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Ser de esquerda é não aceitar as injustiças, sejam elas quais forem, como um fato natural. É não calar diante da violação dos Direitos Humanos, em qualquer país e em qualquer momento. É questionar determinadas leis – porque a Justiça, muitas vezes, não anda de mãos dadas com o Direito; e entre um e outro, o homem de esquerda escolhe a justiça.
É ser guiado por uma permanente capacidade de se estarrecer e, com ela e por causa dela, não se acomodar, não se vender, não se deixar manipular ou seduzir pelo poder. É escolher o caminho mais justo, mesmo que seja cansativo demais, arriscado demais, distante demais. O homem de esquerda acredita que a vida pode e deve ser melhor e é isso, no fundo, que o move. Porque o homem de esquerda sabe que não é culpa do destino ou da vontade divina que um bilhão de pessoas, segundo dados da ONU, passe fome no mundo.
É caminhar junto aos marginalizados; é repartir aquilo que se tem e até mesmo aquilo que falta, sem sacrifício e sem estardalhaço. À direita, cabe a tarefa de dar o que sobra, em forma de esmola e de assistencialismo, com barulho e holofotes. Ser de esquerda é reconhecer no outro sua própria humanidade, principalmente quando o outro for completamente diferente. Os homens e mulheres de esquerda sabem que o destino de uma pessoa não deveria ser determinado por causa da raça, do gênero ou da religião.
Ser de esquerda é não se deixar seduzir pelo consumismo; é entender, como ensinou Milton Santos, que a felicidade está ancorada nos bens infinitos. É mergulhar, com alegria e inteireza, na luta por um mundo melhor e neste mergulho não se deixar contaminar pela arrogância, pelo rancor ou pela vaidade. É manter a coerência entre a palavra e a ação. É alimentar as dúvidas, para não cair no poço escuro das respostas fáceis, das certezas cômodas e caducas. Porém, o homem de esquerda não faz da dúvida o álibi para a indiferença. Ele nunca é indiferente. Ser de esquerda é saber que este “mundo melhor e possível” não se fará de punhos cerrados nem com gritos de guerra, mas será construído no dia-a-dia, nas pequenas e grandes obras e que, muitas vezes, é preciso comprar batalhas longas e desgastantes. Ser de esquerda é, na batalha, não usar os métodos do inimigo.
Fernando Evangelista

sexta-feira, fevereiro 04, 2011

Egito, a aposta no leopardo





Lata de gás lacrimogéneo.


Hillary Clinton declarou à imprensa que é preciso evitar a todo custo o vazio de poder no Egito, que o objetivo da Casa Branca era uma transição ordenada à democracia, à reforma social, à justiça econômica, e que Hosni Mubarak era o presidente do Egito e o que importava era o processo, a transição.

Ao contrário do que ocorreu em outra ocasião, o presidente Obama não exigiria a saída do líder que caiu em desgraça. Como não poderia ser de outro modo, as declarações da secretária de Estado refletem a concepção geopolítica que os EUA mantêm desde a Guerra dos Seis Dias, em 1967, cuja gravidade foi acentuada após o assassinato de Anwar El-Sadat, em 1981, e em seguida pela posse de seu vice-presidente, Hosni Mubarak.

Sadat se converteu em uma peça-chave para os Estados Unidos e Israel – o Egito passou para a mesma categoria – ao ser o primeiro chefe de Estado de um país árabe a reconhecer o Estado de Israel e firmar um Tratado de Paz entre os dois países, em 26 de março de 1979. As dúvidas e os rancores de Sadat e do primeiro-ministro israelense, Menájem Begin, como conseqüência de cinco guerras e que tornavam as negociações de paz intermináveis, foram rapidamente deixadas de lado quando tanto eles como o presidente Jimmy Carter, em 16 de janeiro desse ano, souberam que um aliado estratégico pró-estadunidense na região, o xá do Irã, havia sido derrotado por uma revolução popular e buscou refúgio no Egito. Com a queda do xá, nasceu a república islâmica com a direção do aiatolá Ruhollah Khomeini, que era para os Estados Unidos e para toda a "civilização americana" o "Grande Satã", o inimigo jurado do Islã.

Se a violenta derrubada do xá sacudia o solo do Oriente Médio, não eram melhores as notícias que vinham do convulsionado quintal centro-americano: em 19 de julho de 1979, a Frente Sandinista entrava em Manágua e colocava fim à ditadura de Anastasio Somoza, complicando ainda mais o quadro geopolítico norte-americano.

A partir desse momento, o delicadíssimo equilíbrio do Oriente Médio tinha no Egito a sua âncora estabilizadora, que a política exterior norte-americana se encarregou de reforçar a qualquer preço, mesmo sabendo que no reinado de Mubarak a corrupção, o narcotráfico e a lavagem de dinheiro cresciam a um ritmo que só era superado pelo processo de pauperização e exclusão social que afetavam os crescentes setores da população egípcia; e que a feroz repressão contra o menor indício de dissidência e as torturas eram coisas diárias.


