Os direitos de Dirceu e nosso caráter
Por Paulo Moreira Leite, em seu blog:
Há momentos em que a vida política deixa de ser um conflito de ideias e projetos para se transformar numa prova de caráter.
Isso é o que acontece com a perseguição a José Dirceu na prisão.
A defesa dos direitos de Dirceu é, hoje, uma linha que define o limite
da nossa decência, ajuda a mostrar aonde se encontra a democracia e o
abuso, a tolerância diante do ataque aos direitos elementares de uma
pessoa.
Ninguém precisa estar convencido de que Dirceu é inocente sobre as
denuncias da AP 470. Nem precisa concordar com qualquer uma de suas
ideias políticas para reconhecer que ele enfrenta uma situação
inaceitável.
As questões de caráter envolvem nossos princípios e nossa formação.
Definem a capacidade de homens e mulheres para reagir diante de uma
injustiça de acordo com princípios e valores aprendidos em casa, na
escola, ao longo da vida, como explica Hanna Arendt em Origens do
Totalitarismo. São essas pessoas que, muitas vezes, ajudam a democracia a
enfrentar as tentações de uma ditadura.
Um desses homens, e nós vamos saber seu nome dentro de alguns
parágrafos, “não era herói e certamente não era um mártir. Era apenas
aquele tipo de cidadão com interesse normal pelos negócios públicos que,
na hora do perigo ( mas não um minuto antes) se ergue para defender o
país da mesma forma como cumpre seus deveres diários, sem discutir.”
A mais recente iniciativa contra os direitos de Dirceu criou um situação nova.
O Ministério Público pede uma investigação telefônica-monstro envolvendo
todas as ligações de celular - de 6 operadoras - entre a região do
presídio da Papuda, em Brasília, onde ele se encontra prisioneiro desde
16 de novembro, e uma região em torno de Salvador, na Bahia. São
milhares, quem sabe milhões de ligações que devem ser mapeadas, uma a
uma, e transcritas – em formato de texto – para exame do ministério
público em Brasília.
Você sabe qual é o motivo alegado dessa investigação: procurar rastros
de uma conversa de celular entre Dirceu e um secretário do governo de
Jaques Wagner. Detalhe: supõe-se que o telefonema, caso tenha sido
feito, teria ocorrido em 6 de janeiro. Pede-se uma investigação de todas
as conversas por um período de 16 dias.
Você sabe qual será seu efeito prático: manter a pressão sobre Dirceu e
impedir que ele possa deixar o presídio para trabalhar durante o dia –
direito que tem todas as condições legais de cumprir. Não só obteve uma
oferta de emprego, como tem parecer Psicossocial favorável e também do
Ministério Púbico.
Você pode “achar” – assim como “achamos” tantas coisas a respeito de
tantas pessoas, não é mesmo? – que ele cometeu, mesmo, essa falta
disciplinar, de natureza grave.
O fato é que desde 6 de janeiro procura-se uma prova desse diálogo e
nada. O secretário de Estado deu uma entrevista a Folha de S. Paulo,
dizendo que havia conversado com Dirceu. Mais tarde, ele se corrigiu e
desmentiu o diálogo. Também confirmou o desmentido em depoimento
oficial. Dirceu sempre negou ter mantido qualquer conversa nestas
condições.
A conta telefônica do celular do Secretário de Estado não registra
nenhuma ligação que, em tese, poderia confirmar a conversa. Uma
investigação da policia do Distrito Federal também concluiu que não há o
mais leve indício de que o diálogo tenha ocorrido.
Conforme todos os indícios disponíveis, portanto, quem mentiu foi o Secretário – não Dirceu.
Você pode continuar duvidando da inocência de Dirceu, claro. Mas não
pode aceitar que seus direitos sejam subtraídos sem que sua culpa seja
demonstrada. Mesmo na prisão, uma pessoa é inocente até que se prove o
contrário.
É verdade que, no julgamento da AP 470, o ministro Luiz Fux chegou a
dizer que cabe ao acusado provar sua inocência. Mas foi uma colocação
tão fora de qualquer princípio jurídico posterior ao iluminismo que, nos
acórdãos, a declaração foi suprimida.
O pedido para esse grampo-monstro foi feito pelo Ministério Público em
26 de fevereiro mas ficou engavetado pelo juiz Bruno Ribeiro por mais de
um mês. Quando se retirou do caso, no fim de março, Bruno enviou o
pedido a Joaquim Barbosa, a quem caberá a palavra final sobre o
semiaberto de Dirceu. Joaquim pode acolher o pedido.
Mas também pode manter Dirceu em regime fechado enquanto aguarda pelos
grampos Papuda-Bahia. Seria uma nova injustiça, mesmo para quem é
favorável a uma investigação nessa natureza e acha que toda punição a
Dirceu será pouca.
A liberdade de Dirceu não pode ser diminuída porque os responsáveis pela
sua prisão levaram um tempo absurdo– mais de um mês – para decidir se
acatavam a solicitação ou não.
Ninguém pode ficar preso indevidamente porque o Justiça está “pensando.”
Quando foi preso, em 15 de novembro, Dirceu tinha direito ao regime
semiaberto, provisoriamente. Antes que os embargos infringentes tivessem
sido julgados, havia a possiblidade de que o Supremo confirmasse a
condenação por formação de quadrilha.
