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Ser de esquerda é não aceitar as injustiças, sejam elas quais forem, como um fato natural. É não calar diante da violação dos Direitos Humanos, em qualquer país e em qualquer momento. É questionar determinadas leis – porque a Justiça, muitas vezes, não anda de mãos dadas com o Direito; e entre um e outro, o homem de esquerda escolhe a justiça.
É ser guiado por uma permanente capacidade de se estarrecer e, com ela e por causa dela, não se acomodar, não se vender, não se deixar manipular ou seduzir pelo poder. É escolher o caminho mais justo, mesmo que seja cansativo demais, arriscado demais, distante demais. O homem de esquerda acredita que a vida pode e deve ser melhor e é isso, no fundo, que o move. Porque o homem de esquerda sabe que não é culpa do destino ou da vontade divina que um bilhão de pessoas, segundo dados da ONU, passe fome no mundo.
É caminhar junto aos marginalizados; é repartir aquilo que se tem e até mesmo aquilo que falta, sem sacrifício e sem estardalhaço. À direita, cabe a tarefa de dar o que sobra, em forma de esmola e de assistencialismo, com barulho e holofotes. Ser de esquerda é reconhecer no outro sua própria humanidade, principalmente quando o outro for completamente diferente. Os homens e mulheres de esquerda sabem que o destino de uma pessoa não deveria ser determinado por causa da raça, do gênero ou da religião.
Ser de esquerda é não se deixar seduzir pelo consumismo; é entender, como ensinou Milton Santos, que a felicidade está ancorada nos bens infinitos. É mergulhar, com alegria e inteireza, na luta por um mundo melhor e neste mergulho não se deixar contaminar pela arrogância, pelo rancor ou pela vaidade. É manter a coerência entre a palavra e a ação. É alimentar as dúvidas, para não cair no poço escuro das respostas fáceis, das certezas cômodas e caducas. Porém, o homem de esquerda não faz da dúvida o álibi para a indiferença. Ele nunca é indiferente. Ser de esquerda é saber que este “mundo melhor e possível” não se fará de punhos cerrados nem com gritos de guerra, mas será construído no dia-a-dia, nas pequenas e grandes obras e que, muitas vezes, é preciso comprar batalhas longas e desgastantes. Ser de esquerda é, na batalha, não usar os métodos do inimigo.
Fernando Evangelista

sexta-feira, março 08, 2013

Imagens do povo
da Venezuela ao
se despedir de Chávez

O PiG não consegue mais esconder nem nunca vai entender. Se FHC morrer, quantos pobres chorarão por ele ?, se perguntou Juan Domingo.


O Conversa Afiada reproduz artigo sempre agudo de Saul Leblon, da Carta Maior, que se acompanha de fotos impressionantes que, no Brasil, só tem um paralelo: na morte de Vargas.

Chávez e a fita métrica do conservadorismo



Quando mede o tempo histórico na América Latina, a régua conservadora irradia uma ambiguidade sugestiva.

Nas medições à esquerda, identifica extensões anacrônicas de um tempo morto. Fantasmas de um mundo que na sua métrica não existe mais.

Exceto como detrito histórico.

Entre os fenômenos jurássicos estariam lideranças ‘populistas’, a exemplo da exercida pelo falecido presidente Chávez – pranteado agora em massa por um povo a quem favoreceu um primeiro degrau de cidadania e dignidade.

Enquadram-se nas mesmas polegadas da régua arestosa Lula, Evo Morales, Correa, Cristina, Mujica e, mais recentemente, Dilma.

A mídia dominante ecoa a régua discricionária, estendendo seu preconceito às políticas de emancipação social implementadas por esses governantes.

Sintomaticamente, não adota o mesmo peso e medida quando se trata de dimensionar a natureza dos graves constrangimentos estruturais, acumulados em séculos de hegemonia conservadora na região.

Mencione-se os mais óbvios.

Uma distribuição de renda iníqua; serviços públicos indignos; concentração patrimonial monárquica; estruturas produtivas imiscíveis com demanda popular; dependência colonial asfixiante.Uma elite empresarial cuja única pátria é o lucro e a capital, Miami.

A dualidade conduz a desdobramentos singulares.

