Por que revisar a Lei da Anistia
Motivos não faltam, desde a imprescritibilidade dos
crimes contra a humanidade à condenação na Corte Interamericana de
Direitos Humanos
Por Maurício Santoro*, Fórum Semanal
Para marcar o aniversário do golpe de Estado de 1964, a Anistia Internacional Brasil lançou a campanha “50 dias contra a impunidade”, cujo pilar é uma petição para que o país investigue e puna as graves violações de direitos humanos cometidas por agentes de Estado durante a ditadura. A persistência desta impunidade tornou o país um ponto fora da curva na América Latina – região dinâmica no acerto de contas com o período autoritário. A chave para fazer o Brasil avançar nesse campo é revisar a Lei da Anistia.
Seu texto concede benefícios “a todos quantos, no período compreendido entre 2 de setembro de 1961 e 15 de agosto de 1979, cometeram crimes políticos ou conexos com estes”, definindo esses últimos como “de qualquer natureza relacionados com crimes políticos ou praticados por motivação política.” A interpretação habitual é a de que foram anistiados não só presos políticos, cassados e exilados, mas também os agentes do Estado que os perseguiram. Hoje, há três projetos de lei no Congresso Nacional que mudam essa leitura da lei, estipulando de forma explícita que ela não se aplica a funcionários públicos que cometeram violações de direitos humanos.
O argumento de que a Lei da Anistia foi resultado de pacto político que possibilitou a transição para a democracia no Brasil é insustentável. Impossível falar em acordo quando a oposição mais vitimada pela ditadura estava presa ou exilada, sem condições de negociar. O Congresso estava mutilado pelo Pacote de Abril de 1977, que mudou as regras eleitorais para favorecer o governo e criou os senadores biônicos, indicados pelo Executivo. O presidente Ernesto Geisel também cassou o mandato de diversos políticos, da oposição (MDB) e da situação (Arena). Era um ambiente de coerção e medo, não de diálogo.
O Brasil não viveu uma guerra civil entre 1964 e 1985. Não houve dois lados. O país sofreu uma ditadura que violou de maneira sistemática os direitos humanos da população. Em nações como a Síria, faz sentido pensar em processos judiciais que investiguem agentes do Estado e da oposição armada. No Brasil, a comparação é descabida. Rubens Paiva desapareceu com o cadáver de seus adversários? Vladimir Herzog torturou algum funcionário do DOI-Codi? Como equiparar algozes e vítimas como beneficiários da mesma anistia?
Em 2010, a Corte Interamericana de Direitos Humanos sentenciou o governo brasileiro no caso Gomes Lund a investigar as graves violações cometidas pelos agentes do Estado na guerrilha do Araguaia e em outros momentos da ditadura. Foi a confirmação da jurisprudência de julgamentos semelhantes sobre países como El Salvador e Peru. As decisões da Corte estão acima até mesmo das do Supremo Tribunal Federal, mas a sentença não foi cumprida e sua própria existência costuma ser ignorada – numa amnésia bastante conveniente – pelos que defendem a manutenção da impunidade.
O Ministério Público Federal tem investigado os crimes da ditadura, em especial o desaparecimento forçado – alegando que se trata de um crime continuado, pois os cadáveres nunca foram descobertos. Estes crimes, portanto, não estariam cobertos pela Lei da Anistia. Esse esforço esbarra no conservadorismo do Poder Judiciário, que se recusa a aceitar as denúncias. No mesmo ano da sentença do caso Gomes Lund, o STF considerou a Lei da anistia constitucional, ao ser inquirido a respeito pela Ordem dos Advogados do Brasil na Argüição de Descumprimento de Preceito Fundamental 153. A composição do Supremo mudou desde então, com a inclusão de ministros com formação mais progressista. É provável que um novo debate resultasse em um posicionamento diferente.
Além de revisar a lei, a petição da Anistia Internacional propõe que a legislação brasileira incorpore o conceito de crimes contra a humanidade, presente em tratados diplomáticos ratificados pelo país. Eles são: escravidão, genocídio, apartheid e tortura (em quaisquer circunstâncias) e, quando praticados no âmbito de repressão política sistemática, estupro, homicídio e desaparecimento forçado. Estes crimes são considerados tão graves porque atingem não só a vítima direta, mas o próprio sentido de decência e dignidade da humanidade. Não prescrevem, não são anistiáveis e a punição a eles pode ser aplicada de forma retroativa, ao contrário do que ocorre no direito convencional. O novo Código Penal em debate no Congresso tem um capítulo sobre eles.
Vale lembrar que alguns crimes emblemáticos da ditadura – a tentativa de atentado no Riocentro e a bomba na OAB que matou Lyda Monteiro da Silva, secretária da instituição – ocorreram na década de 1980 e não estão cobertos pela Lei da Anistia. Qual a justificativa legal para esta impunidade? O debate jurídico por vezes parece cortina de fumaça para não enfrentar a política que sustenta a não punição dos agentes do Estado brasileiro, no passado e nos dias atuais.
* Mauricio Santoro é assessor de direitos humanos da Anistia Internacional Brasil.
