Dilma e o destino
A presidenta vai enfrentar um ano difícil, mas tem a oportunidade de uma mudança histórica para o futuro do País. Foto: Alfredo Estrella/AFP |
Há situações que me causam alguma perplexidade. Durante o governo Lula o
empresariado queixava-se dos juros escorchantes, com exceção dos
banqueiros, está claro. De sua alegria cuidava o presidente do BC,
Henrique Meirelles. Em compensação, o vice-presidente da República, o
inesquecível e digníssimo José Alencar, defendia com ardor a demanda dos
seus pares.
Agora o governo Dilma abaixa os juros, e todos se queixam, em perfeito
uníssono. Busco uma explicação, embora me tente recorrer a um dos
grandes escritores do absurdo, movido pela convicção de que somente eles
seriam capazes de explicar o Brasil. Este é um país que consegue viver
contradições abissais, a começar pelo seguinte fato: atravessamos no
mesmo instante épocas diferentes. A modernidade tecnológica e a Idade
Média política e social.
No caso dos juros, os lances mais recentes do governo Dilma revelaram
outro fato bastante significativo: muitos brasileiros que se dizem
empresários são, de verdade, apenas e tão somente especuladores.
Contaminados pelo vírus do neoliberalismo, acertaram sua irredutível
preferência pela renda no confronto com a produção, e a baixa dos juros
os atinge na parte mais sensível do corpo humano, ou seja, o bolso, como
disse há muito tempo o professor Delfim Netto.
Seria preciso assumir o autêntico papel do empresário e, em vez de
acompanhar os movimentos das bolsas e das oligarquias financeiras,
trabalhar para produzir e enfrentar a concorrência e riscos variados
como, creio eu, vaticinava Adam Smith. Os próprios banqueiros perdem
benesses e têm de arregaçar as mangas para voltar às tarefas da Banca di
San Giorgio.
O governo Dilma dá um passo adiante em relação àquele que o precedeu.
Mexe com os interesses do poder real, conforme a opinião de analistas
atilados. Ousa o que Lula não ousou. E o balanço da primeira metade do
seu mandato há de registrar esse avanço em primeiro lugar.
É justo perguntar aos nossos botões por que um país tão favorecido pela
natureza não atingiu o grau de desenvolvimento que lhe compete. E a
resposta é inescapável: a casa-grande ficou de pé e conseguiu, sem
maiores esforços, a bem da verdade, manter a Nação atada ao seu próprio
tempo de prepotência. “Eles querem um país de 20 milhões de habitantes e
uma democracia sem povo”, dizia Raymundo Faoro.
Poder absoluto de um lado, submissão do outro. Getúlio Vargas, eleito
democraticamente em 1950, tentou enfrentar a casa-grande e morreu
suicidado. O novo desafio demorou 48 anos e começou com a eleição de
Lula, início de um capítulo inédito da história, este por ora a
mostrar-se duradouro. Como se deu com Getúlio, mas em circunstâncias
diferentes, o povo identificou-se com seu líder. No entanto, ao
contrário de Getúlio, Lula é seu povo, e chegou depois de uma ditadura
de 21 anos imposta pela casa-grande e de uma fase da chamada
“redemocratização”, na prática voltada à manutenção do poder real e dos
seus privilégios medievais.
Dilma, nesses seus últimos dois anos de mandato, deu continuidade à obra
do antecessor sem deixar de conferir marca pessoal ao desempenho. De
saída, livrou-se de ministros incômodos, como o exorbitante “operador”
Antonio Palocci, ou Nelson Jobim, atucanado militarista. Prosseguiu
pelos caminhos traçados por Lula na política social e exterior e foi
recebida mundo afora como digna sucessora do “cara”. Lança, enfim, as
bases de uma política econômica afinada com os objetivos de um governo
social-democrático habilitado à contemporaneidade do mundo.
Janus bifronte mostra o cenho franzido na face que encara o passado,
enxerga um 2012 difícil, de desenvolvimento econômico medíocre, abalado
por uma crise mundial muito antes que brasileira. Não está desanuviado o
rosto que olha para o futuro. O ministro Mantega promete em 2013 um
crescimento de 4%, ou pouco mais, índice excelente nas circunstâncias.
Não me arrisco a analisar a promessa. As dificuldades para Dilma se
espraiam bem além da situação econômica, a despeito das influências que
esta exercerá em outros quadrantes.
A “Operação 2014”, desencadeada pela mídia contra Lula e contra o
governo não arrefecerá certamente na perspectiva do pleito do ano
próximo. De certa maneira, a campanha eleitoral já partiu e definiu seus
temas recorrentes. Sim, os tempos mudaram e os porta-vozes do poder
real não alcançam a maioria da Nação. Sobram, porém, os problemas
criados dentro do PT, da base governista e até do governo. Semeados
inclusive pelo Supremo Tribunal Federal, lunaticamente inclinado a
subverter as regras basilares da democracia e a agredir a Constituição.
Será que o ministro da Justiça tem mesmo de resignar-se diante de tanto
descalabro?
Assustam, sejamos claros, um STF e um procurador-geral da República
claramente engajados na Operação 2014. Para seu próprio bem, cabe ao
governo uma reação à altura, também em outra frente, para reestruturar o
Partido dos Trabalhadores, hoje dividido, depauperado e em estado de
confusão. Neste campo, a intervenção do fundador é indispensável. Lula é
o líder em condições de conduzir o partido no retorno ao passado, para
reencontrar aquela agremiação que o sustentou por três eleições e enfim o
levou à Presidência em 2002.
Quanto à base governista, os problemas parecem insolúveis. Governar
exige alianças de ocasião e as melhores intenções acabam por lastrear o
caminho do inferno. Há parceiros confiáveis e outros que veem na
carreira política a escada da vantagem pessoal. Há quem sugira uma ação
para buscar o favor do empresariado. Talvez aqui a tarefa seja menos
complicada do que a tentativa de formular planos comuns com, digamos, o
PMDB do vice-presidente Michel Temer e do senador José Sarney, ou com o
PDT de Miro Teixeira e outros do mesmo jaez.
Permito-me, de todo modo, como se daria a aproximação ao empresariado
descontente com a política econômica. Por meio de um seminário sobre o
capitalismo de Adam Smith e John Maynard Keynes? Mesmo assim, tentativas
menos ingênuas poderiam ser experimentadas, com algum êxito, quem sabe.
Pego-me a olhar para os colegas da redação, dobrados sobre seus
computadores, intérpretes da modernidade, enquanto eu batuco na minha
Olivetti Linea 88. Sou francamente arcaico, mas temo que o computador me
engula como fez e faz com tantos outros. Não escapo à sina, também eu
mereço Ionesco, ou Beckett. Certo é, sem qualquer parentesco com o
absurdo, que às vezes o bonde da história passa pela porta de casa. Não
da minha, é óbvio. Falo de Dilma Rousseff. Sinto nela a crença, a
energia, a determinação, a capacidade e o porte dos escolhidos do
destino.
Mino CartaNo CartaCapital
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