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Ser de esquerda é não aceitar as injustiças, sejam elas quais forem, como um fato natural. É não calar diante da violação dos Direitos Humanos, em qualquer país e em qualquer momento. É questionar determinadas leis – porque a Justiça, muitas vezes, não anda de mãos dadas com o Direito; e entre um e outro, o homem de esquerda escolhe a justiça.
É ser guiado por uma permanente capacidade de se estarrecer e, com ela e por causa dela, não se acomodar, não se vender, não se deixar manipular ou seduzir pelo poder. É escolher o caminho mais justo, mesmo que seja cansativo demais, arriscado demais, distante demais. O homem de esquerda acredita que a vida pode e deve ser melhor e é isso, no fundo, que o move. Porque o homem de esquerda sabe que não é culpa do destino ou da vontade divina que um bilhão de pessoas, segundo dados da ONU, passe fome no mundo.
É caminhar junto aos marginalizados; é repartir aquilo que se tem e até mesmo aquilo que falta, sem sacrifício e sem estardalhaço. À direita, cabe a tarefa de dar o que sobra, em forma de esmola e de assistencialismo, com barulho e holofotes. Ser de esquerda é reconhecer no outro sua própria humanidade, principalmente quando o outro for completamente diferente. Os homens e mulheres de esquerda sabem que o destino de uma pessoa não deveria ser determinado por causa da raça, do gênero ou da religião.
Ser de esquerda é não se deixar seduzir pelo consumismo; é entender, como ensinou Milton Santos, que a felicidade está ancorada nos bens infinitos. É mergulhar, com alegria e inteireza, na luta por um mundo melhor e neste mergulho não se deixar contaminar pela arrogância, pelo rancor ou pela vaidade. É manter a coerência entre a palavra e a ação. É alimentar as dúvidas, para não cair no poço escuro das respostas fáceis, das certezas cômodas e caducas. Porém, o homem de esquerda não faz da dúvida o álibi para a indiferença. Ele nunca é indiferente. Ser de esquerda é saber que este “mundo melhor e possível” não se fará de punhos cerrados nem com gritos de guerra, mas será construído no dia-a-dia, nas pequenas e grandes obras e que, muitas vezes, é preciso comprar batalhas longas e desgastantes. Ser de esquerda é, na batalha, não usar os métodos do inimigo.
Fernando Evangelista

sábado, setembro 26, 2015


Dez anos depois, um livro que desnuda o “mensalão”

Mensalao_Livro_Joao_Haas
Tereza Cruvinel em 7/6/2015
Na passagem dos dez anos do estouro da denúncia que resultou no escândalo do “mensalão”, um livro revisita em minúcias todo o processo e expõe as verdades, inverdades e meias-verdades distorcidas que proporcionaram ao país “o maior escândalo de todos os tempos”. Trata-se de O verdadeiro processo do mensalão, do advogado João Francisco Haas, que a Editora Verbena está lançando. A Verbena, dirigida pelo sociólogo Benicio Schmidt, é uma editora que, como ele diz, “defende o direito das pessoas de terem direito à defesa”.
O escândalo que partiu a história política brasileira recente não terminou com a condenação dos réus da Ação Penal 470, nem terminará com a extinção das penas. Este é um processo que continua, que se desdobra em outros “escândalos” e se vincula a um processo novo nas democracias, o de criminalizar as forças políticas indesejadas, em vez de removê-las por atos de força, como no passado, no tempo dos golpes de estado à base de tanques. Na base de sua construção está a violação do princípio da presunção da inocência, que dá lugar à condenação prévia, ao convencimento da opinião pública antes da manifestação dos juízes.
Em seu prefácio ao livro, a professora Maria Luzia Quaresma Tonelli, doutora em filosofia pela USP com pesquisa sobre “Judicialização da Política e Soberania Popular”, resume o impacto do “mensalão” sobre os nossos dias e os que virão. “Vigora no país, desde a denúncia do ‘mensalão’, o princípio da presunção da culpa, nunca aplicado aos partidos de oposição ao PT. Mesmo que na CPMI dos Correios o ex-tesoureiro do PT, Delúbio Soares, tivesse admitido que o pagamento aos políticos dos partidos que formaram a coligação para eleger Lulaera dinheiro de campanha não contabilizado, ou seja, o conhecido caixa 2, que configura infração, mas não é crime, vigorou para sempre a tese do ‘mensalão’ como pagamento mensal aos políticos da base aliada através de desvio de dinheiro público”.
Sem nunca ter conseguido oferecer sua própria narrativa do “mensalão”, que implicaria reconhecer erros mas demonstrando que foram outros, e não os que fundamentaram a acusação, o PT segue como alvo da cruzada moralista, que agora não se volta mais contra seus dirigentes, mas contra o partido. A palavra de ordem dos protestos recentes foi “fora PT”. Não só para o partido, mas também para todos que têm compromisso com a verdade e enxergam a sofisticada cultura da criminalização política que vivemos, são importantes os esforços de João Francisco Haas para contrapor-se à narrativa predominante. Ainda que apenas no futuro elas venham a fazer sentido.
Seu livro trata de desmistificar, com argumentos e provas, os principais postulados da denúncia do Ministério Público acolhida pelo STF e que fundamentaram a narrativa dominante: a de que para garantir a maioria parlamentar o governo do PT comprou deputados com dinheiro desviado dos cofres públicos.
Dedica maior esforço a desconstruir, com bases em documentos – alguns talvez nunca examinados pelos ministros entre os mais de 250 mil que compuseram o processo da Ação Penal 470 –, o pilar central da acusação de Joaquim Barbosa, o de que foram desviados R$78,3 milhões do Banco do Brasil para uma agência de Marcos Valério, a DNA, para financiar o pagamento de mensalões a deputados. Demonstra exaustivamente que os recursos, para começar, eram privados. Pertenciam ao fundo Visanet e eram destinados aos bancos para financia a publicidade de seus cartões de bandeira Visa. Com sua cota, o Banco do Brasil contratou tais serviços à agência DNA, de Marcos Valério. Haas reúne uma coleção de provas de serviços executados, algumas já apresentadas, também em vão, pela revista Retrato do Brasil. A lista dos 99 prestadores de serviço é encabeçada pela TV Globo, que recebeu R$3,39 milhões, seguida de outros fornecedores. É preciso acompanhar toda a exaustiva demonstração do autor para compreender os detalhes da intrincada narrativa que Barbosa, como relator, resumiu para os ministros do STF como sendo apenas uma grosseira transferência de recursos sem contrapartida para financiar a corrupção de deputados.
Diz o autor: “Mais uma vez é aqui provado que o valor de R$73.851.356,18 foi devidamente usado em pagamentos de promoções dos cartões Ourocard Visa e, portanto, não foi desviado […]. No entanto, os ministros condenaram os réus a vários anos de prisão, cumulados com elevadas multas, por um crime que não existiu. Por outro lado, não existe lei que comine de ilícito penal antecipações ou adiantamentos de valores, mormente quando provado que os serviços foram prestados”. Sim, porque houve antecipações de grande vulto, certamente para fazer face às demandas financeiras que eram feitas a Marcos Valério, a quem de certa forma Delúbio terceirizou a tesouraria do PT. Importante, porém, era verificar se houve ou não execução de serviços. Como diz Haas, pagar adiantado não é crime.
Com a mesma pertinácia apurativa, Hass revisita o caso do Bônus de Volume, ou BV – recursos de R$2,9 milhões que emissoras de televisão devolveram à agência DNA. Entenderam os ministros que estes recursos também foram criminosamente apropriados pelas agências de Valério. Todo o mundo publicitário sabe que o famoso BV é uma bonificação das emissoras à agência de publicidade, mas os ministros não se deram ao trabalho de investigar isso. Haas aponta quatro documentos fundamentais para a demonstração que NUNCAforam examinados pelo STF.
Exaure também a questão dos empréstimos do Banco Rural, para demonstrar que existiram e até foram pagos pelo PT. E como advogado, ataca as falhas propriamente jurídicas, como a negação do duplo grau de jurisdição aos que não tinham direito ao foro privilegiado, mas foram julgados pelo STF. Depois do “mensalão”, entretanto, como agora mesmo na Lava-Jato, quem não tem direito a foro privilegiado (cargos públicos e eletivos) está sendo julgado pela justiça comum. Como os empreiteiros, que estão na Lava-Jato como os dirigentes do Banco Rural e das agências de publicidade para o “mensalão”. Ou os réus do mensalão tucano, nunca julgado até hoje.
O “mensalão” passou e hoje há quem diga que fez bem ao pais. Fez mal, muito mal, porque enfraqueceu a crença na democracia representativa e inaugurou a era da presunção da culpa e fortaleceu a tática da criação do inimigo interno. Este é o caminho contemporâneo para justificar exceções dentro da democracia. Como exceções? Como a do julgamento da Ação Penal 470. Algumas garantias são feridas com a justificativa de que é preciso combater o inimigo interno, como ensina o jurista Pedro Serrano, com seus estudos sobre os estados de exceção dentro dos estados democráticos de direito. Trata-se de uma construção muito sofisticada para ser alcançada pelo senso comum. Por isso talvez sejam inglórios, no presente, esforços como o de João Francisco Haas. Mas eles farão sentido para a escritura da História, que não é um carro alegre, pelo contrário, mas depois dos sacolejos, costuma colocar as abóboras no devido lugar.
Todos que já têm convicção firmada sobre o “mensalão” devem lê-lo sem preconceito. Modificando ou não seus pontos de vista ganharão mais informações. Quem tem dúvidas, mais razões tem para conhecer este trabalho, escrito certamente só por apreço à verdade pois esta não é uma matéria que garante sucesso de livraria e de venda.
*Limpinhoecheiroso

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