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Ser de esquerda é não aceitar as injustiças, sejam elas quais forem, como um fato natural. É não calar diante da violação dos Direitos Humanos, em qualquer país e em qualquer momento. É questionar determinadas leis – porque a Justiça, muitas vezes, não anda de mãos dadas com o Direito; e entre um e outro, o homem de esquerda escolhe a justiça.
É ser guiado por uma permanente capacidade de se estarrecer e, com ela e por causa dela, não se acomodar, não se vender, não se deixar manipular ou seduzir pelo poder. É escolher o caminho mais justo, mesmo que seja cansativo demais, arriscado demais, distante demais. O homem de esquerda acredita que a vida pode e deve ser melhor e é isso, no fundo, que o move. Porque o homem de esquerda sabe que não é culpa do destino ou da vontade divina que um bilhão de pessoas, segundo dados da ONU, passe fome no mundo.
É caminhar junto aos marginalizados; é repartir aquilo que se tem e até mesmo aquilo que falta, sem sacrifício e sem estardalhaço. À direita, cabe a tarefa de dar o que sobra, em forma de esmola e de assistencialismo, com barulho e holofotes. Ser de esquerda é reconhecer no outro sua própria humanidade, principalmente quando o outro for completamente diferente. Os homens e mulheres de esquerda sabem que o destino de uma pessoa não deveria ser determinado por causa da raça, do gênero ou da religião.
Ser de esquerda é não se deixar seduzir pelo consumismo; é entender, como ensinou Milton Santos, que a felicidade está ancorada nos bens infinitos. É mergulhar, com alegria e inteireza, na luta por um mundo melhor e neste mergulho não se deixar contaminar pela arrogância, pelo rancor ou pela vaidade. É manter a coerência entre a palavra e a ação. É alimentar as dúvidas, para não cair no poço escuro das respostas fáceis, das certezas cômodas e caducas. Porém, o homem de esquerda não faz da dúvida o álibi para a indiferença. Ele nunca é indiferente. Ser de esquerda é saber que este “mundo melhor e possível” não se fará de punhos cerrados nem com gritos de guerra, mas será construído no dia-a-dia, nas pequenas e grandes obras e que, muitas vezes, é preciso comprar batalhas longas e desgastantes. Ser de esquerda é, na batalha, não usar os métodos do inimigo.
Fernando Evangelista

sábado, setembro 26, 2015

As limitações (in)compreensíveis do STF no assunto drogas



As limitações (in)compreensíveis do STF no assunto drogas

Gerivaldo Neiva *

Estamos todos acompanhando com atenção o julgamento do Recurso Extraordinário 635.659, no Supremo Tribunal Federal (STF), convertido em Repercussão Geral pelo plenário, que tem como Relator o Ministro Gilmar Mendes, cujo objeto é a declaração de inconstitucionalidade do artigo 28, da lei nº 11.343/06, a lei de drogas.
A peça inicial do RE foi subscrita pelo Defensor Público de São Paulo Leandro de Castro Gomes e pelo estagiário Marcelo de Araújo Generoso, e o pedido é objetivo e claro com relação à inconstitucionalidade do artigo 28:

Vejamos:
Posto isso, pugna o recorrente pelo conhecimento e provimento deste recurso extraordinário, o que implicará no reconhecimento da violação do direito à intimidade e vida privada pela decisão impugnada, com a declaração de inconstitucionalidade do art. 28 da Lei 11.343/06, com a consequente reforma do acórdão que manteve o teor da sentença condenatória, sendo o recorrente absolvido nos termos do art. 386, III do CPP, por atipicidade da conduta.

Sendo assim, é de se perguntar: por que se noticia e se discute acerca da descriminalização do uso de maconha, inclusive por Ministros que já votaram e outros que ainda vão votar, enquanto o pedido constante no RE diz respeito à inconstitucionalidade do artigo 28 da lei de drogas?
Não se quer dizer com isso que o assunto da descriminalização não seja importante, mas o debate acerca da constitucionalidade do referido artigo é muito mais amplo e importante para o ordenamento e, principalmente, para ordem constitucional.
Ora, uma coisa é o STF reconhecer que o legislador não pode interferir nos direitos fundamentais assegurados na Constituição, a exemplo da intimidade e vida privada. Neste caso, a constituição ficaria muito mais satisfeita e de bem com o STF. E é isto que se pede no RE e é isto que quer o usuário de qualquer tipo de droga: a garantia da inviolabilidade de sua vida privada e de sua intimidade como significado da solidificação da democracia neste país e do respeito à constituição.  
Outra coisa, bem diferente, é o STF reconhecer, como se fora um pai bondoso e compreensivo, que a pessoa pode usar apenas um determinado tipo de droga (no caso, a maconha), pois as demais podem lhe causar problemas de saúde ou danos à ordem pública. Neste sentido, os discursos de alguns ministros do STF têm se mostrado distantes do pedido do RE e, pior do que isso, distante da Constituição.
O que suas excelências, os ministros do STF, precisam entender é que estão perdendo um tempo enorme discutindo sobre drogas e trazendo o debate para um campo que não lhe pertence, enquanto deveriam estar discutindo sobre princípios e garantias constitucionais. Pior do que isso, vê-se claramente que alguns se utilizam de teses sem comprovação ou do senso comum para tratar de assuntos que não dominam e nem tem a obrigação de dominar. Tratam de assuntos muito mais relacionados com o campo da medicina e neurociência, por exemplo, como se o uso de algum tipo de substância considerada “droga” tivesse alguma relação com a lei ou com o Direito.
Como tenho dito, para espanto de muitos mas em perfeita sintonia com a constituição, a única possibilidade de participação do Estado, seja através de leis ou do sistema de justiça, na vida das pessoas que decidem usar algum tipo de droga, seria para garantir este direito em face da violência policial ou de qualquer outro aparato repressivo do próprio Estado. Fora disso, a Constituição continuará clamando por seu cumprimento e esperando que os Ministros do STF deixem de lado assuntos que não lhe dizem respeito e respondam com urgência: finalmente, o artigo 28 da lei 11.343/06 é ou não inconstitucional por ferir as garantias constitucionais da intimidade e vida privada?
Evidente que a resposta não pode ser outra: o artigo 28 é claramente inconstitucional. A consequência desse reconhecimento implicará, certamente, no primeiro momento, em grande debate hermenêutico por juízes e tribunais acerca do alcance da decisão e da interpretação da lei 11.343/06 após o expurgo do artigo 28. O que se delineia no STF, (in)compreensivelmente, no entanto, é condução do debate para os limites da descriminalização do uso de maconha, discutindo o que não foi requerido e podendo a emenda sair bem pior do que o soneto, ou seja, criar uma situação insolúvel para determinadas situações de apreensão de usuários com maconha e outras drogas, por exemplo, e mantendo intacta ou fortalecida a política de “guerra às drogas” e a constituição flagrantemente violada. Juízo, senhores Ministros!

* Juiz de Direito (Ba), membro da Associação Juízes para a Democracia (AJD) e Porta-Voz no Brasil do movimento Law Enforcement Against Prohibition (Leap-Brasil).

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