A TV COMO FERRAMENTA DO PROJETO BURGUÊS DE HEGEMONIA PAUTADA NO HIGIENISMO.
Os programas “humorísticos” da tevê brasileira, em geral, são realizados por pessoas da elite branca do sul-sudeste do país, que se sentem muito à vontade para praticar booling contra aqueles que não se enquadrem nesse perfil étno-sócio-econômico-geográfico.
Não é raro vermos programas como Pânico, Zorra Total, A Praça É Nossa, CQC e outras porcarias do gênero ridicularizarem os traços fenotípicos, lingüísticos, a orientação sexual, entre outras marcas de individualidade, daquelas pessoas que não nasceram no seio da sociedade burguesa - nem a ele se incorporaram, seja por qual caminho tenha sido, até porque o que vale é estar dentro, não importando o caminho percorrido. Ou alguém já viu esses programas fazerem piadas com algum “empresário” que tenha enriquecido da noite para o dia por meio de fraudes fiscais ou calotes financeiros? Absolutamente não.
Alvos de piada ou de uma abordagem caricatural na tevê são apenas os nordestinos, os negros, pessoas que apresentem algum tipo de deformidade física ou déficit cognitivo ou alguma disfunção neurológica (observando-se, evidentemente, os limites de tolerância que a nossa “etiqueta” permite, e que se expressam com um “esse cara é esquisito” ou “esse cara é comédia demais”, e por aí vai). No mais das vezes, esses “caras esquisitos” ou “cômicos” são pessoas pobres e de famílias de poucos recursos, que acabam não tendo condições para tratar seus casos como fatos médicos típicos. Costumam ser casos não tratados de dislexia, gagueira, distúrbios de atenção, etc. que vão parar “na tela da tevê, no meio desse povo”, como se fossem “iguarias” da natureza humana. Mas pára por aí, claro. Afinal de contas, não pega bem fazer piada com pessoas que tenham um laudo médico que ateste uma doença mental “propriamente dita”. Esses viram tabu.
Não existem no universo televisivo. São “sujidades”, “imperfeições” do mundo real que a tevê se encarrega de “limpar” para nos proporcionar uma tele-visão mais arejada. Na tevê é assim: ou se adultera a realidade de alguns tipos (alisa o cabelo, clareia a pele, “trata” o sotaque), ou então todas essas características acabam sendo artificializadas e caricaturizadas (como ocorre, por exemplo, com personagens vindos do interior, que sempre apresentam um sotaque que não corresponde a nenhum lugar do Brasil, e uma “pureza” ou “ingenuidade” ou “candura” ou uma “tacanhice” absolutamente inexistentes na realidade. Ou com personagens oriundos das camadas mais pobres, caracterizados como ignorantes desconectados do tempo em que vivemos – sabe aquela empregada de telenovela que acha que computador morde ou então não consegue pronunciar uma palavra que tenha um encontro consonantal? Pois é... é assim que a tele-visão enxerga essas pessoas “estranhas”).
Esse emprego da estratégia de desvalorização humana em relação ao universo de pessoas cujas características não se ajustam ao perfil prototípico do burguês branco, bem sucedido financeiramente, “culto” e morador dos centros urbanos do sul-sudeste do país é mais uma maneira que a tevê encontrou para disseminar conteúdo ideológico carregado de preconceito de classe, inculcando nas pessoas valores correspondentes a esse ideário excludente, racista, eugenista, e corroborando a falácia da superioridade burguesa para, dessa forma, legitimar a dominação dessa classe sobre as demais.
De um modo geral, os apresentadores desses programas são todos brancos (vide o exemplo do CQC), o que não condiz definitivamente com a realidade étnica da sociedade brasileira. Outras vezes, quando algum negro é incorporado ao elenco desses programas, é em virtude de algum caráter que é tratado como “exótico” pelo próprio programa (vide o exemplo do Pânico, que manteve – ou mantem ainda, não sei – um co-apresentador negro que provavelmente se enquadra numa daquelas características mencionadas acima de um caso médico não abordado da maneira devida). Em suma, quando algum negro participa, não é como sujeito, mas como objeto, como alvo das piadas e chacotas que terminam sempre por desqualificá-lo e ridicularizá-lo.