Hipócritas e oportunistas 

Por isso, soam insuportavelmente hipócritas e oportunistas os apelos do presidente Obama e de sua secretária de Estado para que um regime corrupto e repressivo como poucos no mundo – o qual os EUA mantiveram e financiaram por décadas – trilhe o caminho das reformas econômicas, sociais e políticas.

Um regime para o qual Washington podia enviar prisioneiros para a tortura, sem precisar enfrentar as irritantes restrições legais, e no qual a estação da CIA no Cairo podia operar sem nenhum obstáculo sua "guerra contra o terrorismo". Um regime que ainda pode bloquear a internet e a telefonia celular, e que apenas despertou um leve protesto por parte de Washington. A reação seria a mesma se Hugo Chávez tivesse cometido tais ultrajes?


"Mubarakismo" sem Mubarak 

Ao que tudo indica, Mubarak cruzou o ponto em que não haverá retorno. O problema que se apresenta para Obama é o de construir um "mubarakismo" sem Mubarak. Isto é, garantir uma mudança por um substituto adequado à autocracia pró-EUA. Como dizia o Leopardo: "algo precisa mudar para que tudo fique como está". 
[1]

Esta foi a fórmula que Washington tentou impor meses antes da derrota do somozismo na Nicarágua, apelando para um personagem do regime, Francisco Urcuyo, presidente do Congresso Nacional, cuja primeira e praticamente última iniciativa como fugaz presidente foi solicitar à Frente Sandinista, que estava esmagando a guarda nacional somozista pelos quatro cantos do país, que depusesse as armas. Foi deposto em poucos dias e, na linguagem popular nicaragüense, o ex-presidente passou a ser lembrado como "Urcuyo, o efêmero".

A Casa Branca está tentando algo similar: pressionou Mubarak para designar um vice-presidente na esperança de não repetir o fiasco de Urcuyo. A designação não poderia ser mais inapropriada, pois caiu para o chefe dos serviços de inteligência do exército, Omar Suleiman, um homem mais refratário à abertura democrática do que o próprio Mubarak, e cujas credenciais não são precisamente as que almejam as massas que exigem democracia.


Situação revolucionária 

Quando estas ganham as ruas e atacam numerosos quartéis da odiada polícia e dos não-menos odiados espiões, informantes e organismos da inteligência estatal, Mubarak designa o chefe destes serviços para liderar as reformas democráticas. É uma piada de mau gosto e assim foi recebida pelos egípcios, que continuaram tomando as ruas convencidos de que o ciclo de Mubarak havia terminado e que precisavam exigir sua renúncia sem mais trâmites.

Na tradição do socialismo marxista, diz-se que uma situação revolucionária se constitui quando os de cima não podem dominar como antes e os de baixo já não querem ser dominados como antes. Os de cima não podem porque a política foi derrotada nas lutas de ruas e os oficiais e soldados do exército confraternizam com os manifestantes ao invés de reprimi-los. Não seria de se estranhar que alguma outra filtração, tipo Wikileaks, desvende as intensas pressões da Casa Branca para que o ancião déspota abandone o Egito o quanto antes para evitar uma reedição da tragédia de Teerã.

As alternativas que se abrem para os Estados Unidos são poucas e ruins: a) sustentar o regime atual, pagando um custo político fenomenal, não só no mundo árabe, para defender suas posições e privilégios nessa região crucial do planeta; b) uma tomada de poder por uma aliança cívico-militar onde os opositores de Mubarak estarão destinados a exercer uma gravitação cada vez maior; ou c) o pior dos pesadelos, se é produzido o temido vazio de poder e os islamitas da Irmandade Muçulmana tomam o governo de assalto.

Sob qualquer destas hipóteses as coisas já não serão como antes, pois mesmo em uma variante mais moderada a probabilidade de que um novo regime no Egito continue sendo um fiel e incondicional peão de Washington é extremamente baixo e, no melhor dos casos, altamente instável. E se o desenlace é o radicalismo islamita, a situação dos Estados Unidos e Israel na região será extremamente vulnerável, levando-se em conta o efeito dominó da crise que começou na Tunísia, seguiu para o Egito e está sendo sentida em outros importantes aliados dos EUA, como Jordânia e Iêmen, e que pode aprofundar a derrota militar norte-americana no Iraque e precipitar uma débâcle no Afeganistão.

Caso estes prognósticos sejam cumpridos, o conflito palestino-israelense iria adquirir ressonâncias inéditas, cujos ecos chegariam até os suntuosos palácios dos emirados do Golfo e da própria Arábia Saudita, mudando dramaticamente e para sempre o tabuleiro da política e da economia mundiais. 
[1] O Leopardo, romance de Giuseppe Tomasi di Lampedusa e filme de Luchino Visconti. 


[*] Diretor do PLED, Programa Latinoamericano de Educación a Distancia em Ciências Sociais, Buenos Aires, Argentina.

O original encontra-se em http://www.atilioboron.com/ e a tradução de Sandra Luiz Alves em
http://www.correiocidadania.com.br/content/view/5456/9/ 

Este artigo encontra-se em http://resistir.info/ .

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