Marilena Chauí: "convém lembrar aos manifestantes que se situam à esquerda que, se não tiverem autonomia política e se não a defenderem com muita garra, poderão, no Brasil, colocar água no moinho dos mesmos poderes econômicos e políticos que organizaram grandes manifestações de direita na Venezuela, na Bolívia, no Chile, no Peru, no Uruguai e na Argentina. E a mídia, penhorada, agradecerá pelos altos índices de audiência"
As manifestações de junho de 2013 na cidade de São Paulo
por Marilena Chauí
Observações preliminares
O que segue não são reflexões sobre todas as manifestações ocorridas no
país, mas focalizam principalmente as ocorridas na cidade de São Paulo,
embora algumas palavras de ordem e algumas atitudes tenham sido comuns
às manifestações de outras cidades (a forma da convocação, a questão da
tarifa do transporte coletivo como ponto de partida, a desconfiança com
relação à institucionalidade política como ponto de chegada) bem como o
tratamento dado a elas pelos meios de comunicação (condenação inicial e
celebração final, com criminalização dos “vândalos”) permitam algumas
considerações mais gerais a título de conclusão.
O estopim das manifestações paulistanas foi o aumento da tarifa do
transporte público e a ação contestatória da esquerda com o Movimento
Passe Livre (MPL), cuja existência data de 2005 e é composto por
militantes de partidos de esquerda. Em sua reivindicação especifica, o
movimento foi vitorioso sob dois aspectos: 1. conseguiu a redução da
tarifa; 2. definiu a questão do transporte público no plano dos direitos
dos cidadãos e, portanto, afirmou o núcleo da prática democrática, qual
seja, a criação e defesa de direitos por intermédio da explicitação (e
não do ocultamento) dos conflitos sociais e políticos.
O inferno urbano
Não foram poucos os que, pelos meios de comunicação, exprimiram sua
perplexidade diante das manifestações de junho de 2013: de onde vieram e
por que vieram se os grandes problemas que sempre atormentaram o país
(desemprego, inflação, violência urbana e no campo) estão com soluções
bem encaminhadas e reina a estabilidade política? As perguntas são
justas, mas a perplexidade, não, desde que voltemos nosso olhar para um
ponto que foi sempre o foco dos movimentos populares: a situação da
vida urbana nas grandes metrópoles brasileiras.
Quais os traços mais marcantes da cidade de São Paulo nos últimos anos e
que, sob certos aspectos, podem ser generalizados para as demais?
Resumidamente, podemos dizer que são os seguintes:
- explosão do uso do automóvel individual: a mobilidade urbana se tornou
quase impossível, ao mesmo tempo em que a cidade se estrutura com um
sistema viário destinado aos carros individuais em detrimento do
transporte coletivo, mas nem mesmo esse sistema é capaz de resolver o
problema;
- explosão imobiliária com os grandes condomínios (verticais e
horizontais) e shopping centers, que produzem uma densidade demográfica
praticamente incontrolável além de não contar com uma rede de água,
eletricidade e esgoto, os problemas sendo evidentes, por exemplo, na
ocasião de chuvas;
- aumento da exclusão social e da desigualdade com a expulsão dos
moradores das regiões favorecidas pelas grandes especulações
imobiliárias e o conseqüente aumento das periferias carentes e de sua
crescente distância com relação aos locais de trabalho, educação e
serviços de saúde. (No caso de São Paulo, como aponta Hermínia
Maricatto, deu-se a ocupação das regiões de mananciais, pondo em risco a
saúde de toda a população); em resumo: degradação da vida cotidiana das
camadas mais pobres da cidade;
- o transporte coletivo indecente, indigno e mortífero. No caso de São
Paulo, sabe-se que o programa do metrô previa a entrega de 450 k de vias
até 1990; de fato, até 2013, o governo estadual apresenta 90 k. Além
disso, a frota de trens metroviários não foi ampliada, está envelhecida e
mal conservada; além da insuficiência quantitativa para atender a
demanda, há atrasos constantes por quebra de trens e dos instrumentos de
controle das operações. O mesmo pode ser dito dos trens da CPTU, que
também são de responsabilidade do governo estadual. No caso do
transporte por ônibus, sob responsabilidade municipal, um cartel domina
completamente o setor sem prestar contas a ninguém: os ônibus são feitos
com carrocerias destinadas a caminhões, portanto, feitos para
transportar coisas e não pessoas; as frotas estão envelhecidas e
quantitativamente defasadas com relação às necessidades da população,
sobretudo as das periferias da cidade; as linhas são extremamente longas
porque isso as torna mais lucrativas, de maneira que os passageiros são
obrigados a trajetos absurdos, gastando horas para ir ao trabalho, às
escolas, aos serviços de saúde e voltar para casa; não há linhas
conectando pontos do centro da cidade nem linhas inter-bairros, de
maneira que o uso do automóvel individual se torna quase inevitável para
trajetos menores;
Em resumo: definidas e orientadas pelos imperativos dos interesses
privados, as montadoras de veículos, empreiteiras da construção civil e
empresas de transporte coletivo dominam a cidade sem assumir qualquer
responsabilidade pública, impondo o que chamo de inferno urbano.