Ilustração de capa: Carlos Latuff
*revistaforum
Por Maurício Santoro*, Fórum Semanal
Para marcar o aniversário do golpe de Estado de 1964, a Anistia Internacional Brasil lançou a campanha “50 dias contra a impunidade”, cujo pilar é uma petição para que o país investigue e puna as graves violações de direitos humanos cometidas por agentes de Estado durante a ditadura. A persistência desta impunidade tornou o país um ponto fora da curva na América Latina – região dinâmica no acerto de contas com o período autoritário. A chave para fazer o Brasil avançar nesse campo é revisar a Lei da Anistia.
Seu texto concede benefícios “a todos quantos, no período compreendido entre 2 de setembro de 1961 e 15 de agosto de 1979, cometeram crimes políticos ou conexos com estes”, definindo esses últimos como “de qualquer natureza relacionados com crimes políticos ou praticados por motivação política.” A interpretação habitual é a de que foram anistiados não só presos políticos, cassados e exilados, mas também os agentes do Estado que os perseguiram. Hoje, há três projetos de lei no Congresso Nacional que mudam essa leitura da lei, estipulando de forma explícita que ela não se aplica a funcionários públicos que cometeram violações de direitos humanos.
O argumento de que a Lei da Anistia foi resultado de pacto político que possibilitou a transição para a democracia no Brasil é insustentável. Impossível falar em acordo quando a oposição mais vitimada pela ditadura estava presa ou exilada, sem condições de negociar. O Congresso estava mutilado pelo Pacote de Abril de 1977, que mudou as regras eleitorais para favorecer o governo e criou os senadores biônicos, indicados pelo Executivo. O presidente Ernesto Geisel também cassou o mandato de diversos políticos, da oposição (MDB) e da situação (Arena). Era um ambiente de coerção e medo, não de diálogo.
O Brasil não viveu uma guerra civil entre 1964 e 1985. Não houve dois lados. O país sofreu uma ditadura que violou de maneira sistemática os direitos humanos da população. Em nações como a Síria, faz sentido pensar em processos judiciais que investiguem agentes do Estado e da oposição armada. No Brasil, a comparação é descabida. Rubens Paiva desapareceu com o cadáver de seus adversários? Vladimir Herzog torturou algum funcionário do DOI-Codi? Como equiparar algozes e vítimas como beneficiários da mesma anistia?
Em 2010, a Corte Interamericana de Direitos Humanos sentenciou o governo brasileiro no caso Gomes Lund a investigar as graves violações cometidas pelos agentes do Estado na guerrilha do Araguaia e em outros momentos da ditadura. Foi a confirmação da jurisprudência de julgamentos semelhantes sobre países como El Salvador e Peru. As decisões da Corte estão acima até mesmo das do Supremo Tribunal Federal, mas a sentença não foi cumprida e sua própria existência costuma ser ignorada – numa amnésia bastante conveniente – pelos que defendem a manutenção da impunidade.
O Ministério Público Federal tem investigado os crimes da ditadura, em especial o desaparecimento forçado – alegando que se trata de um crime continuado, pois os cadáveres nunca foram descobertos. Estes crimes, portanto, não estariam cobertos pela Lei da Anistia. Esse esforço esbarra no conservadorismo do Poder Judiciário, que se recusa a aceitar as denúncias. No mesmo ano da sentença do caso Gomes Lund, o STF considerou a Lei da anistia constitucional, ao ser inquirido a respeito pela Ordem dos Advogados do Brasil na Argüição de Descumprimento de Preceito Fundamental 153. A composição do Supremo mudou desde então, com a inclusão de ministros com formação mais progressista. É provável que um novo debate resultasse em um posicionamento diferente.
Além de revisar a lei, a petição da Anistia Internacional propõe que a legislação brasileira incorpore o conceito de crimes contra a humanidade, presente em tratados diplomáticos ratificados pelo país. Eles são: escravidão, genocídio, apartheid e tortura (em quaisquer circunstâncias) e, quando praticados no âmbito de repressão política sistemática, estupro, homicídio e desaparecimento forçado. Estes crimes são considerados tão graves porque atingem não só a vítima direta, mas o próprio sentido de decência e dignidade da humanidade. Não prescrevem, não são anistiáveis e a punição a eles pode ser aplicada de forma retroativa, ao contrário do que ocorre no direito convencional. O novo Código Penal em debate no Congresso tem um capítulo sobre eles.
Vale lembrar que alguns crimes emblemáticos da ditadura – a tentativa de atentado no Riocentro e a bomba na OAB que matou Lyda Monteiro da Silva, secretária da instituição – ocorreram na década de 1980 e não estão cobertos pela Lei da Anistia. Qual a justificativa legal para esta impunidade? O debate jurídico por vezes parece cortina de fumaça para não enfrentar a política que sustenta a não punição dos agentes do Estado brasileiro, no passado e nos dias atuais.
* Mauricio Santoro é assessor de direitos humanos da Anistia Internacional Brasil.
Ilustração de capa: Carlos Latuff
*revistaforum
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