Dessa maneira, com a graciosa e “bem-humorada” ajuda da tevê, o universo burguês, próprio da burguesia, seu mundinho e seus valores, acaba por impor uma ordem burguesa extensiva a todas as classes sociais. O pior dos efeitos alcançados por obra desse aparato discursivo-ideológico que propagandeia incessantemente as maravilhas de um modo de ser, pensar, agir e fazer correspondente a apenas uma parcela da sociedade como sendo comum a todos é a interiorização de uma ideologia de classe por aqueles que não pertencem a essa classe.
As pessoas precisam compreender os mecanismos desse TOTALITARISMO empreendido pela burguesia por meio de seus aparelhos de radiodifusão de ideologia. A televisão não fala em nome de todos, não representa o interesse de todos, não defende os direitos de todos, mas finge fazê-lo. A televisão fez a sua escolha de classe porque ela pertence a essa classe. Portanto, é preciso estar atento para não reproduzir irrefletidamente as opiniões e os hábitos que a tevê se propõe a propagandear, pois essas opiniões e hábitos podem ser contrários aos projetos históricos da classe social a que você pertence. É preciso que, primeiramente, cada um conheça o seu lugar no mundo para se ter uma visão de classe a respeito do mundo, e não se deixar ser comandado por uma tele-visão que mais omite do que revela sobre a vida e a nossa existência.
Em tempo 1:
A radiodifusão eletrônica é uma concessão pública. O verdadeiro dono do espectro eletromagnético por onde trafegam as ondas de rádio e tevê é o povo brasileiro. Os concessionários do direito de explorar comercialmente a radiodifusão DEVERIAM observar uma série de contrapartidas sociais que a Constituição Federal estabelece. Está lá no Capítulo V, artigos 220 a 224. Entre essas contrapartidas estão aquelas estabelecidas pelos incisos do artigo 221:
I - preferência a finalidades educativas, artísticas, culturais e informativas; II - promoção da cultura nacional e regional e estímulo à produção independente que objetive sua divulgação; III - regionalização da produção cultural, artística e jornalística, conforme percentuais estabelecidos em lei;
Além dessas contrapartidas, é natural que uma concessionária pública de radiodifusão não possa praticar atos que contrariem essa mesma Constituição nem as leis vigentes no país. Pois bem, fazer piadas de teor racista não é humor: é crime! Ridicularizar pessoas com piadas ofensivas e preconceituosas não atende a nenhuma finalidade educativa, artística, culturai e informativa. E muitos desses “humoristas”, que se julgam artistas quando nem mesmo humoristas eles conseguem ser, acham que em nome da “liberdade criativa” eles podem sim usar seres humanos para contra eles externar seu desprezo pelas diferenças. Repito aqui algo que já afirmei em outras oportunidades: expor ao ridículo seres humanos em função de alguma característica que os tornem frágeis ou vulneráveis não é humor, é covardia! É fácil apontar o dedo e rir dos marginalizados, dos que já são vítimas de outros mecanismos de inferiorização. Quero ver ter colhões para fazer piada com os que estão no seio da sociedade. Será que eles não são engraçados não? Humor pra mim é o que Molière, Martins Pena, Ernst Lubtsch, Buñuel, Chaplin faziam. Eles sim riam e nos faziam rir do que realmente tem graça (que é o quanto essa nossa "sociedade de bem" é ridícula), e não da desgraça alheia. Pra falar a verdade, eu vejo muito mais originalidade num humor de paródia, como o dos seriados Chaves e Chapolin, por exemplo, do que nessas babaquices que a TV brasileira tem feito. Por falar em paródia, as chanchadas da Atlântida eram geniais... O modo como eles desconstruiam o glamour hollywoodiano, a maneira como eles escrachavam com tudo aquilo que era levado a sério... Era muito bom. Billy Wilder tambem fez coisas memoráveis. Machado de Assis, Mário de Andrade, Flaubert e até Eça de Queiros naquilo em que as "tragédias" têm de cômico... Quer escracho maior com a sociedade burguesa do que Madame Bovary? Vamos ridicularizar o que realmente é ridículo!
