Páginas

Ser de esquerda é não aceitar as injustiças, sejam elas quais forem, como um fato natural. É não calar diante da violação dos Direitos Humanos, em qualquer país e em qualquer momento. É questionar determinadas leis – porque a Justiça, muitas vezes, não anda de mãos dadas com o Direito; e entre um e outro, o homem de esquerda escolhe a justiça.
É ser guiado por uma permanente capacidade de se estarrecer e, com ela e por causa dela, não se acomodar, não se vender, não se deixar manipular ou seduzir pelo poder. É escolher o caminho mais justo, mesmo que seja cansativo demais, arriscado demais, distante demais. O homem de esquerda acredita que a vida pode e deve ser melhor e é isso, no fundo, que o move. Porque o homem de esquerda sabe que não é culpa do destino ou da vontade divina que um bilhão de pessoas, segundo dados da ONU, passe fome no mundo.
É caminhar junto aos marginalizados; é repartir aquilo que se tem e até mesmo aquilo que falta, sem sacrifício e sem estardalhaço. À direita, cabe a tarefa de dar o que sobra, em forma de esmola e de assistencialismo, com barulho e holofotes. Ser de esquerda é reconhecer no outro sua própria humanidade, principalmente quando o outro for completamente diferente. Os homens e mulheres de esquerda sabem que o destino de uma pessoa não deveria ser determinado por causa da raça, do gênero ou da religião.
Ser de esquerda é não se deixar seduzir pelo consumismo; é entender, como ensinou Milton Santos, que a felicidade está ancorada nos bens infinitos. É mergulhar, com alegria e inteireza, na luta por um mundo melhor e neste mergulho não se deixar contaminar pela arrogância, pelo rancor ou pela vaidade. É manter a coerência entre a palavra e a ação. É alimentar as dúvidas, para não cair no poço escuro das respostas fáceis, das certezas cômodas e caducas. Porém, o homem de esquerda não faz da dúvida o álibi para a indiferença. Ele nunca é indiferente. Ser de esquerda é saber que este “mundo melhor e possível” não se fará de punhos cerrados nem com gritos de guerra, mas será construído no dia-a-dia, nas pequenas e grandes obras e que, muitas vezes, é preciso comprar batalhas longas e desgastantes. Ser de esquerda é, na batalha, não usar os métodos do inimigo.
Fernando Evangelista

