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Ser de esquerda é não aceitar as injustiças, sejam elas quais forem, como um fato natural. É não calar diante da violação dos Direitos Humanos, em qualquer país e em qualquer momento. É questionar determinadas leis – porque a Justiça, muitas vezes, não anda de mãos dadas com o Direito; e entre um e outro, o homem de esquerda escolhe a justiça.
É ser guiado por uma permanente capacidade de se estarrecer e, com ela e por causa dela, não se acomodar, não se vender, não se deixar manipular ou seduzir pelo poder. É escolher o caminho mais justo, mesmo que seja cansativo demais, arriscado demais, distante demais. O homem de esquerda acredita que a vida pode e deve ser melhor e é isso, no fundo, que o move. Porque o homem de esquerda sabe que não é culpa do destino ou da vontade divina que um bilhão de pessoas, segundo dados da ONU, passe fome no mundo.
É caminhar junto aos marginalizados; é repartir aquilo que se tem e até mesmo aquilo que falta, sem sacrifício e sem estardalhaço. À direita, cabe a tarefa de dar o que sobra, em forma de esmola e de assistencialismo, com barulho e holofotes. Ser de esquerda é reconhecer no outro sua própria humanidade, principalmente quando o outro for completamente diferente. Os homens e mulheres de esquerda sabem que o destino de uma pessoa não deveria ser determinado por causa da raça, do gênero ou da religião.
Ser de esquerda é não se deixar seduzir pelo consumismo; é entender, como ensinou Milton Santos, que a felicidade está ancorada nos bens infinitos. É mergulhar, com alegria e inteireza, na luta por um mundo melhor e neste mergulho não se deixar contaminar pela arrogância, pelo rancor ou pela vaidade. É manter a coerência entre a palavra e a ação. É alimentar as dúvidas, para não cair no poço escuro das respostas fáceis, das certezas cômodas e caducas. Porém, o homem de esquerda não faz da dúvida o álibi para a indiferença. Ele nunca é indiferente. Ser de esquerda é saber que este “mundo melhor e possível” não se fará de punhos cerrados nem com gritos de guerra, mas será construído no dia-a-dia, nas pequenas e grandes obras e que, muitas vezes, é preciso comprar batalhas longas e desgastantes. Ser de esquerda é, na batalha, não usar os métodos do inimigo.
Fernando Evangelista

sábado, março 07, 2015

"STF condenou Dirceu e Genoino sem apresentar uma só prova"

Eric Nepomuceno - Página/12
Eric Nepomuceno - Página/12
(*) Artigo publicado originalmente no jornal Página/12, da Argentina.

Rio de Janeiro - O mais ruidoso e pressionado julgamento da história recente da Corte máxima do Brasil está chegando ao seu final. Os condenados buscarão brechas para apelas das sentenças, enquanto juristas e analistas políticos tratam de medir as consequências do que ocorreu até aqui.

A única coisa que falta agora é o Supremo Tribunal Federal brasileiro estabelecer as penas dos condenados. Foi um julgamento atípico, que transcorreu sob a insólita pressão dos meios de comunicação, com o aplauso frenético de setores das classes médias conduzidas pela mão dos grandes grupos midiáticos e que termina sem maiores surpresas. Tal como se temia, o STF se deixou influenciar pela pressão externa e politizou um processo que deveria ser exclusivamente jurídico.

A única surpresa foi a atmosfera de grande espetáculo público criada pelos próprios integrantes da Corte. Além da transmissão das sessões ao vivo pela televisão, propiciando ao respeitável público um nutrido desfile de egos inflados, exibições de erudição jurídica e aulas de moral e bons costumes, o que se viu foi uma rajada de inovações na interpretação a aplicação de alguns pilares básicos do Direito.

Para começar, se aboliu a exigência de provas para condenar parte dos acusados. Ficou estabelecido o preocupante precedente que permite que, na hora de julgar, se aceite ilações, suposições, e que a Corte se deixe induzir pela pressão midiática, que permita que os trabalhos sejam politizados. 

Alguns dos magistrados chegaram a condenar, em seus votos, os malefícios das alianças formadas para que exista um governo de coalizão. Ou seja, mais do que julgar supostos crimes e delitos, se deram ao luxo de julgar a própria política.