2. As manifestações paulistanas
A tradição de lutas
Recordando: A cidade de São Paulo (como várias das grandes
cidades brasileiras) tem uma tradição histórica de revoltas populares
contra as péssimas condições do transporte coletivo, isto é, a tradição
do quebra-quebra quando, desesperados e enfurecidos, os cidadãos quebram
e incendeiam ônibus e trens (à maneira do que faziam os operários no
início da Segunda Revolução Industrial, quando usavam os tamancos de
madeira – em francês, os sabots – para quebrar as máquinas – donde a
palavra francesa sabotage, sabotagem). Entretanto, não foi este o
caminho tomado pelas manifestações atuais e valeria a pena indagar por
que. Talvez porque, vindo da esquerda, o MPL politiza explicitamente a
contestação, em vez de politiza-la simbolicamente, como faz o
quebra-quebra.
Recordando: Nas décadas de 1970 a 1990, as organizações de classe
(sindicatos, associações, entidades) e os movimentos sociais e
populares tiveram um papel político decisivo na implantação da
democracia no Brasil pelos seguintes motivos: 1. introdução da idéia de
direitos sociais, econômicos e culturais para além dos direitos civis
liberais; 2. afirmação da capacidade auto-organizativa da sociedade; 3.
introdução da prática da democracia participativa como condição da
democracia representativa a ser efetivada pelos partidos políticos. Numa
palavra: sindicatos, associações, entidades, movimentos sociais e
movimentos populares eram políticos, valorizavam a política, propunham
mudanças políticas e rumaram para a criação de partidos políticos como
mediadores institucionais de suas demandas.
Isso quase desapareceu da cena histórica como efeito do neoliberalismo,
que produziu: 1. fragmentação, terceirização e precarização do trabalho
(tanto industrial como de serviços) dispersando a classe trabalhadora,
que se vê diante do risco da perda de seus referenciais de identidade e
de luta; 2. refluxo dos movimentos sociais e populares e sua
substituição pelas ONGs, cuja lógica é distinta daquela que rege os
movimentos sociais; 3. surgimento de uma nova classe trabalhadora
heterogênea, fragmentada, ainda desorganizada e que por isso ainda não
tem suas próprias formas de luta e não se apresenta no espaço público e
que por isso mesmo é atraída e devorada por ideologias individualistas
como a “teologia da prosperidade” (do pentecostalismo) e a ideologia do
“empreendedorismo” (da classe média), que estimulam a competição, o
isolamento e o conflito inter-pessoal, quebrando formas anteriores de
sociabilidade solidária e de luta coletiva.
Erguendo-se contra os efeitos do inferno urbano, as manifestações
guardaram da tradição dos movimentos sociais e populares a organização
horizontal, sem distinção hierárquica entre dirigentes e dirigidos. Mas,
diversamente dos movimentos sociais e populares, tiveram uma forma de
convocação que as transformou num movimento de massa, com milhares de
manifestantes nas ruas.
O pensamento mágico
A convocação foi feita por meio das redes sociais. Apesar da celebração
desse tipo de convocação, que derruba o monopólio dos meios de
comunicação de massa, entretanto é preciso mencionar alguns problemas
postos pelo uso dessas redes, que possui algumas características que o
aproximam dos procedimentos da midia:
1. é indiferenciada: poderia ser para um show da Madonna, para uma
maratona esportiva, etc. e calhou ser por causa da tarifa do transporte
público;
2. tem a forma de um evento, ou seja, é pontual, sem passado, sem futuro
e sem saldo organizativo porque, embora tenha partido de um movimento
social (o MPL), à medida que cresceu passou á recusa gradativa da
estrutura de um movimento social para se tornar um espetáculo de massa.