Como explicar a aderência popular de líderes e projetos que, a julgar pela narrativa dominante, levitam em sociedades intrinsecamente modernas, distorcidas apenas pela anacrônica presença de demagogos ?

Oxímoros como ‘autoritarismo democrático’ tem sido cunhados pelo jornalismo conservador.

É notável o esforço para harmonizar o inenarrável.

As veias abertas de uma América Latina que, quanto mais moderna aos olhos da elite, mais sangra pelo cotidiano de seu povo.

Um caso exclamativo é o da reforma agrária.

‘Verbete incluído no arquivo morto da história em todo o mundo’, sentencia o padrão métrico dominante.

Como tal, uma discussão sequer admitida fora do carimbo ideológico que a sepultou.

Todavia, mais de 50% dos 870 milhões de famintos existentes no mundo vivem onde menos se espera que a fome possa dar as cartas: junto à terra.

Não apenas isso.

Quatrocentos milhões de pequenos proprietários rurais do planeta tem área insuficiente para a própria sobrevivência.

Menos de dois hectares, em mpedia, calcinados pela aridez tecnológica.

Contam apenas com a força de seus braços para enfrentar , e perder, cotidianamente, a luta contra a miséria.

Os maiores bolsões de fome e de pobreza do globo estão no campo, que ainda abriga 49% da humanidade.

A metade da pobreza latino-americana vive aí.

A metade da pobreza brasileira está no Nordeste e a metade dos nordestinos mais pobres habita a área rural.

Há dezenas de milhares de famílias paupérrimas listadas no MST, dispostas a tentar um recomeço junto à terra.

O Brasil tem menos de 20% de sua demografia misturada ao espaço da agropecuária.

Mas somados os habitantes de 1.800 pequenos municípios cuja orbita gravita no entorno da terra, nunca tantos brasileiros viveram no mundo rural.

Formam hoje um contingente quase equivalente a uma Argentina.

Lateja a percepção de que algo precisa mudar na estrutura agrária do país e do mundo para que a luta contra a fome e a pobreza possa acelerar o passo.

É mais que velocidade.

Está em jogo percorrer uma travessia estrutural que o presente deve às mazelas do passado trazidas ao século 21.

Diante do complexo emaranhado de tempos históricos e desafios sociais, fica difícil dissociar o tom do editorial do Globo desta 3ª feira, sobre o ‘anacronismo da reforma agrária’, de um mero rompante de classe.

A que fez 1964.

Com o título ‘A comprovada falência da reforma agrária’, o diário da família Marinho capturou a seu favor a autocrítica do governo.

A gestão Dilma, que beneficiou o menor número de assentados desde 2003, reconheceu –finalmente– a indigência a que estão relegados boa parte dos assentamentos no país. A presidenta se comprometeu com a Contag, esta semana, a retificar esse percurso e a sua velocidade.

Foi a deixa. O Globo disparou a conclusão prevalecente em sua régua histórica.

A reforma agrária sempre figurou no Brasil como uma das pendências históricas mais indigestas ao estômago conservador.

Há 49 anos, no dia 31 de março, foi uma das agulhas mais operosas em cerzir o golpe militar.

Por mais de duas décadas, ele calaria a necessária discussão democrática das reformas de base, focadas no legado asfixiante do conservadorismo ao desenvolvimento brasileiro.

Entre elas, a estrutura de propriedade da terra.

Na ótica dos interesses que, já àquela altura, atribuíam o epíteto de ‘demagogo e populista’ aos que empunhavam essa bandeira, o debate reprimido caducou.

Com a palavra, ‘O Globo’ desta terça-feira, 5/02/2013:

“36% das 945.405 famílias assentadas (ou 339.945) sobrevivem do Bolsa Família, por terem renda abaixo do limite divisor da miséria”.

“Não se realizou o sonho da redenção social por meio da divisão de terras. Foram distribuídos 87 milhões de hectares, 10,8% do território nacional, e, mesmo assim, metade dos assentados não sobrevive sem a ajuda assistencialista do Estado”.

“Diante deste quadro, o governo age de maneira sensata ao dar prioridade à tentativa de corrigir os assentamentos existentes em vez de instalar outros”.

