1º de abril: militares que resistiram ao golpe de 1964 relembram perseguição
Ferro
Costa vê com ceticismo o presente: "Às vezes, eu vou a uma reunião de
turma e parece que estou em uma reunião dos republicanos do Tea Party"
(Foto: Daniella Cambaúva. RBA)
Esquecidas durante décadas, as histórias
de militares vítimas da ditadura (1964-1985) finalmente começam a
aflorar. Seja pelas mãos da Comissão Nacional da Verdade, seja pela
mobilização dos integrantes das Forças Armadas cassados pelo regime, um
dos lados esquecidos dos anos de chumbo ganha rosto e forma.
Ao longo do governo autoritário,
oficialmente, estima-se que tenham morrido 357 pessoas, mas familiares
de vítimas afirmam que esse número chega a 426, e que pode aumentar em
decorrência das investigações da Comissão da Verdade (CNV), instituída
em maio de 2012.
Nesse balanço, falta contabilizar
opositores presos, torturados e aqueles que foram obrigados a se exilar.
Essa história, porém, não estará completa se não registrar membros das
Forças Armadas que resistiram ao golpe e se recusaram a obedecer ordens
de seus superiores. Considerados subversivos, foram demitidos e, em
alguns casos, perseguidos.
Com a finalidade de apurar denúncias, a
Comissão da Verdade criou o Grupo de Trabalho Perseguição a Militares. A
equipe foi criada em outubro de 2012, após a tomada de depoimento do
brigadeiro da Aeronáutica Rui Moreira Lima, preso três vezes durante o
regime. O grupo, liderado pelo pesquisador Cláudio Fonteles, prepara um
trabalho grande sobre o tema, que será apresentado em abril.
Enquanto isso não ocorre, sobram
histórias de militares que, assumindo uma postura totalmente contrária à
dos golpistas de 1964, não se sujeitaram ao descumprimento da
legalidade, às torturas e às mortes. No ano passado, aRBA recordou,
no aniversário da derrubada do presidente constitucional João Goulart, a
herança viva do regime, em uma série de reportagens que seguem atuais
(sugere-se a leitura no box abaixo). Agora, aproveita a ocasião para dar
voz àqueles que, depois de 49 anos, relembram o preço que tiveram de
pagar por não aderir ao golpe. Nos próximos dias, serão cinco histórias.
A começar pela de Paulo Henrique Ferro Costa, o homem “de sorte” que
viu a “face da morte” e escapou.
Um homem de sorte
“Eu posso dizer que eu vi a face da
morte. Aquela sala escura... Naquelas paredes, estava impregnado o grito
de sangue de todos os torturados. E eu vi a face da morte ali. Eu me
preparei para morrer. É horrível você morrer quando a natureza não
programou aquele dia pra você”. Assim prossegue o relato de Paulo
Henrique Ferro Costa, um dos membros da Marinha brasileira que resistiu
ao golpe. Hoje aposentado, recebe a reportagem da RBA em sua casa em
Niterói, rodeado por documentos. Solícito, tem a fala tranquila, com uma
voz quase inaudível, sorrindo timidamente enquanto fala.
Conta, com riqueza de detalhes, diversos
momentos de sua vida até que, por um instante, seus olhos azuis se
desviam. Ele olha para frente, e a parede de sua sala parece levá-lo
para as dependências do quartel da Polícia do Exército, na rua Barão de
Mesquita, zona norte do Rio de Janeiro. Ali ele esteve durante sua
última prisão, no mês de maio de 1970 – a mais dura, conta.
“Vivia com uma menina que se envolveu na
luta armada. Eu não aprovava. Eles iam prendê-la. Em um golpe de sorte,
ela conseguiu escapar. E eles me prenderam na suposição de que eu
soubesse onde ela estava. Eles me torturaram barbaramente”, conta. “Ela
conseguiu escapar. Felizmente”, conclui, aliviado.
Natural de Belém do Pará, Ferro Costa
havia terminado a Escola Naval em 1961 e era segundo-tenente em 1964.
Não concordava com o golpe, nem com a ditadura. Afirma ter entrado na
Marinha por convicção “de luta contra o fascismo”, com intuito de ajudar
o Brasil e também de ter uma boa profissão. “Eu não entrei para dar
golpe”, diz.
Ferro Costa estava fazendo uma viagem de
férias entre 31 de março e 1° de abril. A Marinha convocou a ele e
outros que não haviam se apresentado imediatamente após o golpe. Ele
conta que exercia papel de liderança junto aos marinheiros à época e
tinha esperanças de uma possível resistência tanto por parte do
presidente João Goulart, quanto de dentro das próprias Forças Armadas.
“Dentro da Marinha, tivemos controle total. A esquadra toda estava nas
nossas mãos, dos legalistas. Mesmo a cúpula militar sendo golpista, os
navios não podiam sair porque os marinheiros não deixavam. Os oficiais
que estavam no gabinete davam as ordens e a gente tinha o controle
total, absoluto. O que aconteceu foi que o Jango não quis o
enfrentamento. Ficou com receio de que essas coisas tivessem
desdobramento”, afirma.
Em 12 de abril de 1964, foi levado ao
Princesa Leopoldina, um transatlântico que manteve presos oficiais da
Marinha, da Aeronáutica e do Exército. “Antes fui à casa de alguns
colegas. Disse 'você sabe que estou me apresentando, se acontecer alguma
coisa comigo, você sabe onde foi, quem foi'”. Era a primeira vez que
ele entrava em um transatlântico. “As condições do navio eram
suportáveis. A tortura eu não tive nos primeiros anos. Eu tive
conhecimento dela em toda sua extensão no quartel da Barão de Mesquita.”
O próximo ato foi sua demissão da
Marinha, em 19 de agosto. “Fui considerado morto, então, não tinha
certidão de serviço militar. O decreto, inclusive, me considera morto”,
diz, mostrando uma cópia do decreto expedido pelo Ministério da
Marinha.
Foi preso novamente em 1965 e então
condenado a cumprir 730 dias de prisão. Como já tinha ficado 257 dias na
cadeia – 14 a mais do que o equivalente a um terço de sua pena –, foi
solto. “Foi montado um inquérito contra mim, mas eles não tinham provas.
Colocaram lá um rapaz que não era da Marinha, que não tinha o curso da
Escola Naval. E ele faz um depoimento contra mim, dizia que eu o havia
convidado para participar de um plano de comunicação da Marinha, cujo
primeiro item era a sublevação dos marinheiros e o segundo item era a
chacina dos oficiais. Gravíssimo. Mas eu não o conhecia, ele montou essa
história”, lembra, segurando nas mãos a cópia de quatro folhas de papel
pautado, com um depoimento escrito à mão, sem assinatura.
Ficou em liberdade até 1970, quando foi
levado para o quartel da Barão de Mesquita, um dos maiores centros de
detenção clandestina da ditadura. Foi lá onde morreu o deputado Rubens
Paiva, segundo concluiu recentemente a Comissão da Verdade. Ferro Costa
atribui sua sobrevivência à sorte. “Quando eu estava preso, depois de
ser torturado, chamaram um oficial da comunidade de informação da
Marinha. Por sorte, esse oficial tinha sido meu comandante no Colégio
Naval. Ele me viu, me olhou... E eu disse: 'Olha, o curso que eu tenho é
o mesmo que você tem, e eu não estudei no Colégio Naval para passar por
isso'. E ele disse: 'Vou te tirar daqui'. E tirou”.
Sua saída foi dramática. Ficou por mais
de duas horas algemado no porta-malas de um furgão, rodando pela cidade,
tentando respirar através de uma passagem de ar muito pequena. “Fiquei
me desidratando. Quase desmaio ali.” Depois, ficou em uma prisão no
Ministério da Marinha, em uma cela de 4 palmos por 11. “Não tinha água.
Sabe esses sanitários que você tem aquele deposito de água para dar
descarga? É dali que você tirava água para beber.”
Depois de uma semana, foi para a Base
Naval da Ilha das Flores até que, mais uma vez, a sorte o favoreceu.
“Minha família estava me procurando naquela angústia, porque as pessoas
sumiam e ninguém sabia”. Foi quando seu pai telefonou ao Dops e, por
coincidência, conversou com um general com quem havia servido o Exército
e que era encarregado de seu inquérito. “E ele diz pro meu pai: 'Seu
filho vai sair amanhã'. Sou um homem de sorte. Estou vivo mais por sorte
do que por outra coisa.”
Questionado sobre sequelas físicas, ele
responde que não as teve, mas conta que jamais conseguiu esquecer aquele
período. “Dizem que a memória deleta a dor, mas a memória não deleta a
dor da tortura. Ela permanece com a pessoa até a morte. É muito difícil
você esquecer o que você passou lá.”
Ferro Costa já foi chamado de comunista
inúmeras vezes. Nega ter tido qualquer ligação com grupos de resistência
à ditadura. “Eu tinha leituras”, resume. Entre seus autores, estavam
Darcy Ribeiro, Celso Furtado. Se lia Marx? “Todo mundo lia. Era uma
efervescência incrível”, responde. “Mas o que me influenciava mais era
[Franz] Kafka, [Jean-Paulo] Sartre.”
Não tão otimista em relação à Comissão
da Verdade, acredita na necessidade apurar casos de prisões arbitrárias e
torturas, mas principalmente de se aprofundar no contexto histórico do
Brasil na década de 1960. “A Comissão da Verdade vai apurar casos
emblemáticos, como o do Rubens Paiva, do Herzog. Mas e o enredo do
golpe? É fundamental, que não havia possibilidade de se implantar no
Brasil um regime comunista, que muita gente honesta foi perseguida.”
Essa avaliação que se faz, para Ferro
Costa, se deve em parte ao modo como ocorreu o fim do regime. Segundo
ele, o ato se resumiu a um acordo. A anistia, em sua opinião, veio
tarde.
Depois de sair de sua última prisão em
1970, exilou-se em Paris. Voltou no final dos anos 1970, quando já se
discutia a anistia – nome que ele critica, preferindo usar “reparação”.
Fez três concursos e foi aprovado. Sua primeira opção era a Eletronorte.
Seu passado fichado, no entanto, impediu que ele assumisse o cargo.
Acabou indo para a Fundação Educacional, em Brasília.
“O que é mais grave é que a minha
geração cristalizou essa verdade, de que os comunistas eram os
verdadeiros inimigos do Brasil, e não a miséria e o atraso. Às vezes, eu
vou em reunião de turma e parece que estou em uma reunião dos
republicanos do Tea Party!”, conclui.
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Cappacete
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