(Dois exemplos confirmam isso: a ocupação de Wall Street pelos jovens de
Nova York e que, antes de se dissolver, se tornou um ponto de atração
turística para os que visitavam a cidade; e o caso do Egito, mais
triste, pois com o fato das manifestações permanecerem como eventos e
não se tornarem uma forma de auto-organização política da sociedade,
deram ocasião para que os poderes existentes passassem de uma ditadura
para outra);
3. assume gradativamente uma dimensão mágica, cuja origem se encontra na
natureza do próprio instrumento tecnológico empregado, pois este opera
magicamente, uma vez que os usuários são, exatamente, usuários e,
portanto, não possuem o controle técnico e econômico do instrumento que
usam – ou seja, deste ponto de vista, encontram-se na mesma situação que
os receptores dos meios de comunicação de massa. A dimensão é mágica
porque, assim como basta apertar um botão para tudo aparecer, assim
também se acredita que basta querer para fazer acontecer. Ora, além da
ausência de controle real sobre o instrumento, a magia repõe um dos
recursos mais profundos da sociedade de consumo difundida pelos meios de
comunicação, qual seja, a idéia de satisfação imediata do desejo, sem
qualquer mediação;
4. a recusa das mediações institucionais indica que estamos diante de
uma ação própria da sociedade de massa, portanto, indiferente à
determinação de classe social; ou seja, no caso presente, ao se
apresentar como uma ação da juventude, o movimento assume a aparência
de que o universo dos manifestantes é homogêneo ou de massa, ainda que,
efetivamente, seja heterogêneo do ponto de vista econômico, social e
político, bastando lembrar que as manifestações das periferias não foram
apenas de “juventude” nem de classe média, mas de jovens, adultos,
crianças e idosos da classe trabalhadora.
No ponto de chegada, as manifestações introduziram o tema da corrupção
política e a recusa dos partidos políticos. Sabemos que o MPL é
constituído por militantes de vários partidos de esquerda e, para
assegurar a unidade do movimento, evitou a referência aos partidos de
origem. Por isso foi às ruas sem definir-se como expressão de partidos
políticos e, em São Paulo, quando, na comemoração da vitória, os
militantes partidários compareceram às ruas foram execrados, espancados,
e expulsos como oportunistas – sofreram repressão violenta por parte da
massa. Ou seja, alguns manifestantes praticaram sobre outros a
violência que condenaram na polícia,
A crítica às instituições políticas não é infundada, mas possui base concreta:
a) no plano conjuntural: o inferno urbano é, efetivamente, responsabilidade dos partidos políticos governantes;
b) no plano estrutural: no Brasil, sociedade autoritária e
excludente, os partidos políticos tendem a ser clubes privados de
oligarquias locais, que usam o público para seus interesses privados; a
qualidade dos legislativos nos três níveis é a mais baixa possível e a
corrupção é estrutural; como consequência, a relação de representação
não se concretiza porque vigoram relações de favor, clientela, tutela e
cooptação;
c) a crítica ao PT: de ter abandonado a relação com aquilo que
determinou seu nascimento e crescimento, isto é, o campo das lutas
sociais auto-organizadas e ter-se transformado numa máquina burocrática e
eleitoral (como têm dito e escrito muitos militantes ao longo dos
últimos 20 anos).
Isso, porém, embora explique a recusa, não significa que esta tenha sido
motivada pela clara compreensão do problema por parte dos
manifestantes. De fato, a maioria deles não exprime em suas falas uma
análise das causas desse modo de funcionamento dos partidos políticos,
qual seja, a estrutura autoritária da sociedade brasileira, de um lado,
e, de outro, o sistema político-partidário montado pelos casuísmos da
ditadura. Em lugar de lutar por uma reforma política, boa parte dos
manifestantes recusa a legitimidade do partido político como instituição
republicana e democrática. Assim, sob este aspecto, apesar do uso das
redes sociais e da crítica aos meios de comunicação, a maioria dos
manifestantes aderiu à mensagem ideológica difundida anos a fio pelos
meios de comunicação de que os partidos são corruptos por essência. Como
se sabe, essa posição dos meios de comunicação tem a finalidade de lhes
conferir o monopólio das funções do espaço público, como se não fossem
empresas capitalistas movidas por interesses privados. Dessa maneira,
a recusa dos meios de comunicação e as críticas a eles endereçadas
pelos manifestantes não impediram que grande parte deles aderisse à
perspectiva da classe média conservadora difundida pela mídia a respeito
da ética. De fato, a maioria dos manifestantes, reproduzindo a
linguagem midiática, falou de ética na política (ou seja, a transposição
dos valores do espaço privado para o espaço público), quando, na
verdade, se trataria de afirmar a ética da política (isto é, valores
propriamente públicos), ética que não depende das virtudes morais das
pessoas privadas dos políticos e sim da qualidade das instituições
públicas enquanto instituições republicanas. A ética da política, no
nosso caso, depende de uma profunda reforma política que crie
instituições democráticas republicanas e destrua de uma vez por todas a
estrutura deixada pela ditadura, que força os partidos políticos a
coalizões absurdas se quiserem governar, coalizões que comprometem o
sentido e a finalidade de seus programas e abrem as comportas para a
corrupção. Em lugar da ideologia conservadora e midiática de que, por
definição e por essência, a política é corrupta, trata-se de promover
uma prática inovadora capaz de criar instituições públicas que impeçam a
corrupção, garantam a participação, a representação e o controle dos
interesses públicos e dos direitos pelos cidadãos. Numa palavra, uma
invenção democrática.
