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Ser de esquerda é não aceitar as injustiças, sejam elas quais forem, como um fato natural. É não calar diante da violação dos Direitos Humanos, em qualquer país e em qualquer momento. É questionar determinadas leis – porque a Justiça, muitas vezes, não anda de mãos dadas com o Direito; e entre um e outro, o homem de esquerda escolhe a justiça.
É ser guiado por uma permanente capacidade de se estarrecer e, com ela e por causa dela, não se acomodar, não se vender, não se deixar manipular ou seduzir pelo poder. É escolher o caminho mais justo, mesmo que seja cansativo demais, arriscado demais, distante demais. O homem de esquerda acredita que a vida pode e deve ser melhor e é isso, no fundo, que o move. Porque o homem de esquerda sabe que não é culpa do destino ou da vontade divina que um bilhão de pessoas, segundo dados da ONU, passe fome no mundo.
É caminhar junto aos marginalizados; é repartir aquilo que se tem e até mesmo aquilo que falta, sem sacrifício e sem estardalhaço. À direita, cabe a tarefa de dar o que sobra, em forma de esmola e de assistencialismo, com barulho e holofotes. Ser de esquerda é reconhecer no outro sua própria humanidade, principalmente quando o outro for completamente diferente. Os homens e mulheres de esquerda sabem que o destino de uma pessoa não deveria ser determinado por causa da raça, do gênero ou da religião.
Ser de esquerda é não se deixar seduzir pelo consumismo; é entender, como ensinou Milton Santos, que a felicidade está ancorada nos bens infinitos. É mergulhar, com alegria e inteireza, na luta por um mundo melhor e neste mergulho não se deixar contaminar pela arrogância, pelo rancor ou pela vaidade. É manter a coerência entre a palavra e a ação. É alimentar as dúvidas, para não cair no poço escuro das respostas fáceis, das certezas cômodas e caducas. Porém, o homem de esquerda não faz da dúvida o álibi para a indiferença. Ele nunca é indiferente. Ser de esquerda é saber que este “mundo melhor e possível” não se fará de punhos cerrados nem com gritos de guerra, mas será construído no dia-a-dia, nas pequenas e grandes obras e que, muitas vezes, é preciso comprar batalhas longas e desgastantes. Ser de esquerda é, na batalha, não usar os métodos do inimigo.
Fernando Evangelista

domingo, março 10, 2013

às mulheres





Mulheres, 
todas vocês mulheres, 
que seguirão sendo o porque, 
a causa humilde de tudo que é grandioso, 
o nexo entre o que não existe e o que está por acontecer, 
a benção da manhã que alimenta a intensidade da noite, 
a religião dos bêbados e dos que não conseguem amar, 
origem de todas as músicas e todos os corpos, 
todas vocês mulheres,
por quem passamos, estamos e vivemos atrás,
por quem atrás depressa olhamos,
por quem passamos gel de manhã,
por quem nos fodemos trabalhando,
por quem perdemos nossa ereção, nossos bens, nossa paz, nossa alma.
todas vocês mulheres,
que levaram pedaços do meu coração,
que me tornaram um assassino cruel e virulento,
que estupraram com flores minhas partes ingênuas,
que fizeram o milagre acontecer numa cruzada de pernas, num rebite de bunda, numa mexida de cabelo, num gemido mútuo, numa dança onírica, numa ligação que nunca poderia ter terminado.
todas vocês mulheres,
que fazem parte do milagre como quintessência da vida,
que foram estupradas, apedrejadas, esquartejadas, ferradas até dizer chega,
que alimentaram os pequenos e limparam a ferida dos velhos,
que passaram creme na pele, cheiros no corpo, incenso pelo ambiente do mundo,
que penduraram esses brincos tão exclusivamente seus mulheres,
que perderam os clitóris só porque os homens morrem de medo de um clitóris,
que perderam seus homens porque a guerra é o maior veneno entre os homens,
que perderam seus filhos porque o amor maior é uma lição não sabida pelos homens,
que esperaram plácidas nos portos e portões por homens que nunca entenderam nada sobre a paciência,
todas vocês mulheres,
que manipularam a raiva dos pais violentos,
que ocultaram a verdade quando a verdade só sabia ser má,
todas vocês mulheres,
que nunca souberam ser más,
que nunca souberam ser violentas,
que sempre souberam chorar sem dor,
e que por isso puderam ser melhores na dor,
todas vocês mulheres,
que escutam a sintonia da minha alma,
o trejeito de um arremedado de poeta,
o desajuste dos meus desejos incontidos, profundos e enormes,
todas vocês mulheres,
que enlouqueceram a minha paz,
que promulgaram regras dentro de mim,
que me intoxicaram, me baniram do meu estado de ser normal,
que me crucificaram vivo por 7 dias e 7 noites,
que treparam com outros quando eu não podia cogitar que fizessem,
mas que também fizeram amor comigo, entregues à benção do tempo, do cosmo e de todos os Senhores de todas as religiões,
todas vocês mulheres,
que foram pacientes na morte,
que carregaram os túmulos de flores,
que se dedicaram dia e noite até o fim da vida aos filhos depois de uma separação,
que cortaram a cenoura para a sopa,
que esmagaram a banana para a criança que não era sua,
que esperaram os 9 meses e que esperariam 9 vidas pela mesma razão,
à todos vocês mulheres eu me presto e me submeto.
à todas vocês mulheres eu me invento e me calculo.
à todas vocês que não sei ser, ou me portar, ou me imiscuir, ou canetar,
Todas vocês mulheres,
rainhas de todos os sambas, dançarinas de boates, baianas cozinheiras de todo o Brasil, musas do folclore, divas de todas as coisas, artesãs de toda a poesia, fotógrafas, alunas, executivas, santas, putas, faxineiras, orientais do pé trucidado, tias das mercearias e porteiras de banheiro público,
todas vocês mulheres da bondade de Calcutá, da beleza de Jolie, da força de Joana, as de Atenas, as que vivem nos conventos, as que vivem sem uma casa, às índias que moram na beira do rio Passo Fundo com seus indiozinhos cheios de ranho no nariz, às avós que sabem e as que não sabem cozinhar, a todas as mulheres que vivem dentro do Chico Buarque, às que tem silicone e às que tem tetas de vaca morta, às que dançam no Bolshoi, às que trabalham comigo todos os dias, à mãe e às mães, à minha irmã e às irmãs, às cunhadas de todo o mundo, à Arendt que pensava sentindo, às Venturas que ensinam como ninguém, à Virgem Maria, às bibliotecárias e às camareiras, às Simones, às que sempre puderam nos Estados Unidos,
todas vocês mulheres,
todas vocês que ganharam e não ganharam rosas no dia oficial das mulheres,
que odeiam o dia oficial das mulheres porque não ganharam a porra da rosa oficial,
que odeiam o dia oficial das mulheres porque odeiam coisas oficiais,
que odeiam o dia oficial das mulheres e mais ainda as colegas de trabalho por terem recebido a porra da rosa oficial
que odeiam o dia oficial das mulheres porque gostam mesmo é das surpresas,
todas vocês mulheres, de estados civis que não existem, estados mentais inescrutáveis, estados instáveis por natureza e estados espirituais que não podemos saber,
todas vocês mulheres,
que não permitem que essa nem que todas as poesias tenham fim.

*DAentrehermes

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