Uruguai: o país da maconha estatal não presenteia o narcotráfico
Para Pepe Mujica, assumir o controle
do processo de produção e venda da erva é não "presentear" o
narcotráfico e garantir o "direito à experimentação".
O Uruguai, um pequeno país que quase não é visto no mapa, é o primeiro
país do mundo a legalizar a maconha e a assumir o controle de todo o
processo de produção e venda da erva. A regulamentação da produção da
marijuana reforça a agenda progressista do governo de José Pepe Mujica,
que recentemente também legalizou o aborto e a Lei do Matrimônio
Igualitário, que permite a união de casais homossexuais
O Uruguai já esteve sob forte pressão por parte dos vizinhos Brasil e
Argentina para que se afastasse da legalização da marijuana, além da
Junta Internacional de Controle de Narcóticos das Nações Unidas, que
avalia este fato como uma violação às obrigações dos tratados
internacionais. Internamente, os partidos tradicionais se opuseram
tenazmente, sob o argumento de que essa lei dispararia o consumo de
drogas mais pesadas.
Depois de ser por anos o principal palco da guerra contra as drogas, a
América Latina está se transformando no epicentro da busca por novas
alternativas. Na Cúpula das Américas de 2012, em Cartagena, Colômbia, os
presidentes da Colômbia, Juan Manuel Santos, e da Guatemala, Otto Pérez
Molina, fizeram um chamado ao debate regional sobre a legalização e a
descriminalização das drogas. Nos meses e anos seguintes, as iniciativas
de descriminalização ganharam força na Colômbia, no Equador e no
México.
País conservador de tradição liberal, onde fumar marijuana não é ilegal,
ao contrário do que acontece no Brasil e em muitos outros países
latinos, o Uruguai começou a discussão do assunto há quase uma década.
Nesse país, desde 1915 até os anos da ofensiva neoliberal, a produção e
comercialização do álcool e de bebidas alcoólicas (uísque, derivados da
cana, rum, conhaque, grappa) era monopólio do Estado, e seus dividendos
eram destinados à manutenção da saúde pública. É o que tentarão fazer
agora também com o fim da comercialização da marijuana. Já no começo do
século 20, o Uruguai era um Estado laico, onde a mulher podia optar pelo
divórcio e a prostituição era regulamentada.
Os vícios de Mujica
O próprio presidente foi o maior defensor da medida, e em seu
característico tom bonachão e com uma certa ironia, foi desmontando
pessoalmente as objeções de seus adversários, uma por uma. Enfatizou que
o "único vício saudável que existe (…) é o amor. Os demais são uma
praga, mas existem diferentes níveis". "Há muitos anos que sabemos que o
tabaco é ruim, que mata, e que o álcool também. Entretanto, continuamos
fumando e bebendo. E com a marijuana... não acredito que nenhum vício
seja bom. É má, é venenosa. Mas mais venenoso é ocultar, então nós vamos
por outro caminho", acrescentou.
Não existe qualquer clima de permissividade diante da sanção da lei, que
deixa claro que, ao consumir a maconha, as pessoas podem procurar as
drogas mais pesadas.
Mujica defendeu a autorização do consumo de 30 gramas de maconha por
pessoa, argumentando que será possível identificar o consumidor, pois
cada cigarro legalizado possui uma composição molecular e um código
genético únicos.
Por outro lado, previu que "se tivermos [o consumidor] como perseguido e
clandestino, e o criminalizarmos, estamos entregando-o para o
narcotráfico". E alguém precisará explicar como um "velho" de 78 anos se
transformou em ídolo dos jovens.
O presidente reconheceu que o país e seus cidadãos não estão "totalmente
preparados" para uma decisão com tais características, mas reivindicou
"o direito à experimentação social" para justificar a legalização da
marijuana. "Não se pode conseguir soluções fazendo sempre o mesmo e se
estiver fracassando. O que não quer dizer que tenhamos a pedra
filosofal", admitiu.
A influência de Milton Friedman
Mujica, um ex-guerrilheiro tupamaro que se tornou presidente em 2010,
explicou que a "ideologia" por trás do projeto se baseou em abordagens
do economista liberal Milton Friedman com quem ele não concorda em nada,
com exceção de sua defesa da legalização das drogas. Sua análise do
mercado e da política de governo norte-americano com relação às drogas
"foi o que me inspirou que é preciso mudar", afirmou.
Mujica falou sobre a negociação capitalista que existe por trás da
marijuana. "Tendo uma demanda, aparece quem a cubra... um empresário de
alto risco que intervenha e utilize todos os métodos, todos os caminhos
porque existe uma taxa de lucros enorme assegurada por conta da
repressão existente", explicou ele, depois de denunciar que "o dinheiro
se faz nos Estados Unidos, o dinheiro grosso, o mercado grosso", mas a
América Latina é que paga pelos mortos.
"Para combater o narcotráfico é preciso derrubar o mercado", enfatizou.
Para Mujica, trata-se de uma decisão política que "não é bonita", mas
que é tomada para não "presentear os membros do narcotráfico".
"Contra os métodos do narcotráfico qualquer coisa vale. A via repressiva
está fracassando. Se não precisa haver repressão? Sim, precisa, mas não
se deve aumentar essa medida, como os domadores, que colocam a comida
em uma mão e o chicote na outra. Não estamos tirando os jovens da
clandestinidade para entrar pela porta do consumo sem saber onde vão
sair. É preciso ter audácia e buscar novos caminhos", sentenciou.
Com números nas mãos, argumentou que o país enfrenta uma guerra
desigual: apenas os presos por posse e consumo de ganja custam ao país
mais de 30 milhões de dólares. No Uruguai existem mais mortos pelo
tráfico de drogas (80 em 2013 por acerto de contas entre grupos rivais)
do que pelo consumo de drogas propriamente dito (apenas três por
overdose). "Então, o que é pior, a droga ou o tráfico?", provocou.
Apesar de a lei estar vigente desde meados de dezembro, será necessário
esperar a regulamentação para determinar como serão outorgados os
alvarás para plantar, quais variedades da droga serão produzidas, entre
outros aspectos legais. "Eu reivindico o direito à experimentação
social. Não é usar as pessoas como cobaia: é entrar no laboratório real
de uma sociedade com práticas diferentes", explicou Mujica.
Para além do baseado
A legalização da cannabis será acompanhada de uma política de educação
sobre o consumo de drogas. Segundo a lei, os maiores de 18 anos poderão
ter acesso à droga mediante o cultivo para o próprio consumo, em clubes
de consumidores ou comprando em farmácias – em todos os casos com
limites e com prévio registro diante do Estado. As autoridades já
adiantaram que a venda será limitada aos residentes no país. A norma
permitirá ao Estado regulamentar a importação, produção, distribuição e
venda do cânhamo no país de 3,2 milhões de habitantes, esperando
enfraquecer o narcotráfico e administrar o consumo.
O governo uruguaio estuda usar a marijuana no tratamento de doenças
neurológicas, no tratamento de doentes em estado terminal e em viciados
em drogas mais pesadas. No marco da regulamentação da medida que
legalizou em dezembro a produção e a venda da cannabis no Uruguai, o
Ministério de Saúde Pública (MSP) trabalha com o uso medicinal da
maconha em doenças neurológicas degenerativas, nos cuidados paliativos e
no tratamento da dor nos momentos finais da vida e em seu uso para
diminuir o consumo de outras drogas mais pesadas, como a pasta base da
cocaína.
O primeiro efeito da lei foi a legalização do cultivo para consumo
próprio, mas para que seja iniciada a plantação e venda é necessário
esperar pela regulamentação da norma, que definirá como serão concedidas
as licenças para plantar, os tipos de cannabis utilizados, entre outros
aspectos. A marijuana seria produzida mediante alvará a privados, mas
no começo, por uma questão de segurança, apenas em estufas dentro de
prédios militares.
O certo é que dezenas de empresários manifestaram interesse em plantar,
apostando na qualidade e no preço para combater o mercado clandestino. A
ideia é permitir a plantação – permitida a privados, residentes no país
e sob controle estatal – de quatro a seis variedades da erva para dar
diferentes alternativas aos consumidores, estimados oficialmente em 120
mil, enquanto associações de consumidores falam que esse número pode
chegar a 200 mil, em um universo de 3,2 milhões de habitantes.
O Uruguai se colocou na vanguarda do debate sobre a legalização das
drogas leves, apoiado por ex-governantes latinos, como o mexicano
Vicente Fox, o chileno Ricardo Lagos e o brasileiro Fernando Henrique
Cardoso. Claro, nenhum deles se animou a percorrer este caminho, nem a
pagar o custo político quando foram presidentes...
Aram Aharonian, jornalista e professor uruguaio-venezuelano, diretor da revista Questión e fundador da Telesur.
No Carta Maior
*comtextolivre
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