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Ser de esquerda é não aceitar as injustiças, sejam elas quais forem, como um fato natural. É não calar diante da violação dos Direitos Humanos, em qualquer país e em qualquer momento. É questionar determinadas leis – porque a Justiça, muitas vezes, não anda de mãos dadas com o Direito; e entre um e outro, o homem de esquerda escolhe a justiça.
É ser guiado por uma permanente capacidade de se estarrecer e, com ela e por causa dela, não se acomodar, não se vender, não se deixar manipular ou seduzir pelo poder. É escolher o caminho mais justo, mesmo que seja cansativo demais, arriscado demais, distante demais. O homem de esquerda acredita que a vida pode e deve ser melhor e é isso, no fundo, que o move. Porque o homem de esquerda sabe que não é culpa do destino ou da vontade divina que um bilhão de pessoas, segundo dados da ONU, passe fome no mundo.
É caminhar junto aos marginalizados; é repartir aquilo que se tem e até mesmo aquilo que falta, sem sacrifício e sem estardalhaço. À direita, cabe a tarefa de dar o que sobra, em forma de esmola e de assistencialismo, com barulho e holofotes. Ser de esquerda é reconhecer no outro sua própria humanidade, principalmente quando o outro for completamente diferente. Os homens e mulheres de esquerda sabem que o destino de uma pessoa não deveria ser determinado por causa da raça, do gênero ou da religião.
Ser de esquerda é não se deixar seduzir pelo consumismo; é entender, como ensinou Milton Santos, que a felicidade está ancorada nos bens infinitos. É mergulhar, com alegria e inteireza, na luta por um mundo melhor e neste mergulho não se deixar contaminar pela arrogância, pelo rancor ou pela vaidade. É manter a coerência entre a palavra e a ação. É alimentar as dúvidas, para não cair no poço escuro das respostas fáceis, das certezas cômodas e caducas. Porém, o homem de esquerda não faz da dúvida o álibi para a indiferença. Ele nunca é indiferente. Ser de esquerda é saber que este “mundo melhor e possível” não se fará de punhos cerrados nem com gritos de guerra, mas será construído no dia-a-dia, nas pequenas e grandes obras e que, muitas vezes, é preciso comprar batalhas longas e desgastantes. Ser de esquerda é, na batalha, não usar os métodos do inimigo.
Fernando Evangelista

sábado, abril 05, 2014

 Por que Delfim Netto mente


Delfim com Boilesen, o chefão da Oban
Delfim Netto é, provavelmente, um dos maiores casos de blindagem da história e um exemplo de sobrevivência política impressionante.

Levou tempo para ele aceitar depor na Comissão da Verdade. Esteve lá no ano passado. Na versão paulista da comissão, repetiu seu velho refrão quando perguntado sobre os abusos do regime: não sabia de nada.

“Havia a mais absoluta separação. No meu gabinete nunca entrou um oficial fardado”, disse. “Não existia nenhum vínculo entre as administrações”.

Delfim não era um contínuo. Assinou o AI-5 quando era ministro da Fazenda de Costa e Silva. “Direi mesmo que creio que não é suficiente”, afirmou naqueles tempos. Ao chancelar o ato, estava ajudando a suspender o habeas corpus para crimes políticos e contra a segurança nacional, o que foi fundamental para a indústria da repressão.

Ocupou esse mesmo cargo entre 1969 e 1974, sob Médici. Depois foi ministro da Agricultura e do Planejamento com Figueiredo. Sobre seu legado, declarou que “Geisel quebrou o Brasil”. Não ele.

Nos anos Figueiredo, tornou-se uma figura meio pop. Jô Soares tinha um quadro em que metia uns óculos de lentes de fundo de garrafa, um terno apertado e o imitava. Num depoimento para o documentário “Muito Além do Cidadão Kane”, Roberto Civita, da Abril, contava que, em 1980, quando o grupo tentou uma concessão de TV, a empresa tinha a seu lado “Golbery e Delfim, os dois homens mais importantes do governo naquela época”.

Declara não ter conhecimento da OBAN, apesar de sua proximidade com gente como Henning Boilesen, o dinamarquês que presidiu a Ultragás e financiou a tortura. Mesmo sob censura, o cidadão medianamente informado tinha noção do que acontecia. Delfim, repito, não era um contínuo. Depois da redemocratização, foi cinco vezes deputado federal, virou colunista de jornais e revistas, conselheiro de Lula e absolvido sem julgamento.

Delfim Netto mente. E impede que se conheça melhor um período importante da história do Brasil.

Albert Speer era conhecido como “o bom nazista”. Arquiteto do Terceiro Reich, depois ministro do Armamento, querido de Hitler, sempre negou ter ideia do extermínio em massa dos judeus. Foi julgado em Nuremberg e preso em Spandau. Publicou uma autobiografia reveladora e doou parte dos lucros para instituições judaicas de caridade.

Trinta anos após sua morte em 1981, documentos revelaram não apenas que ele conhecia os campos de concentração como participou de roubos de obras de arte de judeus.

Não há, hoje, um único edifício ou viaduto de Speer de pé em Berlim. A obra de Delfim está aí.

Kiko Nogueira
No DCM
*comtextolivre 

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