Cachimbo da paz
Marcha da Maconha: música, bom-humor, consciência,
poucos policiais e nenhum incidente. Milhares foram às ruas de SP pedir a
liberação da erva. Por Laura Capriglione
por Laura Caprigilone
—
Yghor Boy
“Sou maconheiroooo, com muito orgulhoooooo, com muito amoooor....”. A
avenida Paulista vibrou com a adaptação do hino da torcida brasileira
em competições esportivas internacionais, ontem cantada por militantes
contrários à proibição do consumo de maconha no Brasil.
Segundo os organizadores da 7ª edição
da Marcha da Maconha, reuniram-se na manifestação 15.000 pessoas. A
Polícia Militar calculou em 3.000 o número de presentes.
Para efeito de comparação, mesmo a
estimativa mais conservadora dá conta de uma presença de público três
vezes maior do que os últimos protestos contra a Copa do Mundo. Ou seis
vezes maior do que a Marcha da Família com Deus e a Liberdade, realizada
em 22 de março.
Maconheiros e simpatizantes, entretanto, deram show de organização (desmentindo, aliás, a má-fama ditada pelo preconceito).
Lição de maconheiro para outros
movimentos sociais: cada pessoa que chegava ao vão livre do Masp recebia
um folheto da comissão organizadora da Marcha com orientações de
segurança.
“A Marcha da Maconha é Pacífica
(...). Chega de guerra: a gente quer paz, liberdade”, conclamava o texto
que também orientava os manifestantes para que não provocassem nem
aceitassem “provocação da polícia”. Ah, também tinha dicas sobre como se
portar em caso de prisão.
Nem foi necessário porque, ao
contrário de tantas outras, a manifestação da Maconha não resultou em
uma única detenção até o seu encerramento.
“Ei polícia! A maconha é uma delícia”. Em
vez da pancadaria entre polícia e black-blocs, que já se tornou
habitual, o que se viu foi uma coluna humana colorida, dançante,
musical, divertida.
Desfilaram juntos anarco-punks,
skatistas em seus skates, cicloativistas, estudantes secundaristas,
lésbicas, gays, negros, alunos da USP, médicos, psicólogos, artistas, o
deputado estadual pelo PT, Adriano Diogo, doentes e familiares de
doentes que seriam beneficiados caso fosse liberado pelo menos o uso
medicinal da maconha.
Jornalistas que compareceram ao ato
munidos de capacetes e coletes de identificação fornecidos pela PM
enfiaram esses equipamentos nos carros de reportagem, para não parecer
que torciam pelo pior.
“Maconha é natural, coxinha é que faz mal!”,
gritou a marcha, brincando com os poucos policiais que a acompanhavam
--120 contra 1.500 do último ato anti-Copa. Pejorativamente, soldados da
PM são chamados de “coxinhas” pelo hábito das viaturas de parar em
padarias para degustar o salgado “na faixa”.
Corolário da excelência da
organização, registre-se, foi a pontualidade britânica dos maconheiros.
Exatamente às 4h20 da tarde, hora marcada, a Marcha pôs-se em movimento,
homenageando a tradição canábica que vem dos anos 1970, quando um grupo
de secundaristas da Califórnia (EUA) fixou essa hora como a de encontro
para fumar maconha.
Às 16h20, estouraram no céu da avenida Paulista os rojões que anunciavam a saída da passeata.
A comissão de frente da
manifestação, desta vez, era composta por um grupo de pessoas sofridas,
que lutam pela legalização da maconha para fins medicinais.
Nada a ver com a imagem
do “maluco maconheiro”, estava lá o comerciante da Vila Formosa (zona
leste de São Paulo) Fábio Carvalho, 47 anos, marido de uma bancária e
pai de Claria, uma menina de dez anos, portadora da Síndrome de Dravet,
encefalopatia epilética de origem genética, que apareceu quando a
menininha tinha apenas cinco meses e meio de vida.
Desde então, convulsões e febres, entre outros sintomas, são rotina na vida dessa família.
Ela já teve três paradas respiratórias, dois colapsos de segmentos do pulmão [atelectasia], onze pneumonias, 17 internações (sete na UTI, entubada, comendo por intermédio de sonda).