Ficou estabelecido, além disso, que aos senhores juízes está permitido, na hora de emitir voto e sentença, exibir rotundas doses de sarcasmo, em comentários que mostram muito mais seus rancores e traços ideológicos do que equilíbrio e equidade.

Essas inovações surgiram com ímpeto na hora de julgar o chamado “núcleo político” do esquema de distribuição de dinheiro para cobrir gastos da campanha política de 2002, que além de eleger governadores, deputados nacionais e senadores, levou Luiz Inácio Lula da Silva e seu Partido dos Trabalhadores à presidência da República.

O caudaloso fluxo de dinheiro não declarado é uma prática velha – e por certo muito condenável – na política brasileira. Mas, ao menos até agora, era um assunto da Justiça Eleitoral.

A peça acusatória, levada ao Supremo Tribunal Federal pelo Ministério Público, assegurava que, mais do que essa velha prática, tratou-se da compra de votos de parlamentares para que fossem aprovados projetos legislativos de interesse do governo. Não houve nem há nenhuma prova minimamente concreta disso. Acusou-se o PT e seu então presidente, José Genoino, por alguns empréstimos bancários. O PT provou que os empréstimos foram registrados, de acordo com a legislação eleitoral, renegociados e, finalmente, pagos. Acusou-se José Dirceu, homem forte do partido e estrategista da vitória de Lula, de ter engendrado um esquema de compra de parlamentares. 

Um dos “argumentos” da acusação foi dizer que, como chefe da Casa Civil, ele recebia dirigentes políticos aliados do governo, como se não fosse exatamente essa sua função. Não há uma miserável prova nem de sua participação nem da existência de tal esquema.

Há, isso sim, evidências e indícios concretos de desvio de fundos públicos, principalmente do setor de comunicação e publicidade do Banco do Brasil e um intenso jogo de interesses por parte da banca que repassou fundos ao tesoureiro do PT. Mas não houve nem há uma única e solitária prova de que as duas principais figuras políticas acusadas, José Genoino e José Dirceu, tivessem participado da trama.

A última condenação de Dirceu, por formação de quadrilha – a outra foi por corrupção ativa – resultou de uma decisão dividida (seis votos a quatro), o que, ao menos em tese, lhe dá o direito de apresentar recurso contra a decisão. Na condenação por corrupção ativa, não: teve dois votos favoráveis e oito contrários.

Seja como for, as consequências políticas do julgamento ainda não se fizeram sentir. Pelo contrário: nas últimas eleições, o PT conseguiu aumentar seu caudal de votos e está a ponto de reconquistar a prefeitura de São Paulo, derrotando mais uma vez a José Serra, que, em duas ocasiões, teve seus sonhos presidenciais fulminados, a primeira por Lula em 2002 e a segunda por Dilma Rousseff em 2010.

Nem Dirceu nem Genoino deixarão de ter peso específico nas decisões do partido. Dirceu, especialmente, seguirá sendo um dirigente de forte expressão, apesar de ser brutalmente hostilizado e vilipendiado pela grande imprensa e pelas classes médias ávidas por extirpar do horizonte político o PT, Lula e a esquerda em geral.

Juridicamente, será preciso esperar para ver até que ponto as esdrúxulas inovações desse julgamento midiático, transcorrido sob pressões inéditas, criarão jurisprudência no futuro. A essa altura, a maioria dos ministros do Supremo Tribunal Federal, principalmente o relator do processo, Joaquim Barbosa, contam com o aplauso iracundo dos grandes meios de comunicação e de setores das classes médias. É preciso ver quanto tempo durará essa euforia.

Enquanto isso, a impunidade dos poderosos segue intacta no Brasil. Os métodos delituosos de financiamento das campanhas eleitorais, também. E dois veteranos combatentes das lutas populares, José Dirceu e José Genoino, que nos tempos da ditadura foram vítimas de tribunais de exceção (o primeiro foi expulso do país, o outro sofreu cinco anos de prisão e tortura), são agora vítimas de um julgamento de exceção.

Há uma assustadora diferença: antes havia uma ditadura. Agora, se vive em democracia. Todo o resto, para eles, tem sido igual, ou quase. Ao menos, desta vez, a tortura não é física.

Tradução: Marco Aurélio Weissheimer
*CartaMaior


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