Ora, ao entrar em cena o pensamento mágico, os manifestantes deixam de
lado que, até que uma nova forma da política seja criada num futuro
distante quando, talvez, a política se realizará sem partidos, por
enquanto, numa república democrática (ao contrário de uma ditadura)
ninguém governa sem um partido, pois é este que cria e prepara quadros
para as funções governamentais para concretização dos objetivos e das
metas dos governantes eleitos. Bastaria que os manifestantes se
informassem sobre o governo Collor para entender isso: Collor partiu das
mesmas afirmações feitas por uma parte dos manifestantes (partido
político é coisa de “marajá” e é corrupto) e se apresentou como um homem
sem partido. Resultado: a) não teve quadros para montar o governo, nem
diretrizes e metas coerentes e b) deu feição autocrática ao governo,
isto é, “o governo sou eu”. Deu no que deu.
Além disso, parte dos manifestantes está adotando a posição ideológica
típica da classe média, que aspira por governos sem mediações
institucionais e, portanto, ditatoriais. Eis porque surge a afirmação de
muitos manifestantes, enrolados na bandeira nacional, de que “meu
partido é meu país”, ignorando, talvez, que essa foi uma das afirmações
fundamentais do nazismo contra os partidos políticos.
Assim, em lugar de inventar uma nova política, de ir rumo a uma invenção
democrática, o pensamento mágico de grande parte dos manifestantes se
ergueu contra a política, reduzida à figura da corrupção.
Historicamente, sabemos onde isso foi dar. E por isso não nos devem
surpreender, ainda que devam nos alarmar, as imagens de jovens
militantes de partidos e movimentos sociais de esquerda espancados e
ensangüentados durante a manifestação de comemoração da vitória do MPL.
Já vimos essas imagens na Itália dos anos 1920, na Alemanha dos anos
1930 e no Brasil dos anos 1960-1970.
Conclusão provisória
Do ponto de vista simbólico, as manifestações possuem um sentido importante que contrabalança os problemas aqui mencionados.
Não se trata, como se ouviu dizer nos meios de comunicação, que
finalmente os jovens abandonaram a “bolha” do condomínio e do shopping
center e decidiram ocupar as ruas (já podemos prever o número de novelas
e mini-séries que usarão essa idéia para incrementar o programa High
School Brasil, da Rede Globo). Simbolicamente, malgrado eles próprios e
malgrado suas afirmações explícitas contra a política, os manifestantes
realizaram um evento político: disseram não ao que aí está, contestando
as ações dos poderes executivos municipais, estaduais e federal, assim
como as do poder legislativo nos três níveis. Praticando a tradição do
humor corrosivo que percorre as ruas, modificaram o sentido corriqueiro
das palavras e do discurso conservador por meio da inversão das
significações e da irreverência, indicaram uma nova possibilidade de
práxis política, uma brecha para repensar o poder, como escreveu um
filósofo político sobre os acontecimentos de maio de 1968 na Europa.
Justamente porque uma nova possibilidade política está aberta, algumas
observações merecem ser feitas para que fiquemos alertas aos riscos de
apropriação e destruição dessa possibilidade pela direita conservadora e
reacionária.
Comecemos por uma obviedade: como as manifestações são de massa (de
juventude, como propala a mídia) e não aparecem em sua determinação de
classe social, que, entretanto, é clara na composição social das
manifestações das periferias paulistanas, é preciso lembrar que uma
parte dos manifestantes não vive nas periferias das cidades, não
experimenta a violência do cotidiano experimentada pela outra parte dos
manifestantes. Com isso, podemos fazer algumas indagações. Por exemplo:
os jovens manifestantes de classe média que vivem nos condomínios têm
idéia de que suas famílias também são responsáveis pelo inferno urbano
(o aumento da densidade demográfica dos bairros e a expulsão dos
moradores populares para as periferias distantes e carentes)? Os jovens
manifestantes de classe média que, no dia em que fizeram 18 anos,
ganharam de presente um automóvel (ou estão na expectativa do presente
quando completarem essa idade), têm idéia de que também são responsáveis
pelo inferno urbano? Não é paradoxal, então, que se ponham a lutar
contra aquilo que é resultado de sua própria ação (isto é, de suas
famílias), mas atribuindo tudo isso à política corrupta, como é típico
da classe média?
