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Ser de esquerda é não aceitar as injustiças, sejam elas quais forem, como um fato natural. É não calar diante da violação dos Direitos Humanos, em qualquer país e em qualquer momento. É questionar determinadas leis – porque a Justiça, muitas vezes, não anda de mãos dadas com o Direito; e entre um e outro, o homem de esquerda escolhe a justiça.
É ser guiado por uma permanente capacidade de se estarrecer e, com ela e por causa dela, não se acomodar, não se vender, não se deixar manipular ou seduzir pelo poder. É escolher o caminho mais justo, mesmo que seja cansativo demais, arriscado demais, distante demais. O homem de esquerda acredita que a vida pode e deve ser melhor e é isso, no fundo, que o move. Porque o homem de esquerda sabe que não é culpa do destino ou da vontade divina que um bilhão de pessoas, segundo dados da ONU, passe fome no mundo.
É caminhar junto aos marginalizados; é repartir aquilo que se tem e até mesmo aquilo que falta, sem sacrifício e sem estardalhaço. À direita, cabe a tarefa de dar o que sobra, em forma de esmola e de assistencialismo, com barulho e holofotes. Ser de esquerda é reconhecer no outro sua própria humanidade, principalmente quando o outro for completamente diferente. Os homens e mulheres de esquerda sabem que o destino de uma pessoa não deveria ser determinado por causa da raça, do gênero ou da religião.
Ser de esquerda é não se deixar seduzir pelo consumismo; é entender, como ensinou Milton Santos, que a felicidade está ancorada nos bens infinitos. É mergulhar, com alegria e inteireza, na luta por um mundo melhor e neste mergulho não se deixar contaminar pela arrogância, pelo rancor ou pela vaidade. É manter a coerência entre a palavra e a ação. É alimentar as dúvidas, para não cair no poço escuro das respostas fáceis, das certezas cômodas e caducas. Porém, o homem de esquerda não faz da dúvida o álibi para a indiferença. Ele nunca é indiferente. Ser de esquerda é saber que este “mundo melhor e possível” não se fará de punhos cerrados nem com gritos de guerra, mas será construído no dia-a-dia, nas pequenas e grandes obras e que, muitas vezes, é preciso comprar batalhas longas e desgastantes. Ser de esquerda é, na batalha, não usar os métodos do inimigo.
Fernando Evangelista

quarta-feira, março 27, 2013

As entranhas do declínio americano



Por Joseph Stiglitz

Vamos começar por estabelecer uma premissa básica: a desigualdade nos Estados Unidos aumenta há décadas. Todos estamos conscientes deste fato. Certas vozes na direita negam a realidade, mas analistas sérios, em todo o espectro político, reconhecem o fenômeno. Não vou elencar todas as evidências neste texto: basta lembrar que a diferença entre o 1% e os 99% é muito vasta quando a analisamos em termos de rendimento anual; e ainda maior quando observamos a riqueza — ou seja, o capital acumulado e outros bens. Considere a família Walton: os seis herdeiros do império do Walmart possuem uma riqueza combinada de cerca de 90 biliões de dólares, o que é equivalente à riqueza somada dos 30% mais pobres, entre os norte-americanos (muitos deles possuem patrimônio líquido zero ou negativo, especialmente depois do colapso imobiliário). Warren Buffet situou o tema de forma correta quando disse: “Houve uma guerra de classes nos últimos 20 anos, e a minha classe ganhou”.

Portanto, o debate real não é sobre o fenômeno da desigualdade, mas sobre o seu significado. À direita, ouve-se algumas vezes o argumento de que a desigualdade é basicamente uma coisa boa: se os ganhos dos ricos crescem, afirma-se, toda sociedade segue no seu vácuo. Este argumento é falso: enquanto os ricos têm ficado mais ricos, muitos norte-americanos (e não apenas os mais empobrecidos) não conseguem manter o seu padrão de vida, muito menos avançar. Um trabalhador em tempo integral típico ganha hoje o mesmo salário que recebia há três décadas atrás.

