O problema não é o Marco Feliciano e sim uma cultura que tenta fazer da Bíblia a fonte das verdades éticas e políticas de uma sociedade
por Paulo Jonas de Lima Piva
O pastor Marco Feliciano é apenas um sintoma, apenas a ponta de um
iceberg ameaçador para o futuro do Estado democrático de direito no
Brasil. Do ponto de vista da democracia, dos direitos humanos, da
laicidade do Estado brasileiro, Marco Feliciano é de fato um problema,
um alerta, um lamentável retrocesso em potência e em andamento.
Entretanto, o problema que o gerou e, ao que tudo indica, o problema
que gerará pela frente muitos Marcos Feliciano, é ainda maior, e se
protege atrás de um maciço tabu da nossa cultura hegemonicamente cristã:
o de não se discutir no Brasil, de evitar a todo custo, uma reflexão
mais pública e ampla sobre as bases da fé religiosa no país, mais
exatamente, um debate sobre a veracidade dos livros que lhe servem de
fundamento e justificação. Cientistas, pensadores e estudiosos para isso
não faltam. Trata-se do tabu de que "religião não se discute", de que
tolerância significa calar-se diante de absurdos e truculências
cometidas em nome de uma fé. Mas pelo andar da carruagem, com a explosão
de fé que contagiou o país nos últimos anos e com o aumento
significativo da presença dos religiosos no cenário político nacional,
lotando parlamentos e acumulando grandes meios de comunicação de massa, o
futuro da laicidade do Estado brasileiro e da ampliação dos direitos
humanos no Brasil exige com urgência tal discussão pública e ampla.
A Bíblia
Inspirando o fanatismo, a intolerância e o obscurantismo dos discursos e
das práticas desse deputado eleito com mais de 200 mil votos e
alimentando ideologicamente o seu projeto político de transformar o país
numa "Jesuscracia" está um livro, a Bíblia. Para Marco Feliciano e para
os milhares de cristãos que ele representa no Congresso Nacional, a
Bíblia é um escrito sagrado, isto é, portador de explicações, valores e
normas de conduta dados ao homem por uma divindade. Portanto, esse livro
é por eles considerado uma obra oracular, concentradora de todas as
verdades absolutas e únicas sobre o universo, o tempo, sobre a condição
humana, sobre o certo e o errado, o permitido e o proibido, a vida e a
morte. Assim sendo, não restaria outra alternativa ao ser humano senão
submeter-se aos seus ditames e estórias, vinculando-se a ela sobretudo
pela fé. Pensar, agir e viver fora dos padrões bíblicos seria viver em
desacordo com as verdades com vê maiúsculo, por conseguinte, contra as
vontades do deus no qual acreditam e a ele se dedicam e temem. Este
seria o tal do "pecado".
Ora, o que está fazendo Marco Feliciano no Congresso Nacional? Marco
Feliciano está apenas sendo coerente com o seu credo e leal ao
eleitorado que o elegeu. Como deputado federal Marco Feliciano está
sendo evangélico, seguidor do que ele acredita serem as palavras de um
deus. Marco Feliciano está combatendo o mal, lutando contra o "pecado"
na sociedade brasileira. Ao desqualificar eticamente os homossexuais em
seu discurso e no seu engajamento homofóbico, Marco Feliciano mostra
simplesmente que respeita e cumpre rigorosamente o que está escrito no
seu livro sagrado. Ele segue à risca, por exemplo, Levítico 18:22: “Não
te deitarás com varão, como se fosse mulher; é abominação.” Ele segue
também Romanos 1:26-27: “Pelo que Deus os entregou a paixões infames.
Porque até as suas mulheres mudaram o uso natural no que é contrário à
natureza; semelhantemente, também os varões, deixando o uso natural da
mulher, se inflamaram em sua sensualidade uns para como os outros, varão
com varão, cometendo torpeza e recebendo em si mesmos a devida
recompensa do seu erro”. Ou ainda 1 Coríntios 6:9: “Não sabeis que os
injustos não herdarão o reino de Deus? Não vos enganeis: nem os
devassos, nem os idólatras, nem os adúlteros, nem os efeminados, nem os
sodomitas”. Sua misoginia também encontra fundamento claro na sua
Bíblia, em 1 Coríntios 11:3, por exemplo: "Quero, porém, que entendam
que o cabeça de todo homem é Cristo, e o cabeça da mulher é o homem, e o
cabeça de Cristo é Deus". Também em Efésios 5:22-24: "Mulheres,
sujeitem-se a seus maridos, como ao Senhor, pois o marido é o cabeça da
mulher, como também Cristo é o cabeça da igreja, que é o seu corpo, do
qual ele é o Salvador. Assim como a igreja está sujeita a Cristo, também
as mulheres estejam em tudo sujeitas a seus maridos".
Portanto, a atuação parlamentar de Marco Feliciano é digna de orgulho
para os cristãos que compartilham da sua fé. Trata-se de uma conduta
politica absolutamente coerente com uma ideologia misógina, homofóbica e
autoritária, de uma representação que reage e age, de maneira
automática, em conformidade com as fábulas do livro no qual ele e seus
milhares de eleitores cegamente acreditam. E por mais que muitos
religiosos discordem do cristianismo expresso por Marco Feliciano e
pelos seus milhares de eleitores, por mais que muitos teólogos façam
contorcionismos lógicos e malabarismos retóricos mil para tentarem
mostram que a Bíblia não diz o que realmente diz, quando abrimos as
páginas enfadonhas, absurdas, ora assustadoras, ora risíveis, desse
livro de mitologia, de contos da carochinha e de máximas bárbaras que
tantas desgraças já causou ao mundo, o que encontramos lá? Como vimos
acima, encontramos exatamente o que Marco Feliciano defende: passagens
machistas, misóginas e homofóbicas aos montes, personagens autoritários,
intolerantes e megalomaníacos que se apresentam como porta-vozes de um
deus, que se dizem filho de um deus e, o que é pior, que se colocam como
a encarnação da Verdade, sem contar as inúmeras atrocidades cometidas
contra animais inocentes e alheios ao fanatismo dos personagens, animais
estes condenados a rituais estúpidos de sacrifício. E é em coerência
com esse livro digno de um Steven Spielberg sem inspiração que Marco
Feliciano sustenta a sua homofobia, o seu machismo, o seu racismo, a sua
intolerância, enfim, o seu desrespeito aos direitos humanos e à
diversidade que caracteriza ainda o nosso ambiente democrático.
Resumindo e deixando mais claro, o problema central revelado pela
eleição do presidente da Comissão de Direitos Humanos do Congresso
Nacional não é o Marco Feliciano em si, que desfruta de um mandato
legitimado por 200 mil eleitores seguidores da Bíblia, mas a nossa
cultura de ainda levar a sério e de tomar como bússola existencial e
moral um livro tão misógino, tão homofóbico, tão intolerante e
autoritário como a Bíblia, onde o "amar ao próximo como a si mesmo",
máxima que não é uma exclusividade evangélica, torna-se nota de rodapé
em meio a tanta violência, sofrimento, crueldades, truculências e
absurdos de suas "verdades" e personagens.
(Publicado no jornal A Gazeta Itapirense, edição 407, 23 de março de 2013)
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