“Espera-se que, num segundo momento, o governo se convença de que a modernização da agricultura e a própria urbanização do país jogaram na lata de lixo da História a reforma agrária, tema de meados do século passado, de um Brasil muito diferente do de hoje”.

A síntese feita pelo editorial conservador é ardilosa.

Estampa a fotografia realista de um resgate de náufragos.

Acompanhada da legenda capciosa.

Nela, os responsáveis pelo transatlântico afundado atribuem o desastre ao predomínio de feridos, fracos e desfalecidos entre os passageiros.

Tem sido um pouco essa a tônica do jornalismo dominante ao tratar da ressurgência de agendas, lideranças e processos políicos incompatíveis com a métrica da modernidade capitalista na América Latina.

A ênfase nas dificuldades – reais – da reforma agrária tardia, perseguida em nosso tempo, segue o padrão de menosprezo e veto.

E evoca a pergunta do poema de Drummond diante da pele estendida no chão:

‘O que sei do tapir senão a sua derrota?’

A ditadura brasileira sustentada por veículos que hoje destinam a reforma agrária ao lixo da história promoveu uma das diásporas rurais mais fulminantes do século 20.

Aquilo que se convencionou chamar de ‘modernização conservadora do campo’ cometeu no Brasil, no espaço pouco superior a duas décadas, uma transição rural/urbana que países como os EUA demandaram um século para completar.

Mais de 30 milhões de pobres do campo foram empurrados para periferias conflagradas das grandes metrópoles, entre os anos 60 e 80. Um exército de reserva pronto para o uso e o abuso do projeto de modernidade da elite.

Cinturões urbanos sem cidadania explodiram por todo país.

A grande produção capitalizada, mecanizada e subsidiada –em níveis de deixar corado o orçamento atual da reforma agrária e da agricutura familiar– deu conta de suprir a demanda interna por alimentos. Fez do Brasil um dos maiores exportadores agrícolas do mundo.

A um custo nem sempre relacionado.

O mais paradoxal deles, a fome.

A fome urbana e rural espraiou-se durante décadas abafada e esquecida pelo noticiário econômico e político; e só mitigada com a extensão do Bolsa Família a mais de 50 milhões de brasileiros na atualidade.

Não por acaso o PT chegou ao governo, em 2003, com a bandeira do Fome Zero.

Execrada, recorde-se, pelo jornalismo dominante.

Ainda hoje, ventríloquos resistem em admitir a existência da fome no país.

Talvez por ser um dos produtos mais representativos do capitalismo agalopado que ajudaram a implantar a partir de 64.

Por certo, a reforma agrária adequada ao século 21 ainda não foi decifrada pelas forças e lideranças progressistas que se debruçam sobre o tema.

Reside aqui, talvez,uma das suas grandes fragilidades.

Hesita-se em admitir a necessidade de um aggiornamento na forma e no conteúdo dessa agenda em nosso tempo.

Uma das chaves da atualização certamente passa pelo tema ambiental.

O governo ensaiou a resposta nessa direção com os projetos de assentamentos agroflorestais.

Mas sem atribuir-lhes a centralidade de uma diretriz estratégica.

A questão agrária e a urgência climática têm sido uniformemente negligenciadas, ademais, no debate estratégico da frente progressista que apoia o governo, dentro e fora do PT.

Talvez não seja um mero acaso.

Talvez sejam agendas gêmeas, indecifráveis em separado no mundo atual.

Uma, remanescente do legados das elites do século 19; a outra, contemporânea da exacerbação capitalista em nossos dias.

Juntas, entre outras, justificam a presença vigorosa de lideranças progressistas, e de processos revolucionários que, a exemplo de Chávez e do chavismo, não cabem na fita métrica conservadora.

A comoção popular que tomou conta da Venezuela nos últimos dias questiona a mídia e dá ao líder bolivariano a dimensão política transformadora que o conservadorismo sempre lhe negou.

As imagens de um povo que irrompe para a história em luto vermelho hipnotizam o mundo e falam mais que mil palavras.

Sobretudo, dão voz a um sentimento e a um processo tortuoso, difícil, de luta por direitos e emancipação que o jornalismo dominante sempre ocultou e negou.

Agora não consegue mais esconder.

Nem explicar.












 *PHA

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