponto de inflexão e, me parece, pode estar na Grécia, onde a grande maioria das pessoas zomba de ameaças como “controles de capitais” e poupanças confiscadas. É simples de entender, porque já ninguém na Grécia tem nem capitais nem poupanças. Quando isso acontece, a reação de uma nação contra a humilhação pode ser imprevisível.
É verdade que o referendo deixa o povo grego ante a escolha entre dois tipos de miséria extrema. Será miséria imposta de fora para dentro, ou miséria de tipo em que o miserável guarda ainda, pelo menos, a autodeterminação?
Mas é imensamente injusto sugerir que essa seria posição à qual só o Syriza nos arrastou. Essa é a posição à qual nos arrastaram 40 anos de corrupção e governos incompetentes e cinco anos de hegemonia economicamente analfabeta do FMI.
Ante a visão de um abismo todos os dias mais e mais profundo de arrocho [não é “austeridade”; é ARROCHO], de morte pelos mil cortes, Tsipras optou por agir como catalisador, e empurrar as coisas para uma decisão rápida.
Não há para mim dúvida alguma de que, daqui a 20 anos, a Grécia ainda existirá e, muito provavelmente, estará tranquila e próspera. Não digo isso por causa de glórias passadas, nem dos argumentos tipo “berço da democracia”. Abomino nacionalismos romantizados. Tudo aquilo é passado dos gregos. Prefiro olhar para nosso presente. E vejo a solidariedade dos movimentos de base, que surgiram e cresceram para garantir atendimento à saúde de gente que já não pode pagar por serviços médicos; ou abrigo para os milhares de refugiados sírios que chegam todos os dias à Grécia por nossas fronteiras. Vejo as fábricas e restaurantes criados como cooperativas, que nasceram para oferecer empregos a quem muito precisava deles. Vejo como as famílias cerraram fileiras e como o tecido da sociedade grega mantém-se relativamente firme e coeso, depois de cinco anos de massacre. Essas realizações são a razão de eu ter esperanças sobre o futuro – não a história antiga.
A verdadeira questão é: a União Europeia sobreviverá? Depende de como lidem com a situação nos próximos poucos dias. Os gregos não estão sós entre povos cada dia mais desconfortáveis com a microgestão de corpos supranacionais não eleitos. É hora de a União Europeia redefinir-se ou como organização que ativamente busque um equilíbrio entre integração e soberania ou como quem quer chegar à federalização custe o que custar, mesmo sob risco de se autodestruir.
Tem havido muita conversa sobre o governo grego ter abdicado da própria responsabilidade. Minha visão é outra. A missão que foi entregue a Tsipras em janeiro sempre foi extremamente difícil, desde o início: o povo grego queria:
(a) o fim do arrocho [não é austeridade; é ARROCHO]; e
(b) continuar conectado à órbita do euro.
Sempre houve um risco, dependendo de o quanto fosse rígida a posição de nossos credores, que esses dois objetivos fossem completamente incompatíveis. Tsipras é líder absolutamente coerente e honesto, quando diz:
O que se vê é que, por mais que nos esforcemos, não conseguimos fazer as duas coisas (a) e (b) acima. Por isso, voltamos às bases para novas consultas.
É extraordinário o quanto nos tornamos todos adversários da democracia. A ponto de já ninguém ver quando um líder honesto e densamente democrático resiste contra vender o país em troca de continuar no poder. Parem. Respirem. Deixem que seus olhos se ajustem à luz inesperada. Tsipras é o que todos os líderes democráticos deveriam realmente ser. Mas nos habituamos de tal modo a ver as coisas pelo prisma vicioso da esperteza, da manobra política contra a democracia e a favor dos interesses de um ou outro governante, que a própria democracia já foi contaminada e aparece deformada.
Não sei que resposta o povo dará ao referendum, se se concretizar. Mas não entendo a histeria de que a oposição foi tomada, ante a simples possibilidade de haver um referendo. Mas, se você está histérico ante a ideia do referendo, ora bolas, vote “Sim” e convença outros a votar “Sim”. Esse é o poder que Tsipras devolveu também à oposição.
O que eu sei é que a questão de se exigimos para nós nossa autodeterminação como nação, ou se estamos felicíssimos como estamos é questão que diz respeito a nós.
Estamos satisfeitos com o que temos hoje, governados, de fato, por gente que jamais foi eleita, que nada conhece nem nada tem a ver com a Grécia, mas se sente com direito de determinar o valor do Imposto sobre Valor Agregado do nosso leite e do nosso pão?
É hora de responder SIM ou NÃO.
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Nota dos tradutores
Orig. chicken game, lit. “jogo da galinha”, tradução literal da expressão em inglês, que não faz sentido em português. Em port. do Brasil, a melhor tradução nos parece ser “Jogo da Franga”, que aqui adotamos.
[*] Alex Andreou abandonou uma promissora carreira - para desgosto de sua mãe - na lei e na investigação de mercado, para trabalhar como ator na London’s Poor School com a tenra idade de 38 anos. Desde então atuou, principalmente, com pessoas muito desagradáveis no palco, incluindo National Theatre, Southbank, Royal Manchester Exchange, Theatre Royal Strateford East e festivais britânicos e internacionais. Já apareceu em vários filmes e teve sua estréia na Direção com Mamet's Boston Marriage at the Pacific Playhouse. Tem ensinado Shakespeare e Direção na London’s Poor School.
Com o seu “chapéu de escritor”, contribui com The Guardian, New Statesman, e muitas outras publicações britânicas e gregas. Também escreve para a BBC Radio 4. Seu primeiro livro será publicado ainda em 2015. Alex tem estudado os “sem-teto” tornando-se militante com conhecimento profundo da pobreza, comentarista político e defensor dos direitos dos migrantes. É palestrante em várias instituições britânicas e gregas.
*GilsonSampaio

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