Quer dizer... fonte tem. Se essa galerinha metida a besta, esses mimadinhos que se acham a última bala do pacote (e essa própria crença deles em si mesmos já me mata de rir), tivessem o mínimo interesse em correr atrás e buscar as referências bacanas, encontrariam. Mas...
Como bem definiu Martin Esslin, em “Anatomia do drama”, “o riso é uma forma de liberação de ansiedades subconscientes”, o que é bastante diferente dessa risada mecânica que esses “humorísticos” ainda conseguem arrancar de alguns.
Em tempo 2:
Em “Ordem médica e norma familiar” - livro que eu recomendo com entusiasmo - o psicanalista Jurandir Freire Costa desenha o percurso histórico dessa perspectiva higienista de mundo, que foi determinante para a consolidação da burguesia como classe dominante. Colei a seguir um pequeno trecho da introdução desse estudo porque considero que a análise empreendida pelo autor contextualiza perfeitamente bem todo esse panorama traçado acima.
A partir da terceira década do século XIX, o higienismo conseguiu impor à família uma educação física, moral, intelectual e sexual, inspirada nos preceitos sanitários da época, exterminando assim a desordem higiênica dos velhos hábitos coloniais. A ação desta pedagogia médica extravasou os limites da saúde individual. A higiene, enquanto alterava o perfil sanitário da família, modificou também sua feição social. Contribuiu, junto com outras instâncias sociais, para transformá-la na instituição conjugal e nuclear característica dos nossos tempos. Converteu, além do mais, os predicados físicos, psíquicos e sexuais de seus indivíduos em insígnias de classe social. A família nuclear e conjugal, higienicamente tratada e regulada, tornou-se no mesmo movimento sinônimo histórico de família burguesa.
A vida privada dos indivíduos foi atrelada ao destino político de uma determinada classe social, a burguesia. O corpo, o sexo e os sentimentos conjugais, parentais e filiais passaram a ser programadamente usados como instrumentos de dominação política e sinais de diferenciação social daquela classe.
A educação física defendida pelos higienistas do século XIX criou, de fato, o “corpo saudável”. Corpo robusto e harmonioso, organicamente oposto ao corpo relapso, flácido e doentio do indivíduo colonial. Mas foi este corpo que, eleito representante de uma classe e de uma raça, serviu para incentivar o racismo e os preconceitos sociais a ele ligados. Para explorar e manter explorados, em nome da “superioridade racial e social” da burguesia branca, todos os que, por suas singularidades étnicas ou pela marginalização sócio-econômica, não logravam conformar-se ao modelo anatômico construído pela Higiene.
O cuidado higiênico com o corpo fez do preconceito racial um elemento constitutivo da consciência de classe burguesa. O racismo não é um acessório ideológico, acidentalmente colado ao ethos burguês. A consciência de classe tem, na consciência da “superioridade” biológico-social do corpo, um momento indispensável à sua formação. O indivíduo de extração burguesa, desde a infância, aprende a julgar-se “superior” aos que se situam abaixo dele na escala ideológica de valores sócio-raciais. Por isso mesmo, admite com mais facilidade e, às vezes, com marcante insensibilidade a situação de inferioridade sócio-econômica a que geralmente estão submetidos os banidos da elite física: “crioulos”, “paraíbas”, “caipiras”, etc. Por isso mesmo, quando, por vezes, consegue despojar-se da ideologia política de sua classe social, continua avaliando pejorativamente o corpo, os gestos, a fala, o modo de ser e viver dos "mal-nascidos".
*Amoralnato
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