Mas o STF derrubou a condenação, o que confirmou o semiaberto.
Assim, do ponto de vista de seus direitos, Dirceu perdeu quatro meses de liberdade.
Se o apreço abstrato do caro leitor pela liberdade dos indivíduos não
lhe permite avaliar o que isso significa, sugiro uma experiência
concreta.
Peça a um amigo trancar a porta de seu quarto por um dia e faça um
diário sobre o que fez e viu. Evite ligar a TV, porque ela só é
autorizada a quem tem bom comportamento – e ninguém sabe se você merece
isso. Não leia jornais nem revistas. Limite a leitura aos livros mas
apague a luz às 22 horas. Desligue o telefone, não atenda a campainha e,
se sentir fome, peça um resto de geladeira para aquecer em banho-maria.
Pode ser qualquer coisa que sobrou da véspera mas lembre-se de que,
comparado com o que se oferece na Papuda, sempre será um privilégio.
E se você achar que é inocente, e não fez nada para merecer o que está
acontecendo, só quis passar por uma experiência existencial, lembre-se:
esse pensamento só é válido para quem acredita que toda pessoa é
inocente até que se prove o contrário. Esse é o princípio que garante
nossa liberdade.
Também é o princípio que deveria definir a situação de Dirceu. Ele
passou oito anos sendo acusado como chefe de quadrilha e era este ponto –
a quadrilha – que poderia manter seu regime fechado.
Depois que a acusação de quadrilha caiu ele é chefe de que mesmo?
E aí podemos falar do personagem a que Hanna Arendt se refere. Ela está
falando de George Picquard, major do Exército francês, que teve um papel
decisivo no reestabelecimento da verdade no caso do capitão Alfred
Dreyfus, condenado em 1894 à prisão perpétua na Ilha do Diabo, na Guiana
Francesa, com bom base em provas falsas.
“Embora dotado de uma boa formação católica,” e, como Arendt sublinha
para registrar os preconceitos da época, " ‘adequada’ antipatia pelos
judeus, ele ainda não havia adotado o princípio de que o fim justifica
os meios. ” Ela recorda que “esse homem, completamente divorciado do
classicismo social e da ambição profissional, espírito simples, calmo e
politicamente desinteressado” iria mostrar que havia encontrado provas
que apontavam para outro culpado, sugerindo que o caso fosse reaberto.
Picquard acabou processado e perseguido, a ponto de enfrentar uma
condenação num tribunal militar e deixar um posto confortável em Paris
por um posto sem perspectiva na África colonial. Mas cinco anos depois
de condenado, Dreyfus acabou recebendo indulto presidencial, depois de
enfrentar um segundo julgamento – que perdeu, mais uma vez.
A campanha pela libertação de Dreyfus não passou pelo parlamento, que
rejeitou seguidos pedidos de um novo exame do caso. Foi fruto de uma
movimentação da sociedade civil, a margem dos principais partidos
políticos.
Mesmo os socialistas temiam perder votos se colocassem o assunto nos
debates eleitorais. Atribui-se uma derrota de um de seus líderes
históricos, Jean-Jaurés, hoje nome de boulevard em Paris, ao empenho a
favor de Dreyfus. Ninguém recorda o nome dos que se omitiram.
O alto comando militar, responsável pela condenação de Dreyfus e, mais
tarde, pela manutenção da farsa, alimentava a imprensa suja de Paris.
Numa avaliação que nos ajuda a entender que a realidade que hoje se vê
nos trópicos brasileiros tem muito a dever às asneiras cometidas na
capital francesa daquele tempo, Arendt analisa o mais duro dos jornais
contra Dreyfus para dizer: “direta ou indiretamente, através de seus
artigos e da intervenção pessoal de editores, mobilizou estudantes,
monarquistas, anarquistas, aventureiros e simples bandidos, e atirou-os
nas ruas.” Essa turba espancava defensores de Dreyfus na rua e por
várias vezes apedrejou as janelas de Emile Zola depois de seus artigos e
conferencias mais contundentes.
Julgado pelo Eu Acuso, Zola recebeu pena máxima. Foi um alivio, pois se
fosse absolvido “nenhum de nós sairia vivo do julgamento” recordou
Georges Clemenceau, dono do jornal que publicou o artigo, L ‘Aurore.
Em 1975, em São Paulo, o rabino Henry Sobel deu uma demonstração de
caráter semelhante. Ele sequer era o rabino principal da comunidade
paulistana. Apenas substituía o rabino principal, que se encontrava em
viagem. Norte-americano de nascimento, Sobel admirava John Kennedy e
nunca teve simpatias pelo Partido Comunista.
Mas, quando foi informado que o corpo do jornalista Vladimir Herzog
apresentava sinais de tortura, como fora percebido pelos funcionários do
cemitério judeu que o preparavam para o enterro, Sobel tomou uma
decisão de acordo com sua formação e suas convicções.
Impediu que Herzog fosse enterrado na área do cemitério reservada aos
suicidas, como seria coerente com a versão oficial para a morte do
jornalista – acompanhada até por uma fotografia forjada na cadeia – para
lhe dar a dignidade de um enterro comum. O resto é história, feita por
um cidadão tão humano, tão comum, que mais tarde seria apanhado num
pequeno e desagradável incidente num shopping em Miami, como todos nós
sabemos.
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