Essas indagações não são gratuitas nem expressão de má-vontade a
respeito das manifestações de 2013. Elas têm um motivo político e um
lastro histórico.
Motivo político: assinalamos anteriormente o risco de apropriação
das manifestações rumo ao conservadorismo e ao autoritarismo. Só será
possível evitar esse risco se os jovens manifestantes levarem em conta
algumas perguntas:
1. estão dispostos a lutar contra as ações que causam o inferno urbano
e, portanto, enfrentar pra valer o poder do capital de montadoras,
empreiteiras e cartéis de transporte que, como todo sabem não se
relacionam pacificamente (para dizer o mínimo) com demandas sociais?
2. estão dispostos a abandonar a suposição de que a política se faz magicamente sem mediações institucionais?
3. estão dispostos a se engajar na luta pela reforma política, a fim de
inventar uma nova política, libertária, democrática, republicana,
participativa?
4. estão dispostos a não reduzir sua participação a um evento pontual e
efêmero e a não se deixar seduzir pela imagem que deles querem produzir
os meios de comunicação?
Lastro histórico: quando Luiza Erundina, partindo das demandas
dos movimentos populares e dos compromissos com a justiça social, propôs
a Tarifa Zero para o transporte público de São Paulo, ela explicou à
sociedade que a tarifa precisava ser subsidiada pela Prefeitura e que
ela não faria o subsídio implicar em cortes nos orçamentos de educação,
saúde, moradia e assistência social, isto é, dos programas sociais
prioritários de seu governo. Antes de propor a Tarifa Zero, ela aumentou
em 500% a frota da CMTC (explicação para os jovens: CMTC era a antiga
empresa municipal de transporte) e forçou os empresários privados a
renovar sua frota. Depois disso, em inúmeras audiências públicas, ela
apresentou todos os dados e planilhas da CMTC e obrigou os empresários
das companhias privadas de transporte coletivo a fazer o mesmo, de
maneira que a sociedade ficou plenamente informada quanto aos recursos
que seriam necessários para o subsídio. Ela propôs, então, que o
subsídio viesse de uma mudança tributária: o IPTU progressivo, isto é, o
imposto predial seria aumentado para os imóveis dos mais ricos, que
contribuiriam para o subsídio juntamente com outros recursos da
Prefeitura. Na medida que os mais ricos, como pessoas privadas, têm
serviçais domésticos que usam o transporte público, e, como empresários,
têm funcionários usuários desse mesmo transporte, uma forma de realizar
a transferência de renda, que é base da justiça social, seria
exatamente fazer com que uma parte do subsídio viesse do novo IPTU. Os
jovens manifestantes de hoje desconhecem o que se passou: comerciantes
fecharam ruas inteiras, empresários ameaçaram lockout das empresas, nos
“bairros nobres” foram feitas manifestações contra o “totalitarismo
comunista” da prefeita e os poderosos da cidade “negociaram” com os
vereadores a não aprovação do projeto de lei. A Tarifa Zero não foi
implantada. Discutida na forma de democracia participativa, apresentada
com lisura e ética política, sem qualquer mancha possível de corrupção, a
proposta foi rejeitada. Esse lastro histórico mostra o limite do
pensamento mágico, pois não basta ausência de corrupção, como imaginam
os manifestantes, para que tudo aconteça imediatamente da melhor maneira
e como se deseja.
Cabe uma última observação: se não levarem em consideração a divisão
social das classes, isto é, os conflitos de interesses e de poderes
econômico-sociais na sociedade, os manifestantes não compreenderão o
campo econômico-político no qual estão se movendo quando imaginam estar
agindo fora da política e contra ela. Entre os vários riscos dessa
imaginação, convém lembrar aos manifestantes que se situam à esquerda
que, se não tiverem autonomia política e se não a defenderem com muita
garra, poderão, no Brasil, colocar água no moinho dos mesmos poderes
econômicos e políticos que organizaram grandes manifestações de direita
na Venezuela, na Bolívia, no Chile, no Peru, no Uruguai e na Argentina. E
a mídia, penhorada, agradecerá pelos altos índices de audiência.
Fonte: http://midiafazmal.wordpress.com/2013/06/27/marilena-chaui-sobre-manifestacoes-2013-2/
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