domingo, março 03, 2013

Ditadura na Europa

Juan Torres López
 Cartoon de Malagon.
Nem 24 horas se passaram desde o encerramento das urnas na Itália e Angela Merkel ditou o que é preciso continuar a fazer ali. O porta-voz do seu partido afirmou que seja qual for o governo que se forme só admitirá um caminho a seguir, o das reformas de Monti. E o seu ministro da Economia reiterou que não há mais alternativas senão as medidas que executava o presidente-banqueiro que agora foi fragorosamente derrotado nas eleições.
Não há forma mais clara de afirmar que o que disseram os cidadãos através do voto é que se estão a marimbar para aqueles que hoje em dia converteram a Europa numa ditadura de facto.
Na Europa está a desmantelar-se a democracia e é lógico que isto esteja a ocorrer. É a única maneira que as autoridades têm de garantir que se possam continuar a aplicar políticas cujo fracasso é indisfarçável e assim beneficiar uma minoria muito poderosa que vive de um modelo social desigual e injusto.
O relatório de Inverno apresentado há alguns dias pelo comissário da Economia, Olli Rehn, demonstra claramente que os resultados das políticas que se vêm impondo são totalmente distintos do que disseram que iam conseguir quando as anunciavam como nossa salvação. Tudo é ao contrário do que haviam previsto: o crescimento é menor, o desemprego aumentou, os bancos não financiam, as empresas continuam a fechar, o défice e a dívida crescem e ao invés de recuperar-se a economia europeia entra em recessão.
Os danos sociais que isto provoca aumentam em todos os países, sem excepção. Os indicadores que o Eurostat, o gabinete de estatística europeu, apresentou esta semana mostram que já quase um de cada quatro europeus (24,2%) e uns 27% dos jovens menores de 18 anos está em risco de pobreza ou exclusão social. Percentagens que são terrivelmente mais altas em alguns países da União Europeia, como a Bulgária (49,1 e 51,8%), onde as pessoas na rua acabam de derrubar o governo. E que alcançam proporções siderais quando se dão em famílias de baixos níveis de estudos. Neste caso, a percentagem de menores de 18 anos em risco de pobreza monetária no conjunto da UE é de 49,2%, de 76,2% na Chéquia ou de 78,3% na Roménia. Inclusive em países que sempre havíamos considerado a vanguarda do progresso está a começar a ser desencadeada a pobreza infantil e juvenil em famílias com baixo nível de estudos: 54,4% na Suécia, 52,5% em França ou 55,1% na Alemanha. A única coisa que avança na Europa é a concentração do rendimento e o peso dos rendimentos do capital no conjunto dos rendimentos.
E o problema maior que tudo isto está a provocar é que a deterioração económica está a deixar de ser conjuntural. Estamos a ponto de cruzar uma fronteira a partir da qual os danos, em forma de destruição de tecido empresarial, de emprego, de inovação e de capital físico, social, investigador e humano para o investimento futuro são irreversíveis. Por isso é dramático que os líderes europeus se fechem em copas perante qualquer sinal de reforma que não seja as que eles apregoam como representantes dos grandes capitais, cujos negócios ajudam e gerir quer no âmbito público como no privado através das portas giratórias que funcionam tão bem sob o seu mandato.
A Alemanha está a cometer com a Europa o mesmo erro que com ela cometeram os países europeus que a venceram na Primeira Guerra Mundial. Então, foi-lhe imposta uma política de reparações que criou o demónio que anos mais tarde incendiou todo o continente e agora os alemães emprenham-se em impor uma política de austeridade que não só é injusta e tosca como também é impossível que possa ter êxito. Mais uma vez, ateiam fogo à Europa.
As exigências alemãs para que os demais países continuem a reduzir salários e exportem cada vez mais são simplesmente estúpidas. É materialmente inviável que todos os países se especializem da mesma forma e que todos possam ter vantagens se se dedicarem a desenvolver a mesma estratégia. É um engano porque oculta que assim só se beneficiam as grandes corporações exportadoras à custa do empobrecimento de todo o mercado interno europeu. E o empenho em reduzir despesas públicas é paranóico porque o que na verdade a cada dia gera mais dívida são os juros por culpa de um banco central europeu que não o é.
O impressionante, contudo, é que não há reacção potente dos governos de países europeus que vêem como esta estratégia afunda suas economias e destroça suas sociedades. Inclusive uma grande potência como a França assume-a sem sequer refilar. A Espanha tem um peso suficiente na Europa para forçar mudanças, mas nem sequer tenta. E assim um atrás do outro, pois não parece que ao novo governo italiano se vá dar muita capacidade de manobra.
As imposições da Merkel e do capital alemão já são muito mais do que um empenho ideológico. Não vale recorrer outra vez ao santo temor alemão à inflação ou ao seu conceito pecaminoso de dívida. São as suas políticas que alentam um poder de mercado que arrasa o poder aquisitivo da imensa maioria das famílias europeia ou os que impõem um banco central que é a fonte real do incremento do défice e da dívida.
O que há por trás de tudo isto é a decisão de salvaguardar o poder financeiro acima de qualquer outra vontade e a vontade firme de saltar em estilo toureiro as preferências dos povos, e de evitar o que dizem nas urnas. Mas vamos deixar de dissimulações. Isso já conhecemos na Europa e chama-se ditadura.
28/Fevereiro/2013
*GilsonSampaio

Nenhum comentário:

Postar um comentário