Entre a esquerda, por outro lado, o crescimento da desigualdade frequentemente provoca um apelo por justiça: por que tão poucos podem ter tanto, enquanto tantos têm tão pouco? Não é difícil entender por que, numa era dirigida pelo mercado, na qual a própria justiça é em si uma mercadoria que pode ser vendida e comprada. Mas alguns rejeitariam o argumento, rotulando-o como coisa de sentimentais piedosos.

Mesmo colocando o sentimento à parte, existem boas razões para que os próprios plutocratas se importem com a desigualdade — até mesmo por egoísmo. Os ricos não existem num vácuo. Necessitam de uma sociedade que funcione em torno deles, para sustentar a sua posição. A evidência histórica e do mundo moderno é inequívoca: vamos chegar a um ponto em que a desigualdade desencadeará disfunções econômicas que se espalham por toda a sociedade. Quando isso acontecer, até os ricos pagarão um grande preço.

Vamos examinar algumas razões.

O problema do consumo

Quando um grupo social concentra muito poder, torna-se capaz de assegurar políticas que o beneficiam a si próprio, a curto prazo — ao invés de contribuir, a longo prazo, para a sociedade como um todo. Foi o que ocorreu nos EUA, no que diz respeito às políticas tributárias, regulatórias e de investimento público. As consequências (aumento dos rendimentos e da riqueza em favor de um único setor da sociedade) tornam-se visíveis quando se observam os gastos das famílias, um dos motores da economia norte-americana.

Não por acaso, os períodos em que setores mais amplos da sociedade norte-americana registaram aumento dos rendimentos líquidos — ou seja, quando a desigualdade foi reduzida, em parte graças a impostos progressivos — foram aqueles em que a economia cresceu mais rápido. Também não é por acaso que a atual recessão, assim como a Grande Depressão, foi precedida por grandes aumentos na desigualdade. Quando muito dinheiro é concentrado no topo da sociedade, os gastos do norte-americano médio tornam-se necessariamente menores — a menos que haja algum estímulo de outra natureza. A concentração do dinheiro reduz o consumo porque indivíduos de renda mais alta consomem uma fração muito menor dos seus rendimentos, se comparados às pessoas de rendimentos mais baixos.

Aparentemente, não é assim. Os gastos dos ricos são extraordinários, como se constata admirando, nas páginas do Wall Street Journal de fim-de-semana, as fotografias coloridas dos anúncios imobiliários. Mas a realidade torna-se visível quando faz a conta. Considere alguém como o candidato do Partido Republicano à Presidência, Mitt Romney, cujos rendimentos chegaram, em 2010, a 21,7 milhões de dólares. Mesmo se Romney optar por um estilo de vida muito mais perdulário, gastará apenas uma fração desse montante, num ano típico, para se manter a si mesmo e à sua esposa, nas suas diversas casas. Mas tome a mesma soma de dinheiro e divida por aproximadamente 500 pessoas — na forma, digamos, de empregos que paguem 43.400 dólares por ano — e você descobrirá que quase todo o dinheiro é gasto.

A relação é direta e obrigatória: quanto mais o dinheiro fica concentrado nas classes mais favorecidas, mais a procura agregada declina. A não ser que “algo a mais” aconteça, na forma de intervenção, a procura total será menor do que a economia é capaz de oferecer. Significa que haverá um aumento no desemprego, o que vai enfraquecer a procura ainda mais. Nos anos 1990, a bolha da tecnologia foi este “algo a mais”. Na primeira década do século 21, foi a vez da bolha imobiliária. Hoje, o único recurso, no meio de uma profunda recessão, são os gastos do governo — exatamente o que o pessoal no topo da pirâmide está a tentar refrear.