Só nos últimos dez dias,
a menina teve seis crises, mesmo tomando todos os medicamentos legais à
disposição: “Gardenal, Topiramato, Urbanil ou Keppra [importado]. “Eu
não posso levar minha filha ao parque porque ela tem convulsão. Em
locais com aglomeração, ela tem convulsão. E isso levando uma vida
dopada à base de remédios, que causam irritabilidade, mal-estar, moleza,
torpor”.
“Ei, policial! Maconha é medicinal!”, gritou a Marcha. Acontece
que a internet tornou acessível, ao alcance de um clique, as
descobertas sobre tudo –não haveria de ser diferente quanto à maconha.
Nos Estados Unidos, já se usa maconha medicinal para controlar as
convulsões decorrentes de quadros epiléticos. Também para reduzir os
enjôos em quimioterapias, os sintomas de glaucoma etc. etc.
Em dezembro último, o FDA (Food
and Drug Administration), a agência de regulamentação do uso de
remédios nos Estados Unidos, aprovou os estudos visando ao
desenvolvimento de uma forma medicinal de maconha para o tratamento de
epilepsias graves em crianças.
A neurologista de
Claria, no ano passado, compareceu a um congresso nos Estados Unidos
sobre a Síndrome de Dravet. Ela viu lá o caso da Charlote, do Colorado,
que estava sem andar, sem comer, de cama. Hoje, com o canabidiol, óleo
derivado da maconha, ela brinca, anda de bicicleta e leva uma vida
normal.
Difícil controlar a
angústia de um pai que vê a filha sofrendo. “Eu acho uma ignorância, uma
hipocrisia eu não poder tratar a minha filha”, disse Carvalho.
Mas também havia a bancada dos que
fumam a maconha como arma anti-stress. É o caso da turma do skate e dos
ciclo-ativistas, como Vanessa Bike, 34, promotora de vendas do
frigorífico Aurora. Segundo Vanessa, a maconha (ao contrário do álcool) a
deixa “conectada”. “Eu não fico aérea, como ficaria se tivesse bebido.
Ao mesmo tempo, não me estresso no trânsito, como vejo acontecer com um
monte de gente. Se alguém me xinga, fico numa boa. Não me dá vontade de
matar o meu agressor”, diz.
A turma do skate, como a dos
adolescentes Isabela, Anderson e Yago, da (zona leste de São Paulo), que
usa a maconha diariamente para andar “melhor”, testemunha sobre a
droga: “A maconha é uma substância útil para nos conectarmos de maneira
mais harmônica com outras pessoas e com o meio-ambiente. É por isso que
ela está tão ligada à cultura do surf e do skate. São esportes radicais
em que um simples descuido pode custar caro demais. É preciso o máximo
de atenção, desdobramento da consciência. Por isso a maconha”, dizem os
amigos.
“Que contradição! A maconha é crime e a homofobia, não!” foi
outro grito de guerra dos manifestantes em um momento em que já vários
cigarros de maconha legítima marcavam presença, sendo dichavados,
enrolados e fumados a céu aberto.
A entrada da Marcha na rua Augusta
foi apoteótica. Meninos e meninas saíam dos bares para se juntar à
passeata. Nos prédios, moradores surgiram nas varandas, acendendo seus
baseados, em sinal de apoio à Marcha. Um idoso acenava com uma revista,
na capa da qual se via, imensa, a foto característica da folha de
maconha.
Quase chegando à Praça Roosevelt, às
18h a jornalista e organizadora da Marcha, Gabriela Moncau, 24, pediu
para todos os participantes sentarem-se no chão da avenida Consolação e
guardarem um minutos de silêncio em homenagem aos mortos na “guerra às
drogas”.
Então, um imenso baseado (fake, cenográfico), carregado por 420 (sempre os números 4, 2 e zero) balões verdes, foram soltos.
No céu, o helicóptero Águia, da PM,
apressou-se em cercar os balões e o baseado. Durou um segundo e o
baseado seguiu e em sua “viagem”. Até a próxima Marcha --porque esta foi
boa demais!
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