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Ser de esquerda é não aceitar as injustiças, sejam elas quais forem, como um fato natural. É não calar diante da violação dos Direitos Humanos, em qualquer país e em qualquer momento. É questionar determinadas leis – porque a Justiça, muitas vezes, não anda de mãos dadas com o Direito; e entre um e outro, o homem de esquerda escolhe a justiça.
É ser guiado por uma permanente capacidade de se estarrecer e, com ela e por causa dela, não se acomodar, não se vender, não se deixar manipular ou seduzir pelo poder. É escolher o caminho mais justo, mesmo que seja cansativo demais, arriscado demais, distante demais. O homem de esquerda acredita que a vida pode e deve ser melhor e é isso, no fundo, que o move. Porque o homem de esquerda sabe que não é culpa do destino ou da vontade divina que um bilhão de pessoas, segundo dados da ONU, passe fome no mundo.
É caminhar junto aos marginalizados; é repartir aquilo que se tem e até mesmo aquilo que falta, sem sacrifício e sem estardalhaço. À direita, cabe a tarefa de dar o que sobra, em forma de esmola e de assistencialismo, com barulho e holofotes. Ser de esquerda é reconhecer no outro sua própria humanidade, principalmente quando o outro for completamente diferente. Os homens e mulheres de esquerda sabem que o destino de uma pessoa não deveria ser determinado por causa da raça, do gênero ou da religião.
Ser de esquerda é não se deixar seduzir pelo consumismo; é entender, como ensinou Milton Santos, que a felicidade está ancorada nos bens infinitos. É mergulhar, com alegria e inteireza, na luta por um mundo melhor e neste mergulho não se deixar contaminar pela arrogância, pelo rancor ou pela vaidade. É manter a coerência entre a palavra e a ação. É alimentar as dúvidas, para não cair no poço escuro das respostas fáceis, das certezas cômodas e caducas. Porém, o homem de esquerda não faz da dúvida o álibi para a indiferença. Ele nunca é indiferente. Ser de esquerda é saber que este “mundo melhor e possível” não se fará de punhos cerrados nem com gritos de guerra, mas será construído no dia-a-dia, nas pequenas e grandes obras e que, muitas vezes, é preciso comprar batalhas longas e desgastantes. Ser de esquerda é, na batalha, não usar os métodos do inimigo.
Fernando Evangelista

sexta-feira, janeiro 04, 2013

É justo perguntar aos nossos botões por que um país tão favorecido pela natureza não atingiu o grau de desenvolvimento que lhe compete. E a resposta é inescapável: a casa-grande ficou de pé e conseguiu, sem maiores esforços, a bem da verdade, manter a Nação atada ao seu próprio tempo de prepotência. “Eles querem um país de 20 milhões de habitantes e uma democracia sem povo”, dizia Raymundo Faoro.


Dilma e o destino

A presidenta vai enfrentar um ano difícil, mas tem a
oportunidade de uma mudança histórica para o  futuro do País.
Foto: Alfredo Estrella/AFP
Há situações que me causam alguma perplexidade. Durante o governo Lula o empresariado queixava-se dos juros escorchantes, com exceção dos banqueiros, está claro. De sua alegria cuidava o presidente do BC, Henrique Meirelles. Em compensação, o vice-presidente da República, o inesquecível e digníssimo José Alencar, defendia com ardor a demanda dos seus pares.
Agora o governo Dilma abaixa os juros, e todos se queixam, em perfeito uníssono. Busco uma explicação, embora me tente recorrer a um dos grandes escritores do absurdo, movido pela convicção de que somente eles seriam capazes de explicar o Brasil. Este é um país que consegue viver contradições abissais, a começar pelo seguinte fato: atravessamos no mesmo instante épocas diferentes. A modernidade tecnológica e a Idade Média política e social.
No caso dos juros, os lances mais recentes do governo Dilma revelaram outro fato bastante significativo: muitos brasileiros que se dizem empresários são, de verdade, apenas e tão somente especuladores. Contaminados pelo vírus do neoliberalismo, acertaram sua irredutível preferência pela renda no confronto com a produção, e a baixa dos juros os atinge na parte mais sensível do corpo humano, ou seja, o bolso, como disse há muito tempo o professor Delfim Netto.
Seria preciso assumir o autêntico papel do empresário e, em vez de acompanhar os movimentos das bolsas e das oligarquias financeiras, trabalhar para produzir e enfrentar a concorrência e riscos variados como, creio eu, vaticinava Adam Smith. Os próprios banqueiros perdem benesses e têm de arregaçar as mangas para voltar às tarefas da Banca di San Giorgio.
O governo Dilma dá um passo adiante em relação àquele que o precedeu. Mexe com os interesses do poder real, conforme a opinião de analistas atilados. Ousa o que Lula não ousou. E o balanço da primeira metade do seu mandato há de registrar esse avanço em primeiro lugar.
É justo perguntar aos nossos botões por que um país tão favorecido pela natureza não atingiu o grau de desenvolvimento que lhe compete. E a resposta é inescapável: a casa-grande ficou de pé e conseguiu, sem maiores esforços, a bem da verdade, manter a Nação atada ao seu próprio tempo de prepotência. “Eles querem um país de 20 milhões de habitantes e uma democracia sem povo”, dizia Raymundo Faoro.
Poder absoluto de um lado, submissão do outro. Getúlio Vargas, eleito democraticamente em 1950, tentou enfrentar a casa-grande e morreu suicidado. O novo desafio demorou 48 anos e começou com a eleição de Lula, início de um capítulo inédito da história, este por ora a mostrar-se duradouro. Como se deu com Getúlio, mas em circunstâncias diferentes, o povo identificou-se com seu líder. No entanto, ao contrário de Getúlio, Lula é seu povo, e chegou depois de uma ditadura de 21 anos imposta pela casa-grande e de uma fase da chamada “redemocratização”, na prática voltada à manutenção do poder real e dos seus privilégios medievais.
Dilma, nesses seus últimos dois anos de mandato, deu continuidade à obra do antecessor sem deixar de conferir marca pessoal ao desempenho. De saída, livrou-se de ministros incômodos, como o exorbitante “operador” Antonio Palocci, ou Nelson Jobim, atucanado militarista. Prosseguiu pelos caminhos traçados por Lula na política social e exterior e foi recebida mundo afora como digna sucessora do “cara”. Lança, enfim, as bases de uma política econômica afinada com os objetivos de um governo social-democrático habilitado à contemporaneidade do mundo.
Janus bifronte mostra o cenho franzido na face que encara o passado, enxerga um 2012 difícil, de desenvolvimento econômico medíocre, abalado por uma crise mundial muito antes que brasileira. Não está desanuviado o rosto que olha para o futuro. O ministro Mantega promete em 2013 um crescimento de 4%, ou pouco mais, índice excelente nas circunstâncias. Não me arrisco a analisar a promessa. As dificuldades para Dilma se espraiam bem além da situação econômica, a despeito das influências que esta exercerá em outros quadrantes.
A “Operação 2014”, desencadeada pela mídia contra Lula e contra o governo não arrefecerá certamente na perspectiva do pleito do ano próximo. De certa maneira, a campanha eleitoral já partiu e definiu seus temas recorrentes. Sim, os tempos mudaram e os porta-vozes do poder real não alcançam a maioria da Nação. Sobram, porém, os problemas criados dentro do PT, da base governista e até do governo. Semeados inclusive pelo Supremo Tribunal Federal, lunaticamente inclinado a subverter as regras basilares da democracia e a agredir a Constituição. Será que o ministro da Justiça tem mesmo de resignar-se diante de tanto descalabro?
Assustam, sejamos claros, um STF e um procurador-geral da República claramente engajados na Operação 2014. Para seu próprio bem, cabe ao governo uma reação à altura, também em outra frente, para reestruturar o Partido dos Trabalhadores, hoje dividido, depauperado e em estado de confusão. Neste campo, a intervenção do fundador é indispensável. Lula é o líder em condições de conduzir o partido no retorno ao passado, para reencontrar aquela agremiação que o sustentou por três eleições e enfim o levou à Presidência em 2002.
Quanto à base governista, os problemas parecem insolúveis. Governar exige alianças de ocasião e as melhores intenções acabam por lastrear o caminho do inferno. Há parceiros confiáveis e outros que veem na carreira política a escada da vantagem pessoal. Há quem sugira uma ação para buscar o favor do empresariado. Talvez aqui a tarefa seja menos complicada do que a tentativa de formular planos comuns com, digamos, o PMDB do vice-presidente Michel Temer e do senador José Sarney, ou com o PDT de Miro Teixeira e outros do mesmo jaez.
Permito-me, de todo modo, como se daria a aproximação ao empresariado descontente com a política econômica. Por meio de um seminário sobre o capitalismo de Adam Smith e John Maynard Keynes? Mesmo assim, tentativas menos ingênuas poderiam ser experimentadas, com algum êxito, quem sabe.
Pego-me a olhar para os colegas da redação, dobrados sobre seus computadores, intérpretes da modernidade, enquanto eu batuco na minha Olivetti Linea 88. Sou francamente arcaico, mas temo que o computador me engula como fez e faz com tantos outros. Não escapo à sina, também eu mereço Ionesco, ou Beckett. Certo é, sem qualquer parentesco com o absurdo, que às vezes o bonde da história passa pela porta de casa. Não da minha, é óbvio. Falo de Dilma Rousseff. Sinto nela a crença, a energia, a determinação, a capacidade e o porte dos escolhidos do destino.
Mino Carta
No CartaCapital

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