O problema da caça de rendas

Aqui, preciso recorrer um pouco ao jargão econômico. A palavra renda foi originalmente usada, e ainda é, para descrever o que alguma pessoa recebe pelo uso da terra: é o retorno obtido simplesmente em virtude de propriedade, e não pelo fato de fazer ou produzir algo. Renda contrasta com salário, por exemplo, que conota uma compensação pelo trabalho fornecido pelos assalariados. O termo renda foi, depois, estendido para abranger os lucros de monopólio — a renda que alguém recebe simplesmente por controlar um monopólio. E por fim, o significado da palavra expandiu-se ainda mais, para incluir a remuneração de outros tipos de reivindicações de propriedade. Se o Estado concede a uma empresa o direito exclusivo de importar uma certa quantia de um certo bem (como o açúcar), então os ganhos oriundos deste monopólio são chamados de “renda da quota”.

A concessão de direitos de mineração ou extração de petróleo produz uma forma de renda. O mesmo ocorre com o tratamento tributário preferencial, para certos lucros. Num sentido mais amplo, a caça de rendas [rent seeking] define muitas das maneiras por meio das quais o nosso processo político favorece os ricos às custas de todos os demais. Inclui transferências e subsídios do governo, leis que tornam os mercados menos competitivos, leis que permitem aos executivos abocanhar uma fração desproporcional dos lucros das empresas e que permitem às corporações ampliar os seus lucros destruindo a natureza.

Embora difícil de quantificar, a magnitude da “caça às rendas”, na economia norte-americana, é imensa. Indivíduos e empresas que se aprimoram nesta atividade são fartamente recompensadas. O setor financeiro — que hoje funciona em grande medida como um mercado de especulação, ao invés de uma ferramenta para promover produtividade econômica autêntica — é caçador de rendas por excelência. A prática não se limita à especulação. Este setor extrai rendas também do seu controlo sobre os meios de pagamento — por exemplo, cobrando tarifas exorbitantes nas operações bancárias e cartões de crédito, ou imponto, aos vendedores, tarifas menos conhecidas, que são repassadas aos consumidores.

O dinheiro que o setor financeiro extrai dos norte-americanos pobres ou de classe média, por meio de práticas predatórias de crédito, pode ser visto como uma forma de renda de monopólio. Nos últimos anos, este setor apropriou-se de cerca de 40% de todo o lucro empresarial nos EUA, algo totalmente distante da sua contribuição social. A crise mostrou, ao contrário, como ele pode espalhar devastação pela economia. Numa sociedade de caça às rendas, como aquela em que os Estados Unidos se converteram, retorno financeiro e retribuição à sociedade estão perigosamente fora de sintonia.

Na sua forma mais simples, as rendas não são mais que transferências de riqueza, de uma parte da sociedade para os caçadores de renda. Muito da desigualdade na nossa economia resulta da caça de rendas, porque este processo extrai recursos da parte de baixo da pirâmide e concentra-os no topo.

Mas há uma consequência econômica mais ampla: a luta pela apropriação de rendas é, na melhor das hipóteses, uma atividade de soma-zero. A caça de rendas não produz o crescimento de nada. Os esforços que ela envolve são direcionados a abocanhar uma parte cada vez maior do bolo, ao invés de fazê-lo crescer. Mas é ainda pior: a busca de rendas distorce a alocação de recursos e torna a economia mais frágil. É uma força centrípeta: o retorno da caça de rendas torna-se tão desproporcional que cada vez mais energia é dirigida a esta atividade, às custas de tudo o mais.

Países ricos em recursos naturais são tristemente famosos pela atividade de caça às rendas. É muito mais fácil tornar-se rico nestes lugares obtendo acesso aos recursos, em condições favoráveis, do que a produzir bens ou serviços que beneficiam a população e elevam a produtividade. É por isso que estas economias foram tão mal sucedidas, a despeito da sua aparente riqueza. É fácil desdenhar e dizer: “Não somos a Nigéria, não somos o Congo”. Mas a dinâmica de caça às rendas é a mesma.

Publicado no